Em “Pas d’agitation” danço com três bailarinas. A experiência é mais do que especial. Primeiro o embate com o meu corpo de agora, que afinal mudou e ultrapassou-se, mais do que julguei antecipar. Depois o não falar que a dança pede - que chata eu, sempre a querer tudo traduzir cá para fora em som. E ainda a aceitação da diferença de linguagens, de outras traduções que tenho de fazer, ser o que consigo, ultrapassando-me ainda assim.
As manhãs mudaram o corpo, que mudou aquelas manhãs. No chão de linóleo do estúdio de dança estende-se sempre uma diferença entre mim e as bailarinas. E outros grandes abismos entre elas existem, claro. O nosso léxico é longínquo e negociado. Elas esticam-se todas, aquecem tudo, esperneiam, acordam-se e eu, em vez de corpo, uso ainda por vezes em demasia o cérebro, não como músculo mas como coisa encarquilhada, a querer tudo intelectualizar. Dançando, mudas que ali somos às palavras, tocamos um sítio, talvez perfeito, entre o pensamento e a acção. Sem sabermos já quem pensa - se o corpo primeiro e depois o coração, a cabeça, ou primeiro o átomo invisível e depois o universo com ele.
A bailarina deixa as costas mexerem, talvez pense nas montanhas, não sabe o que fará a seguir, surge uma imagem, o corpo cria espaço. Tudo sempre em movimento. Eu, penso primeiro nas montanhas, finjo ser uma, não consigo, torna-a mais pequena, tento desenhá-la no ar, não é nada disto. Eu, não resisto em mostrar, em estar sempre a mudar, aborreço-me, esgoto-me mais depressa do que podia. Quero tudo concreto e imitável, não me deixo repetir até algo acontecer. Não permaneço. Tento não pensar em demasia. Usar a minha vergonha para começar. Fecho os olhos para tentar melhor. A imagem primeiro e o movimento depois. Tento que a música não mande em mim. Penso em cordas, em velas de barcos, em músculos. O que é uma montanha, uma pedra. O que é a dureza. Começar devagar. É tudo o mesmo - movimento e imaginação. É preciso deixar contaminar, é preciso o loop, a continuidade, a repetição em evolução. Amputação, dureza, infinidade.
Há um jarro exposto no Louvre que me fez pensar na minha morte. Isto disse-me um grande amigo, um dia, acabado de regressar de Paris. Pus-me a pensar que poderia ter sido eu.
Há um jarro, no Louvre, que me faz pensar na minha morte. É pequenino, frágil, com rachaduras, imperfeições, lascado já, e eu olho para ele e sei que vou morrer e que ele vai continuar. Ia eu em passeio distrair-me e dei de caras com a mortalidade, sem aviso. Se calhar ele pensa o mesmo de mim, mas ao contrário: “Que sorte! Esta pessoa olha-me, chora e pensa melancolicamente no seu fim, enquanto eu, sem poder morrer, continuo. Ou talvez eu possa, por algum embate exterior, desfazer-me em pó. Ainda assim continuando. Ela” - diz o jarro de mim - “ela reduz a sua existência ao seu invólucro, e reduz a minha ao mesmo, como se não houvesse o espírito e os nossos detritos não se pudessem misturar na energia sempre em movimento do espaço infinito.” Falámos muito o jarro e eu.
Tenho dificuldade em dizer que sou artista, ou actriz, porque ao invés de profissões são para mim palavras que embrulham formas de passar a minha vida. É importante dizer do medo da morte, pois. Medo não, medo é sentimento do momento, só temos medo no presente em que ele nos está a acontecer. O que sinto é por antecipação e projecção. Temor?
On s'est connu, on s'est reconnu
On s'est perdu de vue, on s'est r'perdu d'vue
On s'est retrouvé, on s'est réchauffé
Puis on s'est séparé
Quand on s'est connu, quand on s'est reconnu
Pourquoi s'perdre de vue, se reperdre de vue ?
Quand on s'est retrouvé, quand on s'est réchauffé
Pourquoi se séparer? [1]
Quase Junho,
Dois mil e mercúrio retrógrado
[1] Letra de “Le Tourbilon” de Jeanne Moreau
-Sobre Sara Carinhas-
Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres Assim, Madre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.