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Saad Eddine Said: “Os desafios do amanhã precisam ser resolvidos hoje”

A governança cidadã como instrumento para transformações estruturais na sociedade é uma das bandeiras do artista marroquino, que encontra na arte e no associativismo um caminho para o futuro. Saad Eddine Said discutiu essa e outras questões durante a sua passagem por Lisboa.

Texto de Amina Bawa

Fotografia da cortesia de Saad Eddine Said

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Governança

(Porto Editora – governança no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora.)

1.

forma de governar baseada no equilíbrio entre o Estado, a sociedade civil e o mercado, ao nível local, nacional e internacional

Para as Nações Unidas, a governança é o conjunto de medidas e práticas que visam o fortalecimento das instituições públicas, promoção da transparência e combate à corrupção. Os processos de tomada de decisões governamentais passam a ser influenciados não apenas pelos votos em períodos eleitorais, mas também pelo envolvimento de uma variedade de mecanismos e práticas que permitem aos cidadãos interferirem nas políticas públicas e nos processos de governança em todos os níveis. Isso pode incluir a realização de consultas públicas, a criação de conselhos consultivos compostos por representantes da sociedade civil, o contributo em processos de orçamento participativo e a colaboração em projetos de desenvolvimento comunitário.

Este conceito está na base da organização inglesa Citizens in Power, fundada há sete anos pelos artistas Saad Eddine Said e David Jubb. A organização não governamental quer  promover a participação dos cidadãos no Reino Unido e, para isso, busca capacitar as comunidades locais na defesa de uma governança mais inclusiva e responsável. De acordo com a proposta, o objetivo é que os cidadãos influenciem as decisões que afetam suas vidas e trabalhem em colaboração com autoridades locais e outras partes interessadas para promoção de mudanças positivas em suas comunidades. Saad Eddine Said afirma que sua equipe tem trabalhado no desenvolvimento de técnicas para explorar as diversas maneiras e níveis de envolvimento dos cidadãos nas instituições culturais, abrangendo desde a participação, co-criação e até a tomada de decisões.

O artista marroquino, que vive e trabalha no Reino Unido, esteve em Lisboa como conferencista de abertura do encontro Isto é PARTIS & Art for Change 2024, promovido pela  Fundação Calouste Gulbenkian. Além de abordar os temas referentes à governança cidadã na conversa com o público, ministrou o workshop Citizens in Power: Engage. Durante este encontro, realizado em janeiro último, o Gerador conversou com o diretor da organização inglesa para conhecer a Citizens in Power e a sua trajetória.

Quem é Saad Eddine Said e o que o traz a Portugal?

Sou marroquino e estou aqui na Europa como imigrante africano tendo a oportunidade de criar novas relações e o privilégio de conversar sobre temas relevantes para a reformulação do futuro das nossas comunidades a nível global. Vim a Lisboa por ocupar duas posições distintas: como CEO e Diretor Artístico da New Art Exchange, uma importante galeria no Reino Unido que se dedica à arte contemporânea de artistas de minorias étnicas;  [e] também como cofundador e codiretor da Citizens in Power. [Estas posições] são a visão e a conversa que me trazem a Lisboa. E, além disso, sou co-chair da CVAN (Contemporary Visual Arts Network), onde temos a oportunidade de reunir todas as redes de artes visuais contemporânea para falar sobre como podemos dar um passo em frente para nos tornarmos mais relevantes e mais inclusivos, apresentando uma agenda em torno da equidade e da justiça.

Como e porque decidiram iniciar o projeto Citizens in Power?

Eu e meu parceiro co-fundador David Jubb iniciamos esta conversa em 2017. E é importante dizer que David e eu não poderíamos ser mais diferentes. Somos os dois de classes sociais diferentes, de nações diferentes, com experiências de vida diferentes e até mesmo em termos de opiniões políticas, somos diferentes. Mas temos uma semelhança em relação a uma questão ou provocação em torno do fato de que pudemos ver que havia algo errado em termos de liderança e em como refletimos nossa sociedade. Também tínhamos uma intuição estranha. De volta à nossa primeira conversa em 2017, nós não previmos a crise global do movimento Black Lives Matter, não previmos a pandemia da COVID-19, e ficou muito claro para nós que os conflitos culturais iriam crescer, assim como a crise econômica, os desafios ambientais e todos esses tópicos que são tão relevantes para nossas vidas diárias, moldando como experimentamos o mundo. Entretanto, seis anos mais tarde, estamos em 2024 e, obviamente, não há dúvida de que esses desafios fundamentais enquanto sociedades diversas estão nos conduzindo a uma crise de identidades. Analisamos como se estão a moldar, como podemos lutar contra essa crise com o nosso pensamento progressista e que precisamos construir uma visão de governança. E foi assim que surgiu a Citizens in Power.

Como e onde no Reino Unido o projeto da Citizens in Power teve início?

