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Ricardo Paes Mamede: “As tecnologias digitais estão a causar alterações estruturais nas economias”

O futuro do trabalho e as mudanças em curso numa análise que tem como ponto de partida o Future of Jobs Report 2025, elaborado pelo World Economic Forum.

Texto de Sofia Craveiro

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Até 2030, estima-se que possam surgir 170 milhões de novas funções e que outras 92 milhões se tornem obsoletas, de acordo com o Future of Jobs Report 2025, elaborado pelo World Economic Forum. Embora esses números reforcem a ideia de que as tecnologias digitais estão a provocar alterações estruturais profundas, o resultado continua pouco claro. 

Este documento foi o ponto de partida para uma conversa com o economista e professor do ISCTE-IUL, Ricardo Paes Mamede, que afirma que nenhuma destas transformações são novidade. “A divisão digital nas sociedades já se faz sentir há alguns anos”, diz o especialista, sublinhando que a transformação digital não começou agora, mas que os desafios e incertezas influenciam a reconfiguração do mundo do trabalho.


-O relatório refere que as mudanças no emprego equivalem a 22% dos empregos até 2030, com 170 milhões de novas funções a serem criadas e 92 milhões destituídas, resultando em um aumento líquido de 78 milhões de empregos. Estamos perante uma mudança estrutural do mercado de trabalho?

-Bom, a primeira coisa que tenho de dizer é que essas estimativas têm de sempre ser encaradas com algum cuidado. Qualquer estimativa em economia, mesmo para o ano seguinte, tem riscos. [Algo que seja] pensado a sete anos ou cinco anos, que envolva transformações tecnológicas que ainda estão em curso e que dependem de muitos outros fatores, como seja as políticas macroeconómicas que vão sendo seguidas a cada momento, é sempre extremamente arriscado. Dito isto, nós temos bons motivos para pensar que as tecnologias digitais estão, de facto, a causar alterações estruturais nas nossas economias.

-Então é uma mudança que já está em curso.

Sim, ela não começou hoje. Nós começámos a dar uma atenção particular à transformação digital nos últimos anos devido ao Chat GPT mas, na verdade, a revolução ligada às tecnologias de informação já tem 50 anos e já tem vindo a transformar muito a forma da organização das economias, das sociedades e as formas de trabalho desde então. Claro que a cada etapa deste processo de transformação digital criam-se novos caminhos, novas trajetórias que constituem mudança por cima da mudança, mas de facto a transformação já vem acontecendo há algum tempo. 

-Uma das questões que também é referida no relatório é que a lacuna de competências tecnológicas é um dos maiores entraves ao desenvolvimento das empresas. Como é que esta dificuldade pode ser ultrapassada? As empresas estão dispostas a investir na melhoria das competências dos seus trabalhadores, em particular na Europa e em Portugal?

-Até isso tem algum grau de incógnita, porque um dos impactos que sabemos que os LLMs [Large Language Models] - como o Chat GPT e outros -, estão a ter, é reduzir de forma drástica a necessidade de um certo perfil de programadores. Portanto, há parte das necessidades de competências na área das tecnologias digitais, que o próprio desenvolvimento das tecnologias digitais vem colmatar. As empresas têm sempre muita resistência a fazer investimentos mais substanciais na formação dos trabalhadores pela simples razão de que correm o risco de estar a gastar dinheiro na formação de pessoas que, um mês depois, podem receber uma oferta de emprego de uma ou outra empresa que não tem mesmo os custos de formação e que beneficia das competências que a sua concorrente esteve a investir. Nesse sentido, o papel do Estado na formação de competências nestas áreas é sempre muito importante.

-Deve ser o Estado a investir e não as empresas, é isso? 

-Bom, há sempre um papel para as empresas investirem, em particular, quando se trata de competências que são muito específicas às necessidades de cada empresa. As empresas têm de contribuir para os esforços públicos de investimento em formação. Isso faz-se através dos impostos, é um contributo indireto.

