O significado que damos ao que nos rodeia é algo com que batalhamos diariamente. A sua natureza fugidia vai contra os tempos que vivemos, tão categóricos, tão pouco dados à fluidez e tão amigos do definitivo.
Nesse sentido, as artes visuais tornaram-se hoje, mais do que nunca, inimigas do público. Porque questionam aquilo que nos é dado e nos obrigam a uma interpretação fundada na ótica, na sensação e na vontade que o nosso intelecto tem de compreender uma peça. Por esse mesmo motivo, as artes visuais são também um instrumento essencial para o pensamento humano.
E como será a experiência do lado de quem cria? Há anos que Rodrigo Rosa (Tavira, 1997) lida com esse desafio. É um dos jovens artistas portugueses que se tem destacado através da sua obra. O seu trabalho, exposto em galerias como a Foco ou Mono, e merecedor de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, joga com os conceitos de utilidade e distância, inspirados num industrialismo decadente. São instalações que transmitem a ideia de transitoriedade, espaços “em branco” repletos de significado. A pertinência da sua obra reside na sua contemporaneidade.
Sem recorrer a artifícios fáceis e com um tom muito próprio, Rosa recria o diálogo paradoxal que há entre uma estética sóbria e cordial e o abandono aleatório e brutal que podemos encontrar num espaço em obras. Como se víssemos, ao mesmo tempo e na mesma sala, o centro desenvolvido de uma grande cidade e a sua zona industrial, na periferia, povoada de gruas, fábricas e materiais de construção. O Gerador falou com o artista sobre as suas origens e sobre tudo o que rodeia esse impulso criativo: galerias, exposições, dinheiro, e o que o leva a criar aquilo que cria.
Gerador (G.) — Como foi o teu primeiro contacto com as artes?
Rodrigo Rosa (R. R.) — Francamente? Não sei. Já pensei nisso muitas vezes e não consigo ultrapassar esta ideia de que sempre foi algo bastante presente na minha vida. Se calhar, começa em criança, quando passava as tardes no terraço dos meus avós, a ver os comboios a passar no apeadeiro da Porta Nova, em Tavira e questionava-me sobre o que estava a ver. Crescer no Algarve foi muito aborrecido, não havia nada para fazer! [risos]. Portanto, o meu entretenimento passava por exercitar a minha própria imaginação: observar, interpretar, questionar.
G. — Bom método para um artista em formação.
R. R. — É praticamente o mesmo raciocínio que utilizo até os dias de hoje, a toda a hora, nunca deixo de pensar em trabalho. E essa curiosidade também se mantém, felizmente.
G. — A tua arte dialoga com a paisagem urbana, embora esta seja, muitas vezes, brutal ou decadente. Procuras algum tipo de beleza na tua criação artística?
R. R. — Eu gosto das coisas decadentes, são a prova de que o tempo passa e tudo consigo leva. Há uma certa poesia nessa ideia de efemeridade. Pessoalmente, sinto-me até um bocado alienado quando me encontro naquelas cidades todas renovadas, em que tudo é novo e bonito. Também não é bem spleen, mas há alguma coisa de reconfortante na brutalidade ou decadência da paisagem. Talvez porque seja um reflexo nosso, de que também envelhecemos, e essa familiaridade faz-me sentir como se pertencesse ao local onde me encontro. Claro que isto depois vai tudo bater à mesma porta, a do trabalho. Eu gosto mesmo muito de trabalhar com estas coisas mal-amanhadas, os brancos-sujos, os cimentos estalados, os sprays que mancham tudo.
G. — Podemos dizer que, através desse sentimento de pertença, desenvolveste uma técnica.
R. R. —Também é porque, desde garoto, não tenho jeitinho nenhum para nada! Tinha uma professora no secundário que dizia que eu fazia as coisas com os pés! [risos]. Portanto, houve uma altura em que deixei de tentar contrariar a minha incapacidade de fazer tudo “como deve ser” e comecei a assumi-la. Por isso, o meu trabalho tem por norma um aspeto muito tosco. Mas eu gosto disso, porque cria contraste, não só entre o espaço de exposição – que, exatamente por isso, tenho preferência que seja mais white cube e “limpinho” –, mas também dentro do meu próprio corpo de trabalho. Eu gosto de contraste, e de quando o diálogo nem sempre é plenamente harmónico. Tem de haver fogo e faísca.
G. — Com a experiência e formação que tens vindo a adquirir, sentes que, com os anos, o teu trabalho mudou drasticamente de direção, ou estás talvez mais preocupado em aprofundar um certo caminho que tenhas descoberto?
