A depressão e a ansiedade não escolhem idades
As crianças também são suscetíveis de sofrer algum tipo de perturbação mental. Porém, a sintomatologia depressiva nas crianças é muito diferente da dos adultos e é de difícil reconhecimento, pois pode assumir diversas formas. Perturbações como a ansiedade podem ter um impacto significativo na vida das crianças, sendo que, muitas dessas perturbações, quando ignoradas na infância, persistem na vida adulta e aumentam a probabilidade de se desenvolverem outro tipo de patologias.
De acordo com as informações disponíveis no Manual MSD (Manual Merck Sharp e Dohme), cerca de 2 % das crianças sofre de depressão grave, número esse que aumenta para 10 % na adolescência. Perto de 40 % das crianças em consulta de pedopsiquiatria apresenta um diagnóstico estrutural de depressão e, em algumas estatísticas, este diagnóstico chega a estar representado em cerca de 50 % das crianças e adolescentes.
Durante muito tempo, não se associou o sofrimento psicológico às crianças com menos de 10 anos, uma vez que a infância seria “a melhor fase da sua vida”. Em Portugal, na segunda metade do século XX, foram reforçadas as iniciativas de aprofundamento do estudo da “anormalidade” e, em particular, “das anormalidades mentais”. No entanto, o estudo e a importância da resposta aos problemas de saúde mental infantil só foram reconhecidos na década de 1960 com a criação dos Centros de Saúde Mental Infantil e Juvenil em Lisboa, Porto e Coimbra.
Em 2019, a UNICEF apresentou um relatório onde evidenciou alguns dados estatísticos relativamente à saúde mental dos jovens entre os 10 e os 19 anos em Portugal. De acordo com o mesmo relatório, dos 218.014 jovens sinalizados nesta faixa etária, destacou-se uma prevalência de 19,8 % de perturbações mentais nos jovens do nosso país. No mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde também apresentou alguns dados que incidiam nas problemáticas do foro da saúde mental. Segundo o mesmo, na Europa, 9 milhões de jovens dos 10 aos 19 anos viviam com um problema de saúde mental, sendo que 55 % desses problemas estavam relacionados com ansiedade e depressão.
Apesar destes estudos, ainda não foram divulgados documentos oficiais nacionais que constatem qual a prevalência destes problemas em crianças com idades inferiores a 10 anos.
Em entrevista ao Gerador, Raquel Carvalho, psicóloga clínica infanto-juvenil há mais de 10 anos, esclarece que, “não obstante as perturbações psicológicas na infância terem características comuns às dos adultos, têm também manifestações específicas, uma vez que as crianças manifestam as suas dificuldades a nível emocional e comportamental de acordo com a fase de desenvolvimento e maturidade cerebral que estão a experienciar. Por exemplo, nas crianças com perturbação depressiva, a irritabilidade e as birras poderão ser mais frequentes do que o humor depressivo”.


Um dos objetivos do Programa Nacional de Saúde Escolar (PNSE) é a promoção da saúde mental nas escolas, “visando a implementação de projetos que possam constituir uma base de sensibilização, suporte e trabalho para todos os intervenientes no contexto escolar”. A verdade é que a prevalência dos problemas de saúde mental na população portuguesa reflete-se na saúde mental infantil. Posto isto, e considerando que a maioria das crianças e jovens se encontra em contexto escolar durante o seu desenvolvimento, “coloca-se a questão da relação dos cuidados e da qualidade de resposta para os alunos que sofrem com esta realidade”.
Existem múltiplos fatores que podem estar na origem das perturbações psicológicas em crianças, sendo que esses fatores representam uma complexa relação entre os biológicos, os ambientais e os individuais. A psicóloga Raquel Carvalho explica-nos que “os fatores genéticos e o temperamento aumentam a vulnerabilidade. Já os fatores ambientais assentam em aspetos familiares como, por exemplo, o estilo de educação parental, a psicopatologia dos pais, as aprendizagens no meio”. Salienta ainda que as experiências de vida, nomeadamente os episódios causadores de stress ou episódios traumáticos, também são um fator importante e que pode agravar o impacto destas perturbações.
