Quando eu estava na escola, um termo foi ensinado nas aulas e aparecia em diferentes disciplinas: geografia, história, português e até mesmo artes. As duas palavras que aprendemos nos idos de 2000 e alguma coisa, definia que o Brasil e outros países mais ou menos perto da Linha do Equador eram inferiores. Logo, nós, cidadãos destas nações, também éramos inferiores. Nada diferente do que imigrantes costumam ouvir em países europeus atualmente. Estou falando do termo terceiro mundo.
Do ponto de vista econômico e da tomada de decisões internacionais, talvez fossemos realmente inferiores, apesar de a diplomacia brasileira ser uma das melhores do mundo (lembremos de Sérgio Vieira de Mello, cuja morte completou 20 anos na semana passada). Mas estamos em 2023. O cenário mudou.
Ironicamente, muitas das mudanças foram causadas pelo então chamado primeiro mundo. Outras, pelo crescimento econômico de nações como o Brasil, que passa a ter mais voz e vez nas grandes mesas de negociações pelo futuro. Somam-se, ainda, mudanças causadas apenas pelas voltas que o mundo dá, já que a terra não é plana, como sempre é importante reforçar em tempos de negacionismos.
Recentemente, em um interessante almoço em que discutimos política, relações internacionais e outros temas, o termo “terceiro mundo” apareceu na boca de um dos jornalistas presentes - um jornalista europeu. Na hora, eu disse: “Soa pejorativo e atrasado. Hoje utiliza-se sul global”. Os demais brasileiros à mesa concordaram comigo.
Academicamente, o termo não é novo. Surgiu pelos anos 1970 e se popularizou cerca de uma década depois. Porém, é em 2023 que a junção de sul+global está com força total. O conjunto de membros é muito diverso geograficamente,
politicamente, culturalmente e economicamente. Passa, por exemplo, do Brasil ao Sudão, nações muito distintas. Ao mesmo tempo, grande parte destes países estão unidos pelo fato de terem sido colônias, alguns ainda enfrentando sérias consequência de anos sob domínio de potências ricas.
Mais do que as feridas do colonialismo, o sul global têm hoje em comum a ascensão de suas vozes no cenário internacional, mesmo que ainda representadas por porta-vozes como a África do Sul, Brasil, China e Índia. A pergunta é: quem tem medo do sul global?
O movimento é imparável, já está acontecendo e vai se intensificar. Na cúpula do G-20, marcada para setembro deste ano, o Values 20, uma organização da sociedade civil, vai entregar aos líderes do grupo um documento em com propostas ambiciosas para três grandes temas: educação, emprego e empreendedorismo e o meio ambiente.
O empresário brasileiro Paulo Dalla Nora Macedo, que mora em Lisboa, faz parte do grupo que criou o relatório. Ele analisa que é normal que Estados Unidos e Europa terem o que ele define como “receio” da ascensão de países antes considerados inferiores: “É uma nova realidade, que desequilibra o cenário e a realidade fica mais complexa”, analisa o economista, que coordenou a seção de economia verde.
Segundo Paulo, o receio não é necessário: “Basta sentar na mesa e conversar, tudo passa pelo estreitamento de relações e parcerias”, pontua. O empresário acredita que o presidente Lula da Silva é um representante dessa nova visão do mundo, discurso que vem sendo repetido pelo chefe de estado brasileiro em diversos eventos pelo mundo, mais uma prova de uma sociedade cada vez mais multipolar.
Mas quem somente agora está se dando conta disso são as próprias nações ricas, sempre as primeiras a cobrar dos outros mais ações, especialmente na área do clima. Esse é um dos principais pontos que o V20 quer colocar em cima da mesa na cúpula de setembro: “O planeta não sobrevive se todos seguirem os modelos dos países desenvolvidos”, ressalta Paulo. Uma das principais estratégias planejadas é a da reciclagem em larga escala da grande indústria.
Não é à toa que uma diplomacia do clima tem sido dominante recentemente. Com temperaturas arrasadoras no hemisfério norte neste verão e mesmo no sul, onde é inverno, a preocupação é grande. Os cientistas já previam que esse ponto chegaria, mas, agora, os efeitos já são sentidos na pele, literalmente.
Xadrez ganha novos jogadores
O ano de 2023 sela o momento em que nações ricas acordaram para a nova ordem mundial que se desenha. Uma ordem em que países como o Brasil pleiteiam assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU, uma ordem em que o Fundo Monetário Internacional (FMI) não é a única instituição financeira global.
Entre profundas diferenças ideológicas, sendo alguns governos democráticos e outros bem menos democráticos, os países do sul global já não admitem ficar de fora do grande xadrez global, antes jogado apenas pelos Estados Unidos e a Europa. As partidas já começaram e se intensificaram.
