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Reflexões sobre o tableau vivant encenado por Drag Queens na abertura dos Jogos Olímpicos

Orlando Figueiredo fala-nos sobre a controvérsia gerada pela encenação de Drag Queens na abertura dos Jogos Olímpicos, destacando a hipocrisia da comunidade cristã e a importância da visibilidade queer como ato de resistência e afirmação de identidade.

Texto de Redação

©Paris 2024 via página oficial de Instagram

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Já muito foi dito sobre a polémica recentemente gerada pela encenação feita por um grupo de Drag Queens durante a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. No entanto, é importante salientar que esta serviu para relembrar algumas lições que a comunidade queer não pode nunca esquecer.

No centro de toda a polémica encontra-se a interpretação errônea de que o tableau vivant retratado por um conjunto de pessoas em drag, reproduzia a última ceia, algo interdito, segundo a ortodoxia cristã, às pessoas queer. Na verdade, e de acordo com Thomas Jolly, diretor artístico da cerimónia, o quadro vivo reproduzia uma festa pagã ligada aos deuses do Olimpo. Mas esta confusão é quase irrelevante. Só não o é totalmente, porque mostra o que de facto é a comunidade queerfóbica cristã (porque haverá outros que, sendo cristãos, não são queerfóbicos), o nível da sua ignorância e hipocrisia e como alguns que se dizem laicos e defensores dos direitos humanos, reagem perante os gritos de indignação do impiedoso déspota privilegiado.

No que concerne à comunidade cristã, ignorante e com o foco centrado no seu umbigo, julga que tudo é sobre ela e não percebe que o sketch nada tem a ver com o cristianismo. Por outro lado, com pouco discernimento, julga-se a exclusiva detentora da mitologia, simbologia e iconografia cristã, esquecendo que esta é um legado comum independente das crenças e descrenças de cada um. Sustentado nestes dois pilares, emerge a hipocrisia desta comunidade quando se insurge contra uma percecionada apropriação de uma iconografia que quer sua e grita woke, achando que insulta, a quem quer que se atreva a denunciar a apropriação por parte do déspota de aspetos culturais construídos por comunidades marginalizadas e oprimidas.

As paródias com a última ceia são abundantes e conhecidas

É por isto que, do ponto de vista da comunidade queeré irrelevante que a performance tenha sido sobre os deuses do Olimpo ou sobre a última ceia. A comunidade queer tem toda a legitimidade para montar uma paródia sobre a última ceia, ela própria pintada por uma pessoa queer que nunca fez questão de esconder a sua orientação sexual e usou os seus jovens amantes como inspiração e modelo das personagens dos seus quadros. Mas, como dizia, a comunidade queer, tal como qualquer outra comunidade, tem toda a legitimidade para montar uma paródia sobre a última ceia, porque a iconografia cristã não é propriedade dos cristãos e arte não se submete ao poder, subverte-o.

De resto, as paródias com a última ceia são abundantes e conhecidas. Desde os Simpson aos Sopranos, passado por últimas ceias de cientistas, cães, gatos, Star Wars, super-heróis ou personagens Dragonball… todos eles já foram reproduzidas em versão última ceia, sem que isso tenha incomodado particularmente a comunidade cristã. Mas quando toca à comunidade queer, o ódio, a hipocrisia e a tentativa de silenciamento por parte da cristandade não se tarda em fazer ouvir.

O velho moralismo cristão de “respeitar para ser respeitado” não passa de um eufemismo hipócrita e falacioso de “silenciado para nosso conforto”. A comunidade queer, tal como qualquer outra comunidade, não precisa de uma licença especial do mundo cristão para usar a sua iconografia. Se a comunidade cristã tem particular dificuldade em lidar com a comunidade LGBTQIA+ é ela quem está errada, é ela quem discrimina, quem ofende, quem quer suprimir, esconder, apagar e silenciar um grupo social. Como afirma o cantor bissexual TX2 (He/Him) There’s no Love Like Christian Hate.