-Além da questão da tecnologia, este relatório refere também as mudanças demográficas, a fragmentação geoeconómica, a incerteza e a transição verde, como elementos que vão também a alterar o futuro das organizações. Na Europa, estes são elementos que já estão a ter impacto [no mercado de trabalho]?

-Sim, qualquer um desses factores de mudança é comum e afeta todos os países do mundo. A Europa não é exceção.

-Olhando para a questão das mudanças demográficas, em particular. De que forma já está a ter consequências nas organizações?

-A Europa é um continente particularmente envelhecido. Não é o único. Nós temos, por exemplo, na Ásia países que estão a ter de enfrentar também pirâmides demográficas cada vez mais invertidas e, portanto, constitui um desafio para muitas sociedades. Isto reflete-se de várias formas. Reflete-se, por exemplo, na maior dificuldade em encontrar jovens altamente qualificados disponíveis para cumprir determinadas funções, reflete-se, em muitos casos, nas maiores dificuldades que gerações mais velhas têm de se adaptar às novas tecnologias e reflete-se cada vez mais, também, em necessidades específicas das sociedades para lidar com uma grande parte da população envelhecida, que coloca desafios que não se colocavam numa sociedade que era composta essencialmente por jovens. Portanto, mesmo desse ponto de vista, as tecnologias digitais são relevantes. Por exemplo, o investimento que está a ser feito em países como o Japão, a China, ou Coreia do Sul em robótica e automação, que é um investimento massivo, não pode ser entendido sem ter em consideração as perspectivas de evolução demográfica nesses países.

-Apesar da importância que é dada à tecnologia neste relatório, é referido que os empregos que mais irão crescer serão os que estão ligados ao mundo rural e ao trabalho braçal, digamos assim. Isto será um contrassenso?

-Não digo que é um contrassenso, mas eu ficarei muito surpreendido se isso efetivamente acontecer. Eu digo que não é completamente um contrassenso no sentido em que, se assumirmos uma situação limite, em que muitas tarefas intelectuais podem passar a ser desempenhadas por máquinas, o que restará para ser feito por seres humanos serão tarefas de natureza física, que não podem ser facilmente automatizáveis. Desse ponto de vista, poderíamos esperar que fosse aí que estivesse a necessidade de emprego. No entanto, as nossas necessidades materiais são finitas, enquanto as nossas necessidades imateriais são potencialmente infinitas. Isto é, se quisermos pôr noutros termos: nós temos um limite de quilos de arroz que conseguimos ingerir por ano. Não temos, à partida, nenhum limite de quantidade ou qualidade de divertimento, de bem-estar ou prazer que podemos retirar do mais variado tipo de coisas. E eu creio que é aí que continuará a estar o grosso da expansão do emprego na humanidade.

-Acha, então, que este cenário não é provável que aconteça.

-Eu ficaria surpreendido se assim fosse.

-As funções que são indicadas como estando em declínio são as de operadores de caixa, bilheteiras, funcionários administrativos e secretariado. Este tipo de profissões pode mesmo vir a desaparecer no futuro?

-A tendência não é de agora. Se pensarmos, há 50 anos havia uma profissão muito comum que era de estenografia, [na qual] pessoas escreviam à mão o que as outras ditavam. Foi uma profissão que, basicamente, se extinguiu. Neste momento, também, uma boa parte do trabalho de secretariado que se fazia há 40 anos, 30 anos, deixou de ser necessário, porque os computadores pessoais passaram a ter aplicações tão eficientes que se torna mais fácil uma pessoa fazer do que estar a pedir a outras para fazer por si. Há 30 anos, provavelmente, um CEO nunca escreveria uma carta. Pedia a alguém para escrever por ele ou por ela. Neste momento, uma pessoa que tem funções executivas escreve um e-mail. Portanto, isso também não é de agora. O que está a acontecer com a inteligência artificial é que, de facto, há algumas tarefas que são mais sofisticadas… Por exemplo: o trabalho de um assistente de investigação. Boa parte do trabalho de um assistente de investigação hoje pode ser desempenhado por um algoritmo de inteligência artificial. Portanto, há algumas tarefas que, até há pouco tempo, não concebíamos como podendo ser executadas por máquinas, mas cada vez mais tendem a ser. Daí que essas alterações que referiu sejam expectáveis e muitas delas já estão em curso. 

