Sofia Saldanha nasceu em Braga e trabalhou na Rádio Universitária do Minho (RUM) durante 15 anos. Apesar de nunca ter estudado rádio, rumou para Inglaterra para fazer o mestrado na área: “Foi um começar ao contrário.” A rádio pode comportar muitas coisas, mas foi com a cadeira de Creative Media que descobriu o seu talento para os documentários áudio.
Mais tarde, começou a dividir a vida entre Londres e os EUA. Foi nessa cidade europeia que começou a colaborar com a In The Dark, “uma associação que foi criada para divulgar trabalhos radiofónicos, assim mais criativos”.
Em 2017, lançou uma série documental áudio sobre a vida e obra do poeta português Fernando Pessoa, que demorou três anos a produzir. Composta por 15 episódios, “Não sei o que o amanhã trará – um passeio sonoro na Lisboa de Fernando Pessoa” é um audioguia pela cidade de Lisboa, à procura dos locais que marcaram a vida do escritor.
Gerador (G.) – Fizeste um mestrado na área da rádio no Goldsmiths College, em Londres, e continuaste os estudos em rádio no Salt Institute for Documentary Studies, nos EUA. Quais foram as maiores diferenças que encontraste no ensino da rádio entre estes países?
Sofia Saldanha (S. S.) – Eu acho que nos EUA, Inglaterra e norte da Europa existe uma grande diferença nesta área da rádio documentário. Fazem-se coisas muitos diferentes daquelas que se fazem em Portugal. Aqui, temos bastante reportagem radiofónica, mas a maneira como a fazemos é uma maneira jornalística e digamos que, principalmente na Europa, existe outro género que é mais artístico. Quem faz não é necessariamente um jornalista, é um criador sonoro, um artista sonoro. É este género de programa em que se exploram as coisas de maneira diferente. São programas que usam muito o som e também é mais poética e muito metafórica. É quase um cruzamento entre poesia, documentário e ficção. Estou-me a lembrar de um exemplo em que o próprio realizador está muito presente, mas nós aqui temos uma rádio mais convencional. Em Inglaterra, a BBC toma conta de tudo, mas também existem alternativas. Agora com a Internet há muitas coisas que estão a ser feitas que não passam na rádio, só na Internet. Nos EUA, também há um boom enorme.
No meu trabalho, estou muito interessada na parte da ficção, que eu acho que é muito interessante. A rádio é um meio que chega a todo o lado: nós podemos estar aqui, podemos estar a cozinhar ou a passar a ferro e estamos a ouvir. Não exige a obrigatoriedade da imagem. Recentemente, criei o In The Dark Lisboa, onde tenho organizado sessões de escuta e as pessoas ouvem no escuro. Tento fazer todos os meses, o que nem sempre é possível, mas as pessoas vão, apagam-se as luzes e ouvem.
G. – Em 2010, recebeste o prémio Best New Artist Award no Third Coast International Audio Festival, em Chicago. O que é que simboliza este prémio para ti?
S. S. – Este prémio mudou completamente a minha vida. Eu ganhei este prémio com um trabalho que fiz na escola, quando estava a fazer o mestrado. Era um documentário, dividido em três partes, sobre aquelas pessoas que estão nos museus a guardar os quadros. Conheci imensa gente nesse festival áudio e, a partir daí, comecei a colaborar com o In The Dark, que estava a começar em Londres.
G. – Indo ao ponto da conversa, como é que surgiu esta série documental sonora sobre Fernando Pessoa?
S. S. – Então, eu fiz uma série documental e um audioguia, que saiu há dois anos e está online de forma gratuita. Quando comecei a fazer este trabalho, a minha ideia era tornar o Fernando Pessoa mais humano. Nós vemos aquela figura meia enigmática, afastada, que escreveu isto e aquilo, que está sempre a contradizer-se... Não percebemos muito bem de onde é que ele vem nem a vida dele. A minha ideia foi investigar quem é aquele homem, porque é que ele fez as coisas assim. Explorei essa parte para o público em geral, mas também para os estudantes.
