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Saboeiros de Belver: a revolta de um povo e a tradição que se perdeu no tempo

Para deslocações em Belver, há que contar com curvas e contracurvas. O declive acentuado faz…

Texto de Sofia Craveiro

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Para deslocações em Belver, há que contar com curvas e contracurvas. O declive acentuado faz a estrada serpentear pela vila, alternando ruelas de calçada com paisagens de tirar o fôlego. Moradias tradicionais versus o rio Tejo. Montes verdes versus um castelo imponente. Ou talvez tudo isto ao mesmo tempo. Uma mistura quase perfeita entre tradição e natureza, que se mantém preservada na pequena freguesia do concelho de Gavião, Portalegre.

De facto, a própria configuração de Belver parece uma metáfora visual da sua história. Os declives que elevam o castelo fazem concorrência às ruas inclinadas por onde se descobre a povoação. Assim que deambulamos pelas travessas, ficamos imersos naquele quotidiano alentejano que acabou por falar mais alto do que a vontade do rei.

Voltemos então atrás no tempo, para enquadrar o passado conforme a dignidade que lhe corresponde.

Belver. Fotografia de David Cachopo

A história a que nos referimos remonta ao século XV e prolongou-se até ao início século XX, de acordo com a informação disponível no Museu do Sabão, de Belver. Ali, onde se entra e cheira a limpo e a tradição, está preservada uma arte que apenas existe na memória das gentes locais. Nas paredes reza a história dos saboeiros de Belver e de uma indústria que se perdeu no tempo.

Esta indústria era do sabão mole, produto indicado para lavagem do chão e roupas. Produzido a partir de água, cinzas, cal e borras de azeite, requeria para o seu fabrico “uma talha, uma vasilha, uma caldeira, uma colher, uma faca e uma balança”, conforme nos foi explicado por Diogo Ferreira, funcionário do Museu do Sabão de Belver. Os ingredientes eram colocados na talha e eram misturados ao lume. Depois mexia-se até ficar uma pasta que “demorava algum tempo” até ficar sólida, sendo depois cortada e pesada para ser vendida.

“Aproveitando a abundância das matérias-primas necessárias para a produção do sabão, a zona do Alto Alentejo, e particularmente a zona de Castelo Branco e concelhos limítrofes, tiveram desde a segunda metade do século XVI, decisiva importância na indústria saboeira nacional”, de acordo com informação disponível na página oficial do município de Gavião, “de tal modo, que as suas saboarias de Sabão Mole e Sabão de Pedra eram sobejamente conhecidas em todo o reino”.

De facto, a produção deste tipo de sabão tinha uma grande importância económica e social na vila de Belver. Ali foi instalada uma Real Fábrica de Sabão, que funcionou em regime de monopólio régio. O sabão era, portanto, produzido em Belver e enviado para a capital, onde era comercializado. Parte dos lucros revertiam para a coroa.

A grande vantagem competitiva, além da disponibilidade local das matérias-primas, era o facto de a vila estar localizada junto ao rio Tejo, o que facilitava o escoamento do produto para Lisboa, em barcaças.

Barcaças. Fotografia cedida pelo Museu do Sabão de Belver

Mais tarde, no final do século XVIII, passaria a ser autorizada a sua produção noutros locais que não a fábrica, mas apenas sob apertadas regras. “Essa produção autorizada terá correspondido a uma saboaria que obteve licença régia para produzir o produto, conforme a lei em vigor na época”, de acordo com a informação disponível no Museu do Sabão.

Esta produção era, contudo, coexistente com a manufatura ilegal. Na obra Elementos Históricos e Etnográficos de Mação, editada em 1935 pelo respetivo município – que até 1898 abrangia a vila de Belver, localidade que só após esse ano passou a integrar o concelho de Gavião –, Francisco Serrano relata que, apesar das restrições havia “em muitas casas particulares” fábricas clandestinas de sabão, que era produzido “para vender como contrabando a almocreves de fora que ali iam com as suas récuas carregar aquele artigo”, para depois o comercializar em diferentes pontos do país.

A proliferação deste comércio ilegal levou a que fosse implementada uma punição, divulgada em edital, assinado a 8 de outubro de 1808 pelo Juiz Conservador das Saboarias e Tabacos, da Comarca do Crato, a pedido do Administrador das Saboarias de Belver. Nesse documento podia ler-se que: “nenhuma pessoa, que não seja fabricante de sabão e que mostre sua folha e título de fabricante, poderá comprar cinzas e escórias, sob pena de ser presa como contrabandista. E para que assim se pratique na vila de Belver, se passaram editais que serão afixados no pelourinho e lugares públicos, ficando as justiças da terra responsáveis por qualquer omissão que haja”. Metade das penas pecuniárias revertia a favor dos denunciantes, que poderiam fazer a revelação em segredo, e a outra metade ia para a fazenda real.