-Nesse sentido, a desigualdade social pode agravar-se?

Mais uma vez, não é uma novidade. A divisão digital que existe nas sociedades já se faz sentir há alguns anos. Pessoas que, por algum motivo não tiveram formação de base ou porque as tecnologias digitais chegaram à sua vida demasiado tarde e não têm um domínio… chamemos-me proficiência mínima de tecnologias digitais, já hoje estão a ser penalizadas pela falta de competências nesse domínio. O que está a acontecer agora, em parte, é que pessoas com competências altissimamente especializadas tendem a ter um acesso muito privilegiado a recursos. Dito isto, eu, que sei muitíssimo pouco de programação, neste momento consigo programar um site de internet, porque peço ajuda ao ChatGPT e ele programa-me um site por mim. Isso também significa que há algumas competências que até há pouco tempo davam uma vantagem às pessoas e desvantagem a quem não as tinha. Isso está a deixar de ser assim. 

Portanto, estamos a viver num período em que há grandes alterações no que são competências relevantes e que têm impacto, depois, no nível de desigualdades. A maior desigualdade, hoje, não tem tanto a ver com diferenças entre trabalhadores, tem a ver essencialmente com uma concentração brutal de poder nas grandes plataformas digitais, que controlam os dados e os algoritmos. E isso sim, é uma desigualdade que não é apenas social, é uma desigualdade também de poderes, em que há um punhado de empresas de grandes dimensões que conseguem ter mais poder do que alguns Estados de dimensões médias. Isso constitui uma alteração substancial na era que vivemos.

-Isso também tem reflexo em muitas questões políticas e geopolíticas, que são, inclusive, uma preocupação de alguns empregadores. Pode também fazer uma pequena análise sobre a maneira como essas tensões podem afetar o futuro do trabalho?

-Há várias formas de como isso pode acontecer. Para dar um exemplo: a Europa, os países europeus, neste momento, têm uma consciência clara de que têm um controlo muito reduzido sobre alguns aspectos cruciais da transformação digital em curso. O grosso dos equipamentos relevantes é produzido na China. O essencial dos serviços ligados às plataformas digitais é produzido nos Estados Unidos [da América]. Há uma vontade muito grande de tentar reduzir a dependência que a Europa tem em relação a esses blocos geopolíticos, porque isso, de uma forma ou de outra, pode-se transformar - e já se vem transformando - em fontes de poder e de influência de uns países sobre outros. A decisão da Europa de fazer este tipo de investimento nas tecnologias digitais, naturalmente, vai alterar a intensidade da procura de qualificações e afeta também as dinâmicas do mercado de trabalho.

-Falando agora de Portugal, especificamente. Espera-se que até 2030, 71% dos trabalhadores vão precisar de algum tipo de formação, percentagem que está muito acima da média global, que é de 58%. Estamos a ficar para trás, neste aspeto?

Portugal é um dos países que têm níveis de envelhecimento demográfico mais significativos. Sendo verdade que nós temos nas gerações mais novas - como se diz de forma recorrente - , ‘a geração mais qualificada de sempre’, não nos devemos esquecer que a esmagadora maioria das pessoas em idade ativa continuam a ser pessoas com mais de 35 anos e pessoas que tiveram um nível de exposição às tecnologias digitais que é muito inferior. Isso, por si só, explica uma boa parte do atraso. Se nós comparássemos apenas as camadas mais jovens, provavelmente Portugal não tinha esse atraso. Até poderia ter um avanço em relação a outros países. A questão da nossa pirâmide demográfica e o facto das gerações mais velhas serem muito menos qualificadas, de terem níveis de habilitações muito inferiores, do que as que tendem a ter as gerações mais novas, explicam esses números e explicam esse atraso de alguma forma.

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