As experiências de vida, nomeadamente os episódios causadores de stress ou episódios traumáticos, também são um fator importante” [e que pode agravar o impacto destas perturbações].
A ansiedade é uma emoção normal e adaptativa que nos ajuda a lidar com a dificuldade, bem como com situações desafiantes ou perigosas. Mas a ansiedade pode tornar-se um problema quando começa a interferir com o quotidiano de uma criança, impossibilitando-a de desfrutar a sua vida habitual e afetando as suas relações na escola, na família, as suas amizades e a sua vida social. “É aqui que a ansiedade domina e a criança acaba por perder o controlo”. Acrescenta-se ainda que as crianças com perturbações ansiosas possuem uma maior probabilidade de desenvolver comportamentos de risco face ao álcool na adolescência.


Raquel Carvalho exerce na clínica Oficina de Psicologia (Lisboa) há oito anos e recebe, maioritariamente, pedidos de consultas para crianças a partir dos 6 anos. A psicóloga foca-se nas diversas perturbações ansiosas que, por sua vez, podem manifestar-se de diferentes formas. Entre elas, destacam-se as fobias (“quando os medos fazem perder o controlo”); a ansiedade de separação (“medo de estar longe dos adultos de referência”); a ansiedade generalizada (“preocupação constante e duradoura”); o pânico (“medo que paralisa”); a perturbação obsessivo-compulsiva (“pensamentos e ações que não se conseguem controlar”); e o stress pós-traumático (“medo e stress associados a uma memória muito dolorosa”).
Tal como defende a psicóloga clínica, o acompanhamento profissional é “imprescindível” para evitar que a sintomatologia da criança piore e interfira negativamente em todas as áreas da sua vida e que o sofrimento da criança e da família aumente. “Quando não se intervém, as consequências são várias”, acrescenta. “Baixa autoestima, isolamento, depressão, fobia escolar ou absentismo escolar, evitamento de situações novas, deixar de concluir tarefas importantes, desenvolvimento de crenças pessoais disfuncionais e padrões de comportamento disruptivos, inexistência de competências de autorregulação emocional ajustada e fraca competência interpessoais”.
A Casa da Praia e a pedagogia terapêutica de João dos Santos
João Augusto dos Santos nasceu em Lisboa a 15 de setembro de 1913 e faleceu a 16 de abril de 1987 na mesma cidade. Formado em Educação Física e em Medicina, especializou-se na área das crianças e participou na origem da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e na autonomização da psiquiatria infantil, tendo ajudado a criar ferramentas para a formação dos educadores e dos tutores.
Em 1975, fundou aquele que viria a ser o último serviço do Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil de Lisboa: a Casa da Praia. Nesse Centro de Saúde Mental, as crianças costumavam ser atendidas numa clínica infantil que funcionava dentro do Hospital Júlio de Matos. Mas João dos Santos constatou que “muitas das crianças não apresentavam problemáticas que justificassem um acompanhamento em meio hospitalar, muito menos em Hospital Psiquiátrico de Adultos”. Dentro desta justificativa, impulsionou a criação de um serviço que pudesse responder às necessidades das crianças, “num modelo de atendimento próximo da comunidade e autónomo dos Hospitais Centrais”.


Por sua vez, o serviço da Casa da Praia surgiu com o propósito de ajudar um determinado grupo de crianças. Essas, embora tivessem capacidades para aprender, não conseguiam integrar-se na escola e assumir esse processo de aprendizagem por algum impedimento emocional.
Dolores Gamito, formada em Educação Especial de Reabilitação pela Faculdade de Motricidade Humana, foi estagiária na Casa da Praia em 1998, tendo mantido ligação com a mesma posteriormente. Trabalhou como psicomotricista até 2020, acabando por assumir a coordenação da equipa da Casa nesse mesmo ano. “Somos uma equipa multidisciplinar enquanto família. Não nos substituímos uns aos outros, mas fazemos todos parte desta casa com um papel distinto”, começa por nos contar em entrevista.