A invasão russa ao território ucraniano é uma das razões. Para a Europa, parece não fazer sentido que a América Latina e outros países não tenham o mesmo empenho em ajudar a Ucrânia, negando a venda de armas, como o Brasil fez. Mas não é nada muito diferente do que as mesmas nações ricas fizeram com outros conflitos distantes e igualmente avassaladores do ponto de vista humanitário.
A União Europeia (UE) e os Estados Unidos assistem esses outros países atuando de outras maneiras, sejam eficazes ou não. É o caso das reuniões em diferentes partes do mundo em busca de uma solução para o conflito, como a cúpula na Arábia Saudita no início de agosto.
O Brasil é, talvez, o país que mais faz uso do discurso de tentar mediar a paz na Ucrânia. Entretanto, até agora, o plano falhou. As falas de Lula igualando as responsabilidades sobre a guerra (sendo que a Rússia é a única agressora), também não ajudam, nem o fato de o Brasil não fazer grande esforço para se encontrar com o presidente ucraniano, que vive repetindo o desejo de falar com chefe de estado brasileiro.
Todos querem a América Latina
Pelo potencial econômico e, principalmente, de recursos renováveis, todos querem a América Latina. Os Estados Unidos, que sempre teve relações tensas com a região, vê a China cortejar os seus vizinhos de continente ao sul com bilhões em investimentos e trocas comerciais. Mais do que isso, observa o governo chinês trabalhando em tentar buscar o máximo de aliados possíveis pelo globo e desafiar cada vez mais a hegemonia da Casa Branca.
A União Europeia está com um conflito no próprio quintal desde fevereiro passado, enfrentando seríssimas consequências da tirania de Putin. Outros problemas batem à porta, como a emergência climática e a necessidade de diversificar a compra de alimentos e outros produtos. Os europeus passaram a se mover no tabuleiro do poder em várias frentes e com rapidez. O bloco quer recuperar o tempo perdido quando deu às costas para os países do “terceiro mundo”.
A posição fica clara com a recente aproximação com a América do Sul e Central. Líderes europeus importantes visitaram países latinos nos últimos meses e mantêm um diálogo permanente com o atual governo brasileiro. A UE promoveu uma cúpula em Bruxelas com os membros da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) com a missão de estreitar as frias relações, de olho no potencial ecológico da região, que detém 60% das energias renováveis do planeta. Além disso, tenta fechar o famoso acordo com o Mercosul, que se arrasta há 20 anos.
Aliás, as negociações para finalmente colocar em prática, demonstram que não é somente a UE que coloca as cartas na mesa e o outro lado aceita passivamente. É certo que toda negociação, ainda mais desta magnitude, exige cedências de ambas as partes, mas o bloco europeu não deve ter imaginado que enfrentaria um Mercosul pronto para fazer exigências.
Outro exemplo do cortejo foi a França, nação mais poderosa da UE, realizar um fórum econômico e convidar o Brasil com honras. O presidente Emmanuel Macron teve que ouvir Lula da Silva apontar o dedo aos europeus: “Vamos ser francos. Quem é que cumpriu o Protocolo de Quioto? Quem é que cumpriu as
decisões da COP-15, em Copenhague? Quem é que cumpriu o Acordo de Paris? Ou seja, não se cumpre porque não tem uma governança mundial com força para decidir as coisas e a gente cumprir”, criticou.
O que Lula disse faz sentido. Se os acordos não são cumpridos, como podem obrigar os outros e acusá-los de fazer pouco? Em outro trecho poderoso, o presidente cobrou responsabilidade do “primeiro mundo” sobre as desigualdades: “Junto com a questão climática, nós temos que colocar a questão da desigualdade mundial. Não é possível que, numa reunião entre presidentes de países importantes, a palavra desigualdade não apareça. A desigualdade salarial, a desigualdade de raça, a desigualdade de gênero, a desigualdade na educação, a desigualdade na saúde”, afirmou Lula.
O discurso de Lula em Paris é um bom exemplo da visão de mundo que representa, ao menos em parte, o sul global. E também porque a mudança causa medo por parte de quem sempre ganhou as partidas de xadrez. Mas não é necessário temer. É apenas uma reordenação geopolítica, como outras na história da humanidade, só que mais diversa, com mais idiomas, mais cores e com temas pouco confortáveis no tabuleiro.
-Sobre a Amanda Lima-
Jornalista nas horas vagas e ocupadas, é brasileira e vive em Portugal há três anos. Os temas de principais interesse são sobre género, imigração, direitos humanos e política. Comenta e escreve atualidades na CNN Portugal e acredita que o jornalismo é a profissão mais divertida do mundo. Viciada em cafeína, vídeos de pandas e em contar boas histórias.