R. R. — Como ambos sabemos, nada na vida é estático. A mudança é natural e inevitável, e por isso, também sempre bem-vinda. É um sinal de que nos adaptamos ao passar do tempo, que crescemos e que aprendemos. Dito isto, tenho plena noção de que a direção para onde conduzo o meu trabalho, por vezes, sofre ligeiros desvios ou até que se ramifica, e isso interessa-me, mas não acho que até agora tenha existido alguma mudança drástica. Neste momento, encontrei um pequeno nicho de assuntos que me dão muito prazer em explorar, e consigo facilmente imaginar várias maneiras possíveis de os desenvolver durante um período de tempo confortável. Mas estou sempre curioso e aberto para ver onde a vida me leva [risos].
G. — Por falar nesse “nicho de assuntos”, é normal para muitos artistas que, num momento inicial da sua carreira, criem sem critério e um pouco ao acaso e, só mais tarde, paulatinamente, vão refinando o seu método e os temas que exploram. Costuma ser aí que surge o seu melhor trabalho. Contudo, no teu caso, parece-me que desde as primeiras exposições, como Unknown Structures/Unamed Spaces ou Dreamhouse, mostras uma certa maturidade, uma ideia de saberes quem és e o que vieste cá fazer.
R. R. — Na verdade, devo confessar que foi um bocado fruto das circunstâncias, acredites ou não. Isto porque, de modo geral, e também como eu já percecionei, os primeiros passos de uma carreira artística desenrolam-se com pequenas ações: uma exposição coletiva com os colegas, projetos de cunho escolar, espaços independentes ou mesmo devolutos, exposições em ateliês – atenção, não há nada de errado com nada disso, pelo contrário – onde o trabalho artístico tem mais permeabilidade para a experimentação e a tomada de riscos. É bom, acho que é o processo natural da coisa. No entanto, no meu caso, de certa forma comecei a construir a casa pelo telhado: estava no Algarve, um bocado deslocado do meio artístico de Lisboa e, de repente, estava a fazer uma exposição individual na Galeria Foco, e outra na Travessa da Ermida poucos meses depois.
G. — Um salto enorme a nível de responsabilidade.
R. R. — E eu sou muito calculista, por isso senti nessa situação que era o meu momento de coming-of-age, então não me dei muito espaço para estar demasiado à vontade. Tinha plena noção de que esse tipo de oportunidades são muito raras e que, infelizmente, não acontecem a toda a gente. Portanto, decidi apostar num corpo de trabalho altamente coeso e mais maduro. Tem piada também porque lembro-me da última avaliação que tive para a minha licenciatura na UAlg [Universidade do Algarve], em 2018, já depois de ter inaugurado na Foco, estava com os meus professores Rui Sanches, Xana [Alexandre Barata] e o Pedro Cabral Santo, e um deles, acho que foi o Cabral, disse: “Rodrigo, estás de parabéns pelo teu trabalho, sem sombra de dúvida, mas vou-te dar um conselho de amigo: tu és jovem, sê jovem, não tentes forçar no teu trabalho uma maturidade que ainda não possuis. Não há nada de mal com isso, e não dura para sempre, aproveita.” Ainda demorou um bocado até estas palavras realmente fazerem sentido para mim, mas a verdade é que acabaram por fazer, e bastante. Mais tarde, quando comecei a participar em exposições coletivas mais regularmente, comecei a tentar esticar a corda ao meu corpo de trabalho e a tentar experimentar mais fora da minha zona de conforto, o que, na minha opinião, funcionou bastante bem. Esse espaço que arranjei para a experimentação e a tomada de riscos foi fulcral para o meu crescimento e maturação enquanto artista. Hoje em dia, já me sinto muito mais à vontade para arriscar mais com o meu trabalho numa exposição individual. Acho que é até o que distingue uma exposição boa de uma exposição espetacular.
G. — Os teus estudos não ficaram pela licenciatura. Neste momento, estás a terminar um mestrado em Belas-Artes na República Checa, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Como é a tua relação enquanto artista com a presença dos apoios institucionais públicos e privados na arte contemporânea?
R. R. — Pessoalmente, não tenho nada contra. Sem o apoio da FCG, provavelmente ainda estava entalado em Tavira, a trabalhar a partir da casa da minha mãe. Foi uma oportunidade incrível, especialmente sabendo que é fruto do meu trabalho. Faz-me sentir accomplished [concretizado] e ajudou-me a lançar a minha vida numa direção com a qual, até então, só sonhava.Todavia, sei que existe um ceticismo crescente entre alguns colegas em relação a este tipo de apoios — sobretudo apoios privados —, e até consigo compreender, em certa medida. Mas, em Portugal, não acho que faça tanto sentido a existência desse sentimento, tanto que nem o noto demasiado quando estou aqui, porque a cultura já é um setor imensamente precário no que diz respeito a apoios e, portanto, acho que é preciso aproveitar estas ajudas.