A Casa da Praia fez parte do Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil de Lisboa entre 1975 e 1992, data em que esse foi extinto com a “reestruturação dos serviços de Saúde Mental pelo Decreto-Lei nº. 127/92”. Entretanto, por iniciativa de “um grupo de discípulos e colegas de João dos Santos”, a Casa da Praia transformou-se numa Associação sem fins lucrativos e reconhecida de utilidade pública, “com o propósito de evitar o encerramento deste serviço e dar continuidade à sua obra”. Posteriormente, em 1993, a Associação passou a ser declarada como Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), sob a designação de Centro Doutor João dos Santos – Casa da Praia, nome que mantém até hoje.


Para ajudar uma determinada criança, a equipa da Casa da Praia intervém juntamente com as escolas e com as famílias. Tratam-se, sobretudo, de crianças que provêm de famílias referenciadas por várias instituições como a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) ou a Santa Casa da Misericórdia.
João dos Santos apercebeu-se da importância de olhar para a criança como um todo, não descurando nenhum dos seus contextos de vida. Desta forma, o trabalho da Casa da Praia assenta numa metodologia de intervenção pedagógica terapêutica. “João dos Santos foi um visionário e um humanista. Tinha a consciência de que somos um modelo na forma como nos posicionamos em relação à criança”, explica Dolores Gamito. “Posto isto, não existe apenas um único técnico para cada criança. É diferenciador daquilo que acontece na maioria dos sítios”.
As crianças que frequentam a Casa da Praia têm, na sua maioria, idades entre os 5 e os 12 anos, ainda que o objetivo seja tentar intervir mais precocemente, antes dos 5 anos. Tratam-se, sobretudo, de crianças que apresentam perturbações como défice de atenção, hiperatividade, depressão e ansiedade. “Assistimos ao fenómeno da transgeracionalidade, ou seja, pais que tiveram infâncias e adolescências muito difíceis, e que depois não conseguiram quebrar esse ciclo, perpetuando os problemas. Analisar as infâncias dos pais ajuda a que se perceba melhor a ansiedade dos filhos, mas é um padrão difícil de quebrar”, prossegue a coordenadora.
A equipa da Casa da Praia é constituída por vários técnicos, desde professores, assistentes sociais ou psicólogos. Estes não intervêm no plano de saúde, financeiro ou nas condições de habitação das famílias, mas sim no processo emocional, “acreditando que ao melhorar a saúde mental dos pais, estes poderão construir melhores condições para os seus filhos e exercer uma melhor parentalidade”.
Dolores Gamito refere a importância de haver respeito pelo ritmo das crianças ao longo do processo de intervenção. “Vivemos numa sociedade invadida pela pressa de ver os resultados”, afirma. “Os adultos passam a ideia do “portar bem ou portar mal” e isso já é um juízo de valor. É importante que a criança tenha consciência de qual foi o impacto do seu comportamento. Genericamente, todas as crianças querem agradar os adultos de referência, mas nós queremos que elas tenham o comportamento mais adequado intrinsecamente, porque acreditam, porque se sentem bem, porque querem. Não porque os outros querem que elas se comportem de certa maneira”.
A coordenadora explica-nos que podem ser distinguidas duas vertentes da depressão nas crianças: a instabilidade e os bloqueios/inibição. Por um lado, a depressão nas crianças pode manifestar-se através de comportamentos mais agitados ou mais impulsivos. Por outro, as “crianças que são muito inibidas e que ficam quietas, não dão chatices, passam despercebidas, porque vão cumprindo a norma social, também podem estar, na verdade, a sofrer uma série de danos psicológicos”.


Nuno Rola é psicólogo clínico e, na altura da nossa entrevista, integrava a equipa da Casa da Praia há dois anos letivos. Diz-nos que a Casa da Praia se distingue das outras instituições, pois consegue exercer o seu papel de psicólogo em qualquer um dos espaços da Associação. “É como se fosse uma psicologia sem paredes. Num consultório é mais difícil estabelecer uma relação assim com o paciente”.