Tanto eu quanto o David temos longas experiências e expertise em trabalhar com comunidades, desde a arte participativa até a cocriação. Acredito que quando começamos a conversar sobre a governança cidadã não ser vista a um nível estratégico, entendemos que precisávamos nos afastar e compreender como construir essa visão e como trazê-la para as localidades que podem ter partes interessadas complexas.

Porque, se quisermos mudar o paradigma, o poder de mudança não tem de ver com trabalho, mas apenas com as comunidades e com a forma como você apresenta o modelo ou um projeto que pode ter um mandato dos tomadores de decisão, dos políticos, das comunidades e assim por diante. Portanto, o trabalho que estamos realizando nesse nível estratégico está começando a se traduzir em muitas colaborações que estamos realizando em todo o Reino Unido. E, obviamente, com esse convite [projeto Isto é PARTIS & Art for Change 2024], você pode ver que há um verdadeiro momentum.

Entender que precisamos diversificar a forma como vemos a governança, diversificar a maneira como tomamos decisões e deixarmos de ser apenas pessoas que dizem "estamos fazendo isso porque é baseado em valores", "estamos fazendo isso porque é bom". Você pode fazer isso porque é bom, porém hoje, o que estamos dizendo é que se você está fazendo isso, está fazendo porque é inteligente.

Você está fazendo isso porque entende que independentemente do que você representa, uma comunidade, uma ideia, uma instituição e nação, se você quiser ser relevante, é absolutamente necessário trazer os cidadãos como moldadores de decisões onde nós, como serviço público, nos tornamos o verdadeiro provedor de serviço. E penso que é aí que se situa a Citizens in Power.

Durante a pandemia a Citizens in Power conseguiu dar continuidade aos projetos?

Durante a pandemia foi o período que permitiu que David e eu o articulássemos. Como eu disse, foi uma conversa que começamos em 2017. A organização existe há pouco mais de um ano, mas é o resultado de anos de conversas, e não acho jamais imaginaríamos que fundaríamos essa organização. A realidade é que não fundamos a organização; tivemos uma visão, e essa organização é apenas uma das formas de traduzi-la. Mas o David está transmitindo essa visão de muitas maneiras diferentes, assim como eu. Então, a pandemia foi para nós um momento urgente em que sentimos que precisávamos levar isso adiante. Portanto, durante a pandemia, foi um momento urgente em que sentimos que precisávamos levar isso adiante e, novamente, a pandemia destacou as desigualdades que existem na sociedade. Foi um destaque estranho de como o futuro poderia ser quando temos sociedades tão divididas quanto às ideia de identidades das comunidades, da sociedade, da nação. Vimos fogo. Vimos a dor. E nós vimos o impulso, talvez em um conflito onde você está em uma tempestade, e enxerga uma oportunidade de mudança.

Sentimos, por meio das conversas que estamos tendo no momento, que esse impulso e esse fogo está ardendo no coração de muitas pessoas. E esperamos que, com nossa experiência e articulação em torno de como oferecer uma visão, porque uma visão é sempre ótima, mas essas são as conversas que estamos começando a ter agora.

Essas são agora as conversas que estamos começando a ter e esperamos colaborar com nossa experiência e nossa articulação em torno de como concretizar uma visão, porque uma visão é sempre ótima. Estamos tendo essas conversas com projetos bastante grandes que envolvem autoridades locais de regiões enormes com milhões de pessoas, para desenvolvimento de plano cultural liderado pelos cidadãos para a região oeste da Inglaterra. Também entendemos que é preciso democratizar esses diferentes modelos para colocar os cidadãos no poder, de modo que as comunidades de base comecem a usá-los de forma articulada, pois se quisermos que a mudança aconteça na base, ela precisa acontecer em todas as camadas desse espectro.

Quais são as estratégias adotadas pela Citizens in Power para reunir a sociedade civil, as organizações governamentais e as instituições?

Não acho que exista uma única maneira de fazer isso porque cada lugar e cada comunidade mais ampla, independentemente de sua origem ou vizinhança, tem sua própria complexidade e sua própria maneira de se conectar com ela. É importante que a mudança só aconteça quando vem de dentro.

O trabalho que estamos fazendo no oeste da Inglaterra é apoiar uma ideia que surgiu por meio de organizações locais incríveis. Estamos aqui apenas para apoiar essa jornada, sendo que há elementos que fazem com que ela funcione.

A mudança só acontece quando têm dois mandatos: o compromisso do povo, que inclui todos nós, os cidadãos que vivem em um lugar. E quando falamos de cidadãos, isso não tem nada a ver com nacionalidade. Cidadãos são pessoas que vivem em um lugar. O segundo, é o mandato de liderança. A liderança nem sempre é o inimigo, e a liderança tem uma variedade de pontos de vista. Portanto, suponho que seja possível se conectar com a visão, com todos no espectro e iniciar o poder que o levará adiante. O mandato é extremamente importante. Mas não é um mandato apenas de uma parte interessada. Pode parecer complexo, e é complexo e, se não fosse complexo, não estaríamos falando sobre isso, porém os desafios que temos hoje são ainda mais complexos. Posto isto, a Citizens in Power é uma maneira muito interessante de explorar como podemos responder a algumas dessas questões desafiadoras que enfrentamos hoje.