O pedido de desculpas da organização revela uma subserviência intolerável à intolerância cristã

Como já referi, a liberdade de expressão garante que o uso da iconografia cristã não está limitado aos cristãos, muito menos aos arautos do ódio contra as pessoas LGBTQIA+. Se a reação da comunidade cristã é socialmente relevante, a de outros como Jean-Luc Mélenchon, que esperando-se aliado e defensor da comunidade, veio imediatamente demarcar-se da situação, mostrando a sua ignorância e a reverência ao poder instalado, perguntando: à quoi bon risquer de blesser les croyants? (De que adianta arriscar ferir os crentes?), como se o risco de ofender os crentes fosse mais importante que a liberdade de expressão das pessoas queer. Mesmo a reação de Thomas Jolly que se apreçou a esclarecer que a paródia era sobre os deuses do Olimpo e não a última ceia seguida do pedido de desculpas da organização da cerimónia, revela uma subserviência intolerável à intolerância cristã. É que uma encenação artística, ainda que possa ser tida como ofensiva por um setor social, não é um insulto identitário, não desumaniza e não silencia ninguém, ao contrário do que a comunidade cristã quer, demasiado frequentemente, fazer à comunidade queer. Não gostaram da performance por ser interpretada por pessoas queer? We’re sorry! Deal with it!, porque nós existimos e não vamos voltar para o armário!

A identidade queer constrói-se na oposição a esta tentativa (bem-sucedida durante séculos) de negar direitos a um conjunto de pessoas com base na sua sexualidade ou identidade de género. E é esta identidade, que é preciso continuar a construir em intersecção com outras identidades socio-culturais. É preciso ir além da luta de classes, como a reação de Jean-Luc Mélenchon deixou bem claro, e reivindicar plenos direitos no contexto da dinâmica e em constante (re)construção identidade LGBTQIA+, numa sociedade que nos mostra que as conquistas, feitas a pulso pela comunidade nas últimas décadas, estão longe de estar garantidas e salvaguardadas e que há ainda muitas outras por conquistar. Relembramos, por exemplo, que a aplicação Grindr desativou as funções de geolocalização dentro da Vila Olímpica para evitar outings forçados de pessoas queer que poderiam ter consequências trágicas para as suas existências pessoais, pôr em risco a sua liberdade ou mesmo a sua integridade física e a suas vida.

Fez-se história porque, perante exigências de silenciamento, a comunidade não se calou

É por isso que a visibilidade de pessoas queer é por si só um ato, individual e coletivo, de luta e resistência, feito em nome do próprio, mas também em nome de todos os que, por força do silenciamento, discriminação e ameaças à sua liberdade, integridade física ou à sua vida, se vêm forçados a viver a sua sexualidade e identidade de género na clandestinidade e no silêncio. E sim, nestes, como nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, a comunidade queer fez história.

Como afirma Florence Tamagne no seu livro Histoire de l’homosexualité en Europe (Seuil, 2000), a história da comunidade queer não é a história do comportamento das pessoas queer, mas antes a história das relações entre a comunidade queer e a sociedade e as respostas elaboradas pela comunidade na afirmação da sua identidade (tradução livre do autor, com terminologia adaptada aos anos 20 do século XXI). E a sociedade, em particular o conservadorismo cristão, mas não só, mostrou, mais uma vez, a dificuldade que tem em relacionar-se com a diversidade e a liberdade alheia de quem rejeita a hipocrisia de uma vida determinada por um cânone pré-estabelecido rígido, surdo e fechado sobre si próprio que traz mais ódio, medo e frustração que felicidade e bem-estar.

Fez-se história porque a sociedade reagiu à paródia (e o equívoco última ceia/banquete olímpico é, sublinho, irrelevante) e, parte dela, mais uma vez gritou: SILÊNCIO! Mas a comunidade não se calou. Reclamou a sua identidade, exigiu o reconhecimento da sua existência, impôs a sua visibilidade e prosseguiu com a celebração da VIDA e do AMOR!

Texto de Orlando Figueiredo, publicado inicialmente na esQrever
*As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.*

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