O psicólogo, que também trabalha na área do desporto, acredita que é através do corpo que as crianças se expressam. Posto isto, o seu comportamento é o sinal a que os pais e educadores devem estar mais atentos, sendo que o mesmo se altera de acordo com o contexto em que a criança se encontra. “Quando um miúdo não consegue estar quieto numa sala de aula, pensa-se que ele está a fazer aquilo porque quer ou porque é mal-educado. E, em muitas das vezes, não é isso”, acrescenta.
Dolores Gamito partilha da mesma opinião, relembrando que os diagnósticos de saúde mental nas crianças se podem misturar com outras manifestações que podem ser físicas ou neurológicas. “É mais fácil atribuir uma culpa ao comportamento da criança do que tentar perceber o seu significado. Muitos pais pensam que «ela faz isto, porque tem este problema psiquiátrico». «Ela faz isto, porque sai ao tio». «Ou ela faz isto, porque é igual a mim». Isto é assustador”.
Uma das principais questões que aparenta permanecer incompreendida por muitos, é a diferença entre as perturbações mentais nas crianças e nos adultos. De acordo com os profissionais da Casa da Praia, a maioria das perturbações nos adultos consegue ser diagnosticada. Já nas crianças, por norma, conseguem diagnosticar-se, mas tratam-se de um fundo patológico, pressupondo-se que pode ocorrer alguma modificação ao longo do tempo. “Por norma, referimos que se trata de uma perturbação na ordem da depressão, na ordem da ansiedade, na ordem da hiperatividade”, esclarece Nuno Rola. “São crianças que têm dificuldade em conhecer-se a si próprias. Também há falta de verbalização, ou seja, evitam o lado emocional ou o confronto com o mesmo”.


Gamito acrescenta que “a criança fala através do seu comportamento. Penso que esta seja a maior diferença para os adultos. Os adultos têm mais defesas, desenvolveram um certo tipo de contenção, têm mais filtros do que as crianças e usam mais a palavra do que elas. O nosso trabalho é tentar ver para além do que é dito e o que é que aquela criança está a tentar dizer através do seu comportamento e das suas produções, como textos ou desenhos”.
Enquanto psicólogo clínico, Nuno Rola conta-nos que, quando faz uma primeira sessão de terapia com um adulto, o impacto que recebe é o de que foi uma “grande sessão”. Com uma criança, nem sempre. Contudo, a longo prazo, “conseguimos perceber que a implementação da mudança teve mais sucesso na infância do que num adulto. Claro que estamos a generalizar, mas é mais difícil para um adulto lidar com aquilo que traz na sua mochila, com as suas vivências. É uma mochila muito maior e muito menos sujeita à mudança do que na infância”.
A este facto, acrescenta-se ainda que são as figuras de referência, como os pais ou outros cuidadores, que devem procurar dar sentido àquilo que a criança faz. “Se ela cresceu sem ter tido um espelho daquilo que ela própria sente, pensa e vive, vai precisar que alguém do exterior faça essa leitura”, explica-nos Dolores Gamito. “O mais importante é o autoconhecimento e que ela perceba ou antecipe que «quando sinto aquilo, faço isto» ou em que lugares se sentem de determinada maneira. O facto de intervirmos em grupo e não tanto individualmente, faz com que as crianças partilhem as suas realidades, não se sintam sozinhas e também sejam espelhos umas das outras”.
Para além da intervenção coletiva, outra característica da Casa da Praia é a abordagem e o recurso a diversas atividades que envolvem a arte ou o exercício físico, por exemplo. Sara Espadilha, educadora de infância de formação há seis anos e profissional na Associação há dois, diz-nos que um dos principais objetivos da Casa é promover a formação académica das crianças que acolhem, através da escrita, de desenhos, das artes, mas que o seu papel não é ensinar conteúdos escolares. “Não substituímos os professores, as crianças não vêm para cá fazer trabalhos de casa. Somos apenas um complemento. No fundo, estamos a dar-lhes outras formas de expressão para que na escola consigam adquirir os conhecimentos que a mesma lhes dá. Nós reforçamos isso”.