Quando a Citizens in Power conectou-se à Fundação Gulbenkian e ao Isto é PARTIS & Art for Change?

A Fundação Gulbenkian sempre busca questionar quem faz o quê e por quê, e eles têm apoiado um movimento em torno da cocriação no Reino Unido. A relação teve início com David Jubb na época em que ele era o CEO do Battersea Arts Centre, uma das principais organizações que estava na vanguarda da ideia de cocriação. Como todos nós estamos evoluindo e buscando entender quais são os diferentes níveis de envolvimento, David e eu começamos a articular isso, concluímos que há outra camada de envolvimento que sente que agora é o momento em que o amanhã é hoje.

Os desafios de amanhã precisam ser resolvidos hoje, e acho que há um impulso e um entendimento mais amplo disto, e a Gulbenkian é uma dessas fundações de confiança que, não apenas investem na tomada de riscos, mas que sentimos que compartilham conosco os mesmos valores em relação a sermos críticos sobre onde está o poder e o valor de garantir que isso seja compartilhado de forma crítica. Então, essa é a relação. Por algumas das conversas que estamos tendo no Reino Unido e internacionais, compreendemos que hoje, essa questão sobre quem decide é essencial e vemos como moldamos tudo, cada experiência que temos.

Se você está em uma comunidade que está destruída, se você está em uma comunidade que não tem oportunidades, é porque alguém tomou uma decisão em algum lugar, talvez nem mesmo com más intenções, mas o esquema está comprometido. Portanto, percebemos que cada vez mais, como comunidades, precisamos participar da tomada de decisões e em todos os níveis. Não se trata apenas de política partidária. Precisamos de uma sociedade que tenha mais propriedade em relação ao papel cívico, e essa sociedade é inovadora, empolgante e inclusiva. E essa sociedade será o futuro.

Trabalhando como curador em um espaço artístico, como você pode conectar a arte, os políticos e os cidadãos em uma comunidade?

Para mim, tudo isso, políticos, artes e comunidade, vive dentro da ideia de que faz parte da arte e que trabalhar faz parte do serviço público. É um setor subsidiado em que, para mim, os cidadãos pagam sua parte dos impostos e isso vai para a galeria, para a organização cultural etc. E, instintivamente, para mim, como curador ou como representante de uma galeria, vejo isso como um prestador de serviços e, se você presta um serviço, o objetivo é conectar-se com suas comunidades em qualquer nível de envolvimento. Não precisa ser em torno da Citizens in Power, mas esse envolvimento é realmente fundamental.

E entendemos que eles não são opostos. Como líder, ou como CEO de uma galeria de arte, entendo que há quatro convites diferentes que podem fazer com que as pessoas se envolvam conosco. O primeiro no qual criamos uma exposição para a qual convidamos você a vir e ver a exposição. E esse é um relacionamento e um envolvimento do consumidor. O segundo no qual queremos que você participe da formação de uma ideia. Aqui temos como participação. Na terceira, temos recursos e convidamos você a criar conosco e ver como podemos moldar algo a partir deles. Mas isso não começa com uma ideia que temos. E a última coisa é chegar até você e dizer: "Aqui está este recurso, o que você quer fazer com ele? Quando eu lhe dou esse recurso, talvez você nem queira me procurar, talvez queira fazer outra coisa.

Em cada nível de engajamento, há um valor e um relacionamento, e as organizações oficiais precisam se conectar em todos esses níveis. Atualmente, quando falamos sobre o panorama geral e a compreensão do valor da arte na sociedade, queremos refletir acerca do papel do cidadão que apoia às organizações artísticas com seus impostos.

E, por isso, colocar [o cidadão] no centro de todas as decisões que tomamos, garante que eu seja sempre relevante como organização e que isso seja uma prova futura de tudo o que fazemos, tornando-o mais relevante e mais inclusivo. É surpreendente quando reunimos um grupo de pessoas que não se conhecem, que têm experiências diferentes. A inovação que surge deles é simplesmente impressionante. Sem dúvida, isso é algo que não queremos perder tendo em conta todas as ferramentas de inovação que estamos explorando.

Estes convites e ideias fazem parte da estrutura do workshop Citizens in Power: Engage ministrado na conferência do Isto é PARTIS & Art for Change 2024?

Exatamente isso, mas numa versão reduzida, pois o processo é bastante longo. Essa é uma das dinâmicas na qual trabalhamos por muitas horas na Citizens in Power para entender onde o engajamento está presente. E se faz necessário conhecer o campo de atuação, pois cada forma de engajamento tem seu método, tem sua literatura etc. As pessoas são convidadas a explorarem essas quatro ideias, desde o consumo até a participação, a cocriação e a tomada de decisões. Desta forma, quatro pequenos projetos com os quais acontece uma conversa coletiva com perguntas-chave que são discutidas no final. Esperamos lhes dar uma ideia do que cada um deles significa e como se traduzem no final desta formação.

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