Com os dedos, enrolo os meus caracóis molhados. Como se os meus cabelos fossem memória, o gesto traz à cabeça aquela menina de Gaza. Reflete no espelho a minha imaginação: ela sentada no chão, com os cotovelos estendidos no colo da mãe. A mãe na cadeira a trançar o cabelo dela, como se o fim não estivesse à sua espera. De repente as madeixas de ambas trançam-se para todo o sempre. “É a minha mãe, conheço-a do seu cabelo… hay emy ba3rfha men Sha3erha.” É pelo cabelo que a menina reconhece o cadáver do que era a sua mãe. É pela trança que a mãe faz a sua despedida antes de ser morta por uma bomba aleatória israelita. Passa o tempo, mas cada vez que acaricio os meus caracóis, o espanto de Talin de cabelos trançados, ecoa na minha juba: “hay emy ba3rfha men Sha3erha.”.
Em cada dia deste genocídio, menos uma madeixa. Morre uma, queima-se outra, rapa-se o que ficou nas cabeças palestinianas pela escassez de água e propagação de doenças. Era melhor pôr fim ao que restou em nós de cabelos humanos. Penso nas mulheres que em solidariedade com Gaza raparam o seu cabelo em frente do parlamento do Reino Unido. Enrolo o meu cabelo à volta do dedo indicador sem saber o que penso. Foi sororidade ou privilégio?
Penso em marcar um corte de cabelo no meio do genocídio, tento me enganar para afastar os tais sentimentos, repetindo o hino poético darwishiano de sempre: “Também nós amamos a vida, quando podemos.” Um copo de vinho, passear o cão, fazer amor, apanhar o metro, um corte de cabelo e um genocídio. Coisas que acontecem no dia a dia. Será Dégradé, como aquele filme que se passa exclusivamente num salão de beleza lotado em Gaza, aquela faixa politicamente degradada, dégradé, onde todos os eventos capilares nela acontecem. Uma terra cujas histórias de morte e resistência deixam os cabelos em pé.
Um corte de cabelo para largar as nossas madeixas rachadas em cada casa ocupada. Um corte de cabelo que se assemelha ao Voyage to Jerusalem, a performance onde a artista se muda de cadeira para cadeira cortando um bocado do seu cabelo com uma tesoura ligada ao seu próprio corpo, tentando depois, sem êxito, pôr a madeixa cortada de novo no seu lugar. Atira o cabelo ao público, despe-se e vai embora. Quantas vezes tiveram as mulheres palestinianas de mudar de cadeira? Quantos fios de cabelo perderam desde o seu primeiro exílio das terras de origem em 1948? Quantas madeixas teriam de atirar a este mundo para poder arrancar a tesoura das mãos do seu colonizador?
Limpo a escova e a banheira dos restos do meu cabelo, restos de mim, do meu corpo. Haverá ainda restos de cabelo da minha avó na nossa vila palestiniana de onde foi expulsa em 1948? Talvez haja uma Keffieh. Um lenço palestiniano bordado com o nosso cabelo. Os cabelos não morrem, transformam-se, exatamente como o povo palestiniano. Por onde quer que andemos, larguemos pelos, espalhamos o nosso corpo pelos diferentes lugares e exílios: 1948, uma madeixa, 1967, outra madeixa, 2023, monte infinito de cabelos entrelaçados das mulheres de Gaza, largados de norte a sul com cada mudança forçada. Os seus cabelos lá ficarão. No lugar deles, crescerá uma oliveira com raízes, tão palestiniana.
Coloco os meus dez dedos nas ondas do meu cabelo e recito o poema: “Sou o teu selvagem, o teu terrorista, e a minha mãe esfregou azeite no meu cabelo…até que o cheiro da Palestina se entranhou nas minhas veias”. Desmarco o meu corte de cabelo e o azeite entranha-se na minha cabeça.
Passo os meus dedos nos meus cabelos palestinianos amarfanhados cheios de azeite. Com cada cabelo nosso que desapareça tornarmo-nos numa Rapunzel. Os cabelos das palestinianas, crescerão, crescerão, crescerão, ficarão infinitos. Infiltrarão cada colonato e enrolar-se-ão à volta de cada metralhadora como se fossem serpentes. Os canhões entupir-se-ão com cabelos juntos impossíveis de desembaraçar. Não haverá muros, nem checkpoints, nem uma prisão com portas. Haverá uma Palestina livre, porque as tranças transformar-se-ão em resistência.