Muitas das crianças que sofrem com ansiedade ou depressão tendem a desenvolver alguma resistência relativamente à escrita, à leitura, sentem dificuldades no raciocínio ou em posicionarem-se relativamente ao tempo e ao espaço, e podem apresentar dificuldades no discurso. Para Sara Espadilha, é importante recorrer aos trabalhos que as crianças desenvolvem e motivar a aprendizagem das disciplinas onde têm mais dificuldades. “Por exemplo, se uma criança escreve um texto, podemos pedir para que ela pegue nalgumas palavras e as reescreva para reviver certos momentos. Se formos às compras, analisamos os preços ou os pesos para envolver a matemática. Tentamos encontrar vias para que a aprendizagem deixe de ser um problema”.
Sara Espadilha acrescenta ainda que, muitas crianças que passam pela Casa da Praia, têm noção do seu diagnóstico, “porque lhes é dito, mas é dito, muitas vezes, de forma depreciativa. Quando o dizem é quase autodestrutivo. O nosso desafio é mostrar-lhes que elas não são o comportamento, são mais do que aquilo que expressam. Se for uma criança agitada, agressiva, que bate, ela não é aquilo. Essa é a maneira como ela expressa o que sente”.


A psicóloga clínica infanto-juvenil Raquel Carvalho alerta para a resposta por parte dos pais relativamente às perturbações das crianças e aos seus comportamentos. De uma forma geral, os pais “devem estar atentos a alterações de humor, a verbalizações de negativismo, a desinteresse pelas rotinas e atividades que pratica, alterações de sono ou apetite que estejam a prolongar-se no tempo”. Mas, também é recomendado que não desvalorizem nem critiquem as emoções da criança, pois, “caso contrário, ela não se sentirá apoiada nem compreendida. É essencial validar e empatizar com a criança, incentivá-la a partilhar o que sente e pensa, evitar a sobre proteção, incentivando-a a sair da sua zona de conforto e, claro, não adiar ou negar um pedido de ajuda do filho”.
A sombra de um pai ausente
“Rita” [nome fictício a pedido da entrevistada] tem 34 anos e uma filha com seis. Encontramo-nos com ela no Parque da Paz, em Almada, local onde nos relata a sua história e os motivos que conduziram à ansiedade da filha.
Manteve uma relação com o pai da sua filha durante oito anos. “Já sabia, inconscientemente, que aquilo que não ia dar certo, mas tentamos sempre”, começa por nos dizer. A relação de “Rita”, que envolveu vários momentos de violência doméstica, terminou quando a filha tinha apenas dois anos. O processo que se seguiu nos anos seguintes, conduziu a várias visitas ao tribunal com pedidos de regulamentação de responsabilidades parentais por parte desta mãe. “Na altura, vi aquilo como uma guerra e defendi-me com tudo o que tinha”.
Em setembro de 2019, “Rita” conquistou a responsabilidade parental, acordando visitas do pai de 15 em 15 dias. Porém, em julho do ano seguinte, o mesmo abdicou dos convívios com a filha. Desde o dia 8 de março de 2020 que a filha de “Rita” não tem qualquer contacto com o pai. “Ela pedia-me para gravar um vídeo, eu gravava, pedia para ligar ao pai, eu ligava… aí, ainda não havia muita frustração, porque ela acabava por se esquecer. Mas partia-me o coração, sempre que ela dizia: «mãe, se calhar o pai já não se lembra de mim. Podes enviar-lhe fotografias minhas»? A frustração de não ter resposta era maior do que a frustração de não ter o número do pai”.
A filha de “Rita” nunca foi diagnosticada com nenhuma perturbação mental, mas a mãe afirma que sempre se apercebeu dos sinais que evidenciavam a sua ansiedade desde que o pai se ausentou definitivamente. “Só chora, só grita. Tem uma necessidade extrema de atenção. Sente-se muito a ausência”, aponta. “Recordo-me de, em janeiro, ter passado por uma situação difícil com ela. Foi numa festa de aniversário. Ela viu todas as crianças com os pais, a brincarem. No final, quando estávamos a ir embora, entrou no carro aos berros e a chorar, a implorar pelo pai”.