G. — O teu trabalho e a tua formação, no entanto, levam-te a estar um pouco dividido entre Lisboa e Praga, e, agora, cada vez mais Berlim, onde és representado pela Störung Galerie. Que diferenças encontras, a nível de comunidade e oportunidades para artistas, entre estas três cidades?
R. R. — Tenho uma relação muito diferente com as três cidades, é bastante complexo. Em Lisboa, cheguei um bocado como um outsider [alguém que vem de fora], apesar de ter sido uma estreia em peso, com duas exposições individuais no mesmo ano em dois espaços bastante bons — não me estando a tentar gabar. Mesmo assim, não senti que pertencia propriamente à cena. Não culpo ninguém por isso, eu não cresci lá, não tinha assim tantos amigos nesses círculos, enquanto a maior parte da malta já se conhecia da escola. É natural. Os anos passaram, eu também já não sou tão miúdo quanto era na altura em que comecei a visitar Lisboa para ir ver exposições. Entretanto, também fui criando relações fortes com as pessoas que ia conhecendo, e agora é paragem obrigatória cada vez que vou a Portugal. Praga é completamente diferente, é uma cena artística muito fechada, são só artistas checos a ser representados por galerias checas, eles não apostam em artistas estrangeiros — ao contrário de Lisboa, que otimiza isso em seu favor e cada vez tens mais artistas estrangeiros que se mudam para Lisboa para trabalhar com galerias de aqui. Mas também não me preocupo demasiado, não acho que encaixe muito bem na cena artística de Praga, francamente até sou mais feliz assim [risos], é menos uma preocupação.
G. — E Berlim?
R. R. — Berlim é uma exuberância! Toda a gente é artista! Mas, pelo que tenho vindo a conhecer, é uma cena muito expansiva, há mesmo muita coisa a acontecer e existe um esforço enorme da parte da comunidade para construir esse espírito de integração. Acho que é assim que devia ser, em todo o lado. É uma cidade com um estilo de vida muito self-aware [autoconsciente], e, sobretudo, intenso, mas ao mesmo tempo muito descontraído, e isso reflete-se no aspeto cultural, claro. A cidade nunca para, portanto tu nunca paras, mas quase não dás por isso. Cada vez que vou a Berlim, sinto-me como se estivesse no sítio onde o mundo acontece, é da melhor maneira que consigo descrever esse sentimento.
G. — E é lá que o teu trabalho está a ser representado. Que importância tem para um artista a representação de uma galeria no contexto atual?
R. R. — Depende muito do que cada indivíduo está à procura. No meu caso, só sou representado pela Störung desde 2021, nem faz um ano, e nem é uma representação exclusiva. Interessei-me pela galeria sobretudo por ser um projeto com sangue novo e jovem, em que o meu envolvimento possibilita o crescimento de ambas as partes. Isso proporciona-me uma liberdade enorme. Voltando ao assunto, nesta altura da minha vida e da minha carreira, acho que fez sentido, proporciona-me uma regularidade expositiva que, neste momento, considero necessária, e com sorte até faço uns trocos [risos]. Mas, de modo geral, não considero que o mérito de uma carreira artística se deva subjugar a futilidades, e, muitas vezes, a conversa da galeria tropeça nessa problemática: acaba por se tornar mais um jogo de vaidades do que realmente algo prático. Isto para dizer que acho perfeitamente possível fazer-se uma carreira artística não dependente de representação galerística, se for essa a intenção do artista, mas que, claro, em certos aspetos será uma jornada mais complicada.
G. — É difícil, para ti, lidar com a omnipresença do dinheiro nas artes? Desde orçamentos, bolsas, percentagens de galeristas, alguma especulação...
R. R. — É. Não apenas no mundo das artes, mas de modo geral na minha vida. Detesto ter de pensar em dinheiro, deixa-me stressado [risos].
G. — E a formação académica é algo que também te preocupa? Sentes que é necessária para desenvolver um bom trabalho?
R. R. — Cada vez mais, a questão académica envolve-se em problemáticas semelhantes às que a conversa das galerias envolve: o nome da escola ou do professor acabam quase por contar mais do que o teu próprio trabalho, mesmo que a escola, depois, acabe por não valer nada, já passei por isso [risos]. Mas existem escolas muito boas, que realmente investem num estilo de educação muito mais adaptado aos dias que correm, e às problemáticas contemporâneas, do que à ideia velha e poeirenta das academias. Esse tipo de educação, realmente, pode proporcionar ao artista uma visão do mundo muito mais única do que alguém que sai formatado de uma academia supostamente prestigiada, e que, depois, acaba por ser não tão boa.