Fabrico de sabão mole, reconstituição. Fotografia cedida pelo Museu do Sabão de Belver

Perante isto, a tensão foi crescendo na vila, que, por ser de pequenas dimensões, era palco de encontros e confrontos frequentes entre autorizados e contrabandistas. A revolta tornar-se-ia inevitável e, a 16 de maio de 1846, os saboeiros e almocreves decidem pôr fim ao monopólio de forma unilateral.

Esta revolta teve como consequência imediata a chegada de um comissário, que estava incumbido de fazer os levantamentos prediais da vila. Estes levaram a um aumento dos impostos e revelaram todas as fábricas clandestinas que ali estavam instaladas.

“Naquele dia os tais almocreves contrabandistas, juntos aos daquela vila, insubordinaram-se rompendo em gritos subversivos contra o Governo, pretendendo assaltar a Casa do Comissário das novas contribuições e a Regedoria para queimar os documentos e tosar os respetivos empregados”, lê-se na obra de Francisco Serrano, citada pelo próprio Museu do Sabão.

Perante este cenário, o comissário viu-se obrigado a fugir para Mação, “tendo encontrado, no caminho a força militar, que seguiu para Belver onde se conservou por alguns dias até que, a 20, rebentou a revolução em Santarém e seu distrito, e por consequência em Mação, onde, com aproximadamente 3000 homens de todo o concelho, se fez o pronunciamento no dia 24”, lê-se.

Fotografia cedida pelo Museu do Sabão de Belver

“O primeiro ato dos revoltosos foi destituir todas as autoridades administrativas e judiciais e os demais empregados, expulsando-os dos seus lugares, onde colocaram indivíduos seus partidários, nomeando-os por aclamação na praça pública da vila [de Mação]. Depois invadiram as repartições públicas, retirando dali todos os documentos respeitantes a contribuições de qualquer espécie, trazendo-os para o meio da praça da vila onde lhes deitaram fogo, reduzindo tudo a um montão de cinzas”, de acordo com o mesmo livro.

Após a tempestade, veio a bonança com o decreto da liberalização da produção e venda, que entrou em vigor a 1 de junho de 1858. Ficou assim quebrado o monopólio, dando lugar à produção autónoma e artesanal pelos saboeiros de Belver. “A partir daí, estas famílias que trabalhavam na fábrica conseguem não só produzir como também comercializar este produto”, conta-nos Diogo Ferreira.

Museu do Sabão. Fotografia de David Cachopo

As Casas de Sabão Mole, conforme eram designadas, constituíam-se como pequenas fábricas familiares, cuja tradição ia passando de geração em geração. “Após embalado em sacas próprias de sarja e serapilheira, o sabão era utilizado sobretudo em lavagem de roupas e tecidos. Transportado para fora do concelho por almocreves, que se deslocavam em burros, quando as distâncias eram maiores, o sabão mole era transportado pelo rio Tejo em barcaças”, conforme informação disponível na página do município de Gavião.

O ofício persistiu até à primeira metade do século passado. A decadência do produto foi acontecendo aos poucos, motivada pela modernização do setor. “Foi-se descobrindo novas formas de fazer sabão e novos artigos”, diz Diogo Ferreira, que conta ser esse o motivo para o sabão mole deixar de ser produzido na primeira metade do século XX.

Atualmente, a produção de sabão mole é apenas uma memória longínqua, conservada nas paredes do museu. Fundado em 2013, o Museu do Sabão de Belver nasceu precisamente para relembrar uma tradição que já não se pratica. “Já não há ninguém que faça sabão mole na vila”, lamenta Diogo Ferreira, que explicou não existirem sequer vestígios do edifício da Real Fábrica de Sabão. O sabão mole de Belver é hoje um mito, e a sua receita exata, um mistério que não será mais decifrado. “Quem sabia fazê-lo eram, muitas vezes, pessoas analfabetas que não tinham como deixar registos”, explica o responsável. Apesar disso, o espaço recebe “cerca de 4 mil visitantes por ano”, realiza exposições (de outros tipos de sabonetes e sabões produzidos em Portugal), visitas guiadas e workshops dedicados ao tema. Instalado no edifício onde antigamente funcionava uma escola primária, o Museu do Sabão é apresentado como um dos quatro museus do mundo que é dedicado a este produto tão tradicional.

Belver. Fotografia de David Cachopo
Texto de Sofia Craveiro

O Gerador viajou a convite do Turismo de Portugal

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