Estes momentos são praticamente diários na vida da filha de “Rita”. Para além disso, na altura da separação dos pais, o desfraldo regrediu, algo que se mantém até ao dia de hoje, e deixou de conseguir dormir sozinha para dormir com a mãe.


A psicóloga Raquel Carvalho explica-nos que, na depressão infantil, os sinais de alerta podem ser, por exemplo, o isolamento, a irritabilidade, a agitação ou inibição psicomotora, sentimentos de desespero, desvalorização e culpa, e alterações na alimentação e padrões de sono.
Para além destas questões do foro físico, esta mãe relata-nos os vários momentos em que a sua filha pede para ver fotografias antigas do pai ou se zanga quando surgem as efemérides, como o Dia do Pai. “Eu acho que ela apagou as memórias anteriores aos cinco anos de idade. Imagina coisas que não aconteceram, acha que esteve com o pai há pouco tempo. Faz muitas perguntas sobre o pai. Anda muito nervosa, a zangar-se com tudo, a querer bater. Mas depois expressa verbalmente o que aconteceu e pede desculpa”, prossegue “Rita”.
O psicólogo clínico Nuno Rola fala-nos da importância de as crianças saberem “dar um nome ao que estão a sentir”. “Rita”, que também sofre de ansiedade e depressão, e é acompanhada psicologicamente, tem clara noção de que “o mau comportamento” da filha é “uma chamada de atenção” e consequência do abandono do pai. “A minha filha sabe a verdade desde o início, sabe que o pai se afastou por escolha. Eu não gosto de assumir que faço o papel de pai e mãe, porque não faço. Pai é pai. Há uma ausência”.
“Rita” assume que a filha tem também medo do abandono. “Quando um adulto de quem ela gosta se vai embora, ela demonstra dificuldade em despedir-se da pessoa. Comigo é bastante evidente. Tive de lhe dizer várias vezes que nunca a ia deixar”. Para além disso, tem muita dificuldade em socializar e dar confiança a pessoas do género masculino.
A filha da nossa entrevistada é acompanhada pela psicóloga da escola que frequenta e as educadoras da instituição têm estado atentas ao seu comportamento, pois têm conhecimento do seu histórico. Ainda assim, para “Rita”, a maioria dos professores “não sabe o que é saúde mental. São os primeiros a ralhar, a exigir que uma criança fique quieta numa sala de aula. Normalmente há 1 psicólogo para 500 crianças. Isto começa nos adultos. É importante tratar da sua saúde mental primeiro, pois são eles que educam as crianças”.


“Rita” prossegue no seu discurso, afirmando que tem medo “do que possa acontecer no futuro, tendo em conta a ausência do pai”. “Quer queiramos, quer não, a figura masculina é muito importante para a vida das miúdas. Vê o meu caso, quando cresci, fui à procura do exemplo que tinha em casa”, diz, referindo-se ao pai que, segundo ela, também tinha comportamentos violentos. “Não quero que a minha filha pense que não tem valor para o pai não gostar dela”.
De modo a ajudar a filha, a nossa entrevistada faz acompanhamento de parentalidade positiva. “Se eu não fizesse terapia, ela andava a palmadas e era só uma miúda que fazia birras”, remata. “Existem crianças que têm mesmo maus comportamentos e que batem. Essas crianças não são más. Não são. Essas crianças precisam de colo e, se calhar, chegam a casa e ainda levam porrada a seguir. Não se diz a uma criança que não pode fazer algo mau com algo mau”.
O modelo de educação por parte dos pais é uma das questões que a Casa da Praia costuma ter em conta quando aceitam ajudar uma determinada família. Isto é, tal como aponta o psicólogo Nuno Rola, perceber se “os medos que os pais/tutores projetam podem revelar-se nas crianças? O insucesso escolar, laboral, relacional. Ou será que tem mais que ver com aquilo que eles reconhecem como angústias”?