Decidi fazer um audioguia e então construí este trabalho de 15 episódios, cada um num lugar diferente. Começa no Largo de São Carlos, onde nasceu, depois há um percurso na Baixa e no Campo de Ourique. Comecei a fazer de uma forma espontânea quando vinha a Portugal: fazia algumas entrevistas e lia sobre Fernando Pessoa. Este processo demorou três anos, mas ainda bem porque foi uma maneira de ir absorvendo a informação. Entretanto falei com a Casa Fernando Pessoa, e eles envolveram-se e financiaram o processo. Fizeram alguma consultadoria e deram-me algum apoio logístico.
G. – És fã do escritor?
S. S. – Sou megafã. Eu gosto do Pessoa, mas depois percebi que não sabia muito sobre ele e ainda hoje tenho essa sensação. É uma personagem tão complexa. Mas sinto que conheço um bocadinho e, na verdade, foi um trabalho em que nunca pensei: “Estou farta disto.” Eu estava sempre a atrasar porque não queria largar. Foi difícil fechar porque estava sempre a descobrir coisas novas. Acho que o Fernando Pessoa mudou a minha vida.
G. – Como é que foi o processo de pesquisa e execução do trabalho? Foi fácil chegar aos recursos?
S. S. – Foi fácil chegar às pessoas, foi fácil chegar aos documentos, mas foi difícil processar a informação, sobretudo ter de escolher o que entra no documentário e o que não entra. Eu tinha, ao todo, 25 horas de áudio. Tive de resumir para duas horas e meia, mas a ideia inicial até era uma hora, mas era impossível. Fiquei com a dúvida se será uma audioguia difícil de fazer. Mas sim, foi difícil e tirou muitas horas de sono. Mas eu também sou um bocadinho obcecada e não sei separar a minha vida pessoal da minha vida do trabalho.
G. – Tens recebido feedback dos utilizadores?
S. S. – Sim, e tem sido muito positivo. É engraçado que foi há dois anos que eu lancei o trabalho e é como se não tivesse passado tempo, porque o feedback está sempre a aparecer.
G. – Na tua opinião, o som é a forma de linguagem mais desvalorizada?
S. S. – Sim, o som é completamente desvalorizado porque nós não pensamos nisso. É como se estivesse escondido porque é invisível. Se pensarmos, como seres humanos, o primeiro sentido é o som. Quando estamos dentro da barriga da nossa mãe, o nosso primeiro contacto com o mundo exterior é o som. O som é tão presente que nunca conseguimos desligar os ouvidos. Nos filmes de terror, por exemplo, há determinadas sonoridades que representam determinadas cenas. Se ligarmos a televisão e virmos um castelo sem som, isso é muito diferente de estarmos a ver o castelo e a ouvir uma trovada. Mas sem o som, nós não temos essa perceção. No entanto, se estivermos numa sala escura e ouvirmos a trovoada, o impacto é completamente diferente.
G. – Para contrariar isso, o número de podcasts está a crescer...
S. S. – Sim, e acho isso espetacular. Mas tenho alguns sentimentos ambivalentes. Acho espetacular estar a dar-se essa importância ao som, mas ao mesmo tempo isso não significa que o áudio criativo esteja a crescer. Eu acho ótimo cada um ter o seu canal e fazer aquilo que quiser, mas, talvez por falta de meios, sensibilidade ou conhecimento, tenho alguma pena que não se façam trabalhos mais criativos. Espero que se comecem a fazer mais e acho que vai acontecer.
G. – Já pensaste em fazer uma nova série documental do mesmo estilo com outro escritor ou figura portuguesa?
S. S. – Já pensei. Tenho vários projetos desse género. Por acaso tenho um sobre um escritor, mas tenho outros que não são sobre escritores. Eu não vou revelar, porque não vale a pena. Mas este até é bastante mais complexo...
G. – Mas em Lisboa?
S. S. – Pelo país.