O Teatro Playback é uma forma de representação improvisada, em que o protagonismo é dado às pessoas do público e às suas histórias. A partir das narrativas da audiência, cria-se um momento de comunidade e partilha.
No grupo de Teatro Playback da ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, a confiança é trabalhada de forma profunda. São vários os exercícios de aquecimento que marcam as três horas de ensaio, realizadas na Biblioteca Municipal Palácio Galveias (Campo Pequeno), todas as quartas-feiras, ao fim do dia. Há um trabalho constante no sentido de pôr o outro à vontade. Os desafios são lançados, e todos os participantes abraçam essa saída da zona de conforto.
De pés descalços, vemos corpos que se entrelaçam para contar uma história, olhares que se conectam em busca de um encontro mais poético, desabafos sobre experiências pessoais que trazem ao de cima emoções reprimidas, partilha de opiniões sobre questões relacionadas com os direitos humanos, liberdade, escolhas, receios, mágoas, visibilidade e reconhecimento.
À medida que o tempo vai passando, o grupo mostra-se cada vez mais próximo. A empatia entre todos vai crescendo, e as histórias nascem umas das outras. Após o aquecimento, começa a performance de Teatro Playback.
Sentados em cadeiras, numa posição de escuta profunda, os participantes do grupo de teatro da ILGA procuram dar voz a histórias contadas por outros membros da companhia.
O moderador da performance conduz a relação de quem conta a história com os membros voluntários em palco. António Vicente e Teresa Lanita, atores da equipa do teatro Playback, conduzem o ensaio e dão a forma que guia a representação artística de cada história partilhada. Ouve-se “Em coro. Vamos ver”, e assim começa uma harmonia improvisada que une os corpos e as mentes.
Os participantes que vão atuar levantam-se e posicionam-se em forma de diamante. Os movimentos vão surgindo, fazendo ecoar gestos e palavras através da escuta, da interpretação e da criatividade. A história ganha uma dimensão artística, mas o retrato é feito da forma mais fiel possível.
Não escapa nenhuma palavra dita em voz alta, nem qualquer emoção que tenha ficado escondida. Tudo passa a fazer sentido quando a história de cada pessoa ganha voz e expressão corporal em palco.
A performance termina com os participantes da atuação a colocarem a mão no coração e a dirigirem-na, de seguida, para a pessoa que narra a história. Esta ação revela um sentido forte de união, que é reconhecido como um agradecimento.
Todos em palco estão em pé de igualdade. Quer as pessoas que estão a atuar de forma mais direta, quer aqueles que estão a criar melodias. Nos ensaios, os membros circulam pelos vários lugares – condução, música, performance – para que o grupo perceba o que é estar em todas as vertentes artísticas do Teatro Playback.
Um projeto com sentido de comunidade
O grupo de teatro universitário do Ispa (Instituto Universitário) – dISPAR – incubou uma companhia de Teatro Playback na ILGA Portugal, com o objetivo de permitir à associação utilizar este tipo de representação artística improvisada como ferramenta para defender os direitos humanos.
Este projeto surge de uma candidatura ao Programa Cidadãos Activ@s, financiado pela Fundação EEAgrants, apoiado pela Islândia, o Liechtenstein e a Noruega. A Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação Bissaya Barreto são as entidades gestoras do programa em Portugal.
Neste momento, existem três companhias de Teatro Playback ativas em Portugal – a ILGA – Portugal, o Clube Safo (tem por objetivo o apoio e a defesa dos direitos das mulheres lésbicas, sendo um espaço de intervenção social, cultural e política) e o Ultimacto (Grupo de Teatro da Faculdade de Psicologia e Instituto de Educação da Universidade de Lisboa).
Elsa Childs, técnica de Teatro Playback, é responsável pela formação e certificação dos beneficiários do projeto. A atriz cita o poema de Marta Chaves “O som das palavras sem voz” para definir o principal conceito desta forma de arte improvisada.
“O facto de as pessoas verem as suas histórias desenvolvidas em palco com aquele nível de detalhe e profundidade aproxima-as” – Elsa Childs, técnica de Teatro Playback.
Desde cedo ligada ao mundo das artes, Elsa Childs mergulhou de cabeça no Teatro Playback quando foi convidada para fazer uma formação no Ispa.
“Foi uma paixão à primeira vista. Percebi que queria fazer isto para o resto da vida, porque junta a vertente artística, criativa, estética e de serviço à comunidade”, diz a performer num ambiente rodeado de livros e de algumas bandeiras de apoio à comunidade LGBTI+.
Segundo Nuno Amarante, gestor do projeto, docente e investigador no Ispa, “o Teatro Playback habita algures entre a arte e os efeitos terapêuticos. É transformador para quem faz e para quem assiste”.
Durante todo o ano letivo de 2022/2023 acontecem ensaios improvisados, uma vez por semana, durante um período de três horas. Estes momentos são acompanhados por um técnico de Teatro Playback e um técnico de Psicologia.