“A maior parte dos pais que têm estas crianças recebe queixas em qualquer contexto onde estejam”, acrescenta Sara Espadilha. “O que nós fazemos é mostrar que eles são competentes. Ao darmos outra visão da criança, melhoramos também a dinâmica familiar. Muitos destes pais estão saturados, sentem que já não têm soluções, sentem-se culpados ou incapazes”.
“Rita” admite que teve de trabalhar a sua própria ansiedade e a sua culpa para perceber que foi o pai da sua filha que não quis manter-se nas suas vidas. Conta-nos ainda que nunca a impediu de ver o pai e que, se algum dia o mesmo quiser estabelecer contacto novamente, que o irá permitir.
Apesar de tudo, “Rita” considera a filha “uma criança feliz, equilibrada e madura para a idade que tem”, e espera que a sua ansiedade não se prolongue a longo prazo, pois tem medo das consequências que isso possa trazer na adolescência.
Tal como a coordenadora Dolores Gamito afirma, “intervir na infância traz mais probabilidade de se tornarem adultos mais felizes e que tenham filhos igualmente felizes. Se mudarmos o início da história, mudamos a história toda”.
A saúde mental infantil e a pandemia da COVID-19
É sabido que a pandemia que surgiu em 2020 trouxe algumas mudanças a nível da saúde mental da sociedade portuguesa devido, especialmente, ao isolamento e ao distanciamento social. Contudo, os estudos que foram realizados nos anos seguintes não abordam este assunto relativamente às crianças com idades inferiores aos 10 anos.
No que diz respeito à pandemia da COVID-19, os efeitos na saúde mental das crianças derivaram das preocupações face à própria doença e incertezas sobre o contágio. No início da pandemia, as creches e as escolas fecharam de um dia para o outro, forçando a interrupção do convívio das crianças entre si e com os educadores, e obrigando-as a ajustarem-se, de forma abrupta, às novas regras e realidades.
O contacto físico e a socialização são fundamentais para o bem-estar de todo o ser-humano, mas as crianças tornam-se particularmente vulneráveis, porque mudanças nefastas no ambiente podem condicionar negativamente o seu desenvolvimento social, cognitivo e emocional.


Mariana tem 35 anos e tem dois filhos, um rapaz de seis anos e uma rapariga com três. Quando a pandemia eclodiu, Mariana estava grávida da sua filha. Juntamente com outros membros da família, optou por fazer o confinamento numa casa de férias no Algarve. O filho, na altura com três anos, frequentava o infantário. “Ele tinha os seus amigos, tinha a sua rotina e, de repente, a rotina acabou”, começa por nos contar.
A repercussão da pandemia tornou-se mais preocupante em crianças que sofriam de doenças do foro mental e do desenvolvimento. As mudanças súbitas da rotina diária tiveram consequências e potenciaram sintomas já existentes, aumentando o risco de complicações emocionais, comportamentais e do relacionamento. De acordo com o artigo “COVID-19: o impacto no desenvolvimento infantil”, elaborado pela pediatra Catarina Figueiredo, “a permanência em casa e a limitação das atividades ao ar livre podiam agravar as características de agitação e impulsividade das crianças com perturbação de défice de atenção e hiperatividade. No caso das perturbações do espetro do autismo, o isolamento social podia levar a um aumento do risco de condutas disruptivas e dificuldades no relacionamento com os pares”.
De acordo com o mesmo estudo, as crianças com necessidades educativas especiais necessitaram de suporte adicional para se adaptarem às novas rotinas e para compreenderem as mudanças. Já “os jovens mais suscetíveis, desenvolveram sintomas de ansiedade, depressão e, em alguns casos, comportamentos obsessivo-compulsivos relacionados com a higiene e a desinfeção”.
Semanas depois de ter começado o primeiro confinamento da pandemia, a nossa entrevistada Mariana começou a reparar que o filho não parava de roer as unhas e se recusava a lavar as mãos. “Dizia que não via o coronavírus, logo ele não existia. Estava sempre a perguntar «porque é que eu estou aqui»?