G. — Mas achas que esse foi o teu caso?
R. R. — Não. No meu caso, devo tudo o que sou à licenciatura em Artes Visuais da Universidade do Algarve. A formação que recebi foi ideal para eu ter liberdade de explorar os meus assuntos, levantar as minhas questões e desenvolver o meu trabalho como eu bem entendesse, e não sinto que, de maneira alguma, tivesse saído de lá formatado pelo gosto pessoal de algum professor. Pelo contrário, nunca vi professores com tanto respeito pelo trabalho dos alunos, e que davam o seu melhor para ajudar o aluno a investigar seja-o-que-for que ele estivesse a investigar. Mas já conheci também alguns artistas que não frequentaram cursos superiores artísticos, ou até que estudaram uma coisa completamente diferente e, depois, decidiram ser artistas, e isso, na minha opinião, não lhes tira mérito nenhum. Na verdade, até costumam adquirir uma perceção bastante única da arte e o que é ser-se artista.
G. — É interessante que caminhos diferentes tenham um devir semelhante. Nesse sentido, identificas algum sentido de pertença ou camaradagem entre artistas?
R. R. — A minha experiência é sempre relativa, mas gosto de dizer que sim. Sobretudo, porque gosto de cultivar esse sentido de camaradagem. Temos de estar cá uns para os outros, especialmente em Portugal, porque não somos assim tantos.
G. — Criar é, para ti, um ato solitário?
R. R. — Eu prefiro que assim seja! [risos] É mais fácil evitar distrações.
G. — Preocupa-te que o teu trabalho mostre algum tipo de herança artística, ou que faça parte de uma certa corrente?
R. R. — Não é algo com que me preocupe, de todo. Claro que tenho perfeita noção de que o trabalho que produzo se insere mais numa corrente específica, ou com outros artistas que trabalhem em tendências semelhantes, mas evito ao máximo que isso impacte o meu processo de trabalho. A questão da herança é interessante — ou, pelo menos, interessa-me mais do que o pertencer a alguma corrente —, e é algo que gosto de assumir, porque provém de um fascínio genuíno, mais do que tudo.
G. — Quem são os artistas vivos que mais admiras?
R. R. — Ele é muito polarizante, mas eu também não quero saber do que os outros acham, eu gosto, e acabou: estou a falar do [Pedro] Cabrita [Reis]. Cresci a ver exposições dele, portanto, para mim, é mais do que um artista que admiro, é um dos meus heróis. Já o encontrei algumas vezes, mas ele nunca se lembra de mim, e, quando finalmente percebe, geralmente um de nós está de saída [risos]. Mas sou um gajo sortudo, porque tenho imensa admiração por grande parte dos meus amigos que também são artistas, e eles sabem disso porque eu digo-lhes! É sempre um prazer poder conviver com eles e que me considerem não apenas um amigo, mas também um colega.
G. — Qual é a parte de todo o processo de criar e apresentar uma exposição que mais gostas?
R. R. — É, sem sombra de dúvida, o momento final da montagem, quando percebes que “é isto!” e não se toca em mais nada. De repente, tudo o que imaginaste nos teus cadernos, e muitas vezes na tua cabeça, materializa-se diante dos teus olhos. Gosto sempre de perder tempo, depois, a admirar o resultado, sozinho, na maior parte das vezes. Não penso em nada, só aprecio. Até me faz sentir ligeiramente privilegiado: poder não só ser o primeiro como também muitas vezes o único a experienciar esse momento.
G. — E qual é a parte que mais detestas?
R. R. — Absolutamente nada! [risos]
G. — O que é que alguém que está prestes a entrar numa exposição do Rodrigo Rosa deveria saber?
R. R. — Que ele é bom moço! [risos] Não gosto de pensar que alguém deva ter de saber alguma coisa antes de entrar numa exposição minha. Se conhecer o meu trabalho prévio, é capaz de ser interessante ver o seguimento, mas gosto, no entanto, de achar que há uma predisposição para as pessoas se divertirem. Porque, no fundo, é isso que também tento proporcionar. Quero que as pessoas venham para termos conversas agradáveis, para rirmos, ou até para se beber um copo, e que, ao final das contas, essa tenha sido uma experiência que lhes melhorou o dia. Porque, no fundo, são estas coisas que, depois, ficam connosco, na memória, as coisas que nos proporcionam felicidade. Gostava muito de que fosse assim que as pessoas se lembrassem de mim ou das minhas exposições.