Tudo começa por uma formação neste género de representação artística e, ao longo do ano, a liderança dos ensaios é passada aos membros da companhia.
Nuno Amarante, gestor do projeto, fala sobre o grande objetivo de haver sustentabilidade e autonomização destas companhias de Teatro Playback após o fim do programa. “Queremos tornar possível que um grupo informal, ativista, constituído por voluntários e voluntárias, depois possa continuar e perdurar”, diz com um tom de esperança.
Elsa Childs reforça a importância de uma postura de escuta profunda e a preocupação ética deste trabalho em palco: “Há a convicção absoluta de que não queremos que nenhuma pessoa se sinta desrespeitada, mal ouvida, incompreendida”. A artista olha para esta preocupação como o espelho de uma postura fértil para fazer Teatro Playback.
Nas performances de Teatro Playback a realizar em escolas (3.º ciclo e ensino secundário da grande área metropolitana de Lisboa), serão solicitadas narrativas aos membros da audiência sobre temáticas relacionadas com os direitos humanos, nomeadamente as questões de identidade de género. Aquilo que viveram, testemunharam, pensam e sentem é trazido para o palco através do improviso.
A necessidade de uma luta constante
Muitas associações atuam na luta pelos direitos humanos e são especializadas em temáticas relacionadas com algumas populações mais vulneráveis, porém carecem de novas ferramentas de sensibilização junto dos mais novos em contexto escolar. O Teatro Playback pretende capacitar estas associações, como a ILGA Portugal, a trabalharem os direitos humanos com populações-chave.
Na Rua dos Fanqueiros, número 40, mora o Centro LGBTI+. Neste espaço comunitário, fundado pela ILGA, em 1997, vive também a luta pela igualdade, o combate à discriminação e o apoio à expressão artística, que serve de palco a identidades, muitas vezes, silenciadas ou marginalizadas.
Gonçalo Aguiar, responsável pela gestão comunitária e coordenação geral do Centro LGBTI+, desce as escadas e abre a porta a um mundo próprio, onde cabem todas as pessoas que estão à procura de um espaço seguro para serem elas mesmas na sua plenitude.
Aqui, soa a música em volume baixo acompanhada de uma conversa informal. As pessoas que fazem parte da identidade do Centro LGBTI+ vão entrando e saindo à medida que o diálogo é acompanhado por olhares, que procuram decifrar o significado de uma luta contínua.
“Qualquer luta por uma população historicamente oprimida tem de ser contínua e o passado recente diz-nos que essa luta é preciso ser feita por cada vez mais pessoas aliadas”, afirma o responsável pela gestão do centro comunitário entre pausas que procuram encontrar a melhor forma de expressão.
Uma das características principais encontradas por Gonçalo Aguiar no Teatro Playback é que “permite aos artistas obter algo no processo de crescimento e aprendizagem dessa forma de arte, mas também consegue dar esse retorno ao público que está a visualizar”.
A importância de um espaço comunitário
Gonçalo Aguiar desloca-se pelo corredor e revisita com profundidade cada canto ilustrado de memórias. Nestas paredes, assiste-se a uma forma de existência livre e autêntica. Sem qualquer tipo de imposição, o talento e a arte são exibidos através de fotografias, quadros, pinturas e conquistas marcantes.
Num espaço seguro, onde as pessoas podem interagir umas com as outras e emancipar-se por diferentes caminhos e trajetórias, os grupos comunitários do Centro LGBTI+ apresentam-se também como um pretexto para todos saírem de casa, experienciarem novas realidades e conviverem entre si.
Como defensor dos direitos da comunidade LGBTI+, Gonçalo Aguiar reforça a importância de as pessoas participarem nas atividades do espaço comunitário, pois qualquer esforço constitui uma forma de emancipação.
Gonçalo Aguiar fala sobre uma justiça portuguesa, que não está adaptada às necessidades do século XXI. “Falta-nos informação, enquanto país, enquanto população. Falta-nos aprendizagem, formação”, afirma sem tirar os olhos da arte marcada por histórias, experiências e ambições.
Em Portugal, 15,9 % dos adolescentes dos 13 aos 15 anos indicam ter sofrido bullying, segundo os dados do relatório “A Saúde Dos Adolescentes Portugueses em Tempos De Recessão”, HBSC, 2018). O projeto de Teatro Playback irá incubar três novos grupos que irão realizar performances em escolas na grande área metropolitana de Lisboa, sobre temáticas dos direitos humanos, nomeadamente o bullying homofóbico e transfóbico.
“Cada pessoa que consegue viver fora do armário é mais um bocadinho de força que nós garantimos à luta que será mais dificilmente revertida” – Gonçalo Aguiar, responsável pela gestão comunitária e coordenação-Geral do Centro LGBTI+.