Mariana percebeu que a única justificação para que o filho roesse as unhas seria uma perturbação de ansiedade. “Explicámos-lhe que não podíamos sair, que era uma doença grave e que se transmitia muito depressa”, prossegue. “Mas ele não compreendia. Tinha tudo, menos a rotina dele. Estamos a falar de uma casa de férias com 300 metros2 e meio hectare de jardim, portanto confinado era tudo menos o que ele estava. O que eu sei, é que deixei de cortar as unhas ao meu filho de tanto que ele as roía”.


O filho da nossa entrevistada passou a ser acompanhado por psicólogos e psiquiatras em setembro de 2022. “Ele está a reagir à existência da irmã e aos seus problemas, não controlando as suas necessidades fisiológicas básicas”, explica-nos. “Isto já se estava a arrastar há um ano. Decidimos fazer análises e estava tudo bem. Percebemos que era psicológico”.
Dolores Gamito afirma que a pandemia “foi difícil para a maioria das famílias. Agora, passar um confinamento com uma família inteira, onde existe uma criança desafiante e onde existem poucas condições, foi realmente muito difícil para as famílias com que trabalhamos”. Com a pandemia, a Casa da Praia começou a receber pedidos de crianças com idades mais avançadas, tendo observado, posteriormente, mais dificuldades nas mesmas perante a escola ou no relacionamento com os outros, o que, por sua vez, também teve impacto na própria aprendizagem e no desenvolvimento.
Nuno Rola considera que a saúde mental infantil ainda não é tida em consideração ou que é apenas quando soam os alarmes comportamentais. “Existe uma negligência grande em relação à saúde mental infantil. A mesma só se tem em atenção quando a expressão comportamental é muito evidente. Quando isso acontece, as crianças têm mais dificuldades e tendência para a depressão em adolescentes, porque não tiveram o apoio antes. Precisamos de ter a oportunidade de construir relações de qualidade e isso engloba tudo. Quer seja um adulto ou uma criança. A diversidade de contextos e as relações de qualidade são fundamentais”, conclui.
Por sua vez, Sara Espadilha sente que “estamos sempre a correr atrás do prejuízo, porque só intervimos quando a criança se comporta muito mal. Falta o precoce, falta começar na gravidez. Tenho a certeza que se começarmos a intervir nessa fase, grande parte dos problemas do foro mental diminuem”.
A nossa entrevistada, Mariana, que também foi acompanhada por um psicólogo quando era jovem, explica-nos que decidiu partilhar a sua história para contribuir para que as pessoas ficassem mais informadas. “Sempre fui educada para expressar o que sinto e sempre fui incluída nas decisões familiares. A nossa opinião era tida em conta”, acrescenta. “Acho que, se há um problema, se se nota uma diferença de comportamento na criança, deve ser tratado com quem estudou para isso”.
A coordenadora Dolores Gamito adverte para o facto de serem precisos mais recursos para ajudar as crianças que sofrem com algum tipo de perturbação mental. “Precisamos que as pessoas vivam melhor, com mais qualidade de vida. Se não melhorarmos as condições de vida das pessoas, vamos andar sempre nisto. É um ciclo. As crianças são mais resilientes do que aquilo que imaginamos, mas há um sem número de questões sociais e estruturais que, se não forem abarcadas nesta medida, podemos ter 30 psicólogos em cada centro de saúde que, mesmo assim, não será suficiente”.
A negligência da saúde mental infantil parece continuar evidente em Portugal. A verdade é que, muitas perturbações psicológicas experienciadas na adolescência e vida adulta, poderiam ter menor gravidade, ou até ser evitadas se, aquando do surgimento dos sintomas na infância, houvesse acompanhamento psicológico. Com efeito, todos os profissionais são unânimes em afirmar que, quanto mais precoce for a intervenção, menores serão as repercussões negativas futuras e maior a capacidade da criança para desenvolver recursos pessoais positivos, competências de inteligência socio-emocional e resiliência, essenciais para o seu bem-estar e sucesso na vida.