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Um dia na vida de um colecionador de garrafas no maior festival de música do norte da Europa

Em busca do “orange feeling” — e do seu lado negro. Um retrato do trabalho invisível dos recoletores de lixo nos bastidores do Festival Roskilde, na Dinamarca.

Texto de Redação

Uma tarde normal de quarta-feira na estação central de reembolsos do Festival de Roskilde. A espera na fila, que envolve centenas de artigos por pessoa, dura normalmente várias horas.

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Reportagem originalmente publicada no site Kulturpunk.hr a 1 de março de 2025.

Texto e fotografias de Giulia Gotti (salvo indicação em contrário na legenda).

Tradução de Rita Azevedo | Voxeurop


O Festival de Roskilde é mais do que “apenas um festival de música”, segundo dizem

Há uma piada na Dinamarca: uma vez por ano, o “Festival de Roskilde” torna-se a quarta maior cidade do país. O que começou como um pequeno convívio de estudantes nos anos 70, para celebrar a música — não muito longe da capital da Dinamarca, Copenhaga —, transformou-se numa das maiores cidades temporárias do mundo, com 130.000 bilhetes vendidos no ano passado.

O festival é amplamente considerado um marco cultural nacional, um símbolo de amizade, libertação e liberdade, parte da celebração de maioridade de muitos jovens dinamarqueses. Por exemplo, nas palavras de Hanna (nome fictício), uma jovem estudante universitária da Copenhagen Business School, que escreve no seu trabalho de exame:

“[...] É muito mais do que um simples festival de música. É um lugar onde se vai para a cama numa tenda gelada e se acorda a arfar como se estivesse numa sauna [...] É um lugar onde se prometeu a si próprio poupar dinheiro e comer apenas cavala (arenque dinamarquês, uma refeição enlatada muito popular) em molho de tomate, mas que, de alguma forma, se dá por si a perseguir as rulotes de comida assim que o local do festival abre. É um lugar ao qual se regressa ano após ano e onde se pode ser quem realmente se é ou tornar-se outra pessoa totalmente diferente [...] porque o Festival de Roskilde é um espaço livre.”

Como é que alguém pode não se sentir atraído por uma narrativa tão romântica? O Festival de Roskilde parece ser o local onde as fronteiras se dissolvem e o potencial de autodescoberta prospera. Talvez, para alguns, a versão mais autêntica de si próprios esteja à espera numa tenda no parque de campismo.

Momentos felizes no Festival de Roskilde 2022 — Stig Nygaard, Wikimedia Commons, cc-by-2.0

Quando se considera a narrativa que rodeia o festival, sente-se que é muito mais do que uma festa. Um exemplo é o slogan mais famoso do festival: contemplar o “orange feeling” (sentimento laranja) — uma referência ao icónico “Palco Laranja”, que define a linha do horizonte do evento desde o seu início, há décadas.

E o que é o famoso “orange feeling” de Roskilde? Num filme pós-evento de 2016, muitos participantes foram questionados sobre o assunto. Uma rapariga salienta a sua universalidade: “[...] Toda a gente já ouviu falar do sentimento laranja”. Outro rapaz diz que “quando se chega a este lado da vedação, não há regras, podemos fazer o que quisermos”. Parece que o Festival de Roskilde incorpora uma mistura de amor, abertura, diversão e energia despreocupada no ar — uma receita secreta que o torna tão afirmativo para a vida.

Iggy Pop no Festival de Roskilde de 1998 — Hunter Desportes, Wikimedia Commons, cc-by-2.0.

O Festival de Roskilde apresenta-se como uma espécie de Arcadia versão 2.0, moldado por prioridades contemporâneas e ideais progressistas. Fiel à essência das visões utópicas, esta “nova utopia pastoral” oferece um espaço para se concentrar nos prazeres da vida: estabelecer ligações humanas, sonhar com música e experimentar um ambiente sem fronteiras. Simultaneamente, o festival integra um ativismo de fácil acesso, apresentando-se como “um movimento” e operando com o estatuto legal de uma organização sem fins lucrativos.

Vários meios de comunicação social descreveram o festival como estando na vanguarda da intersecção aparentemente perfeita entre arte, inovação e pessoas: “[O Festival de Roskilde] é um espaço experimental para a arte, a sustentabilidade, os projetos culturais, novas formas de criar comunidades e de abordar questões sociais. Um espaço livre onde os jovens exploram novas perspetivas baseadas na arte e na criatividade. E um laboratório de inovação em tempo real para testar novos produtos e ideias”. (creativedenmark.com)

O que muitos não se apercebem é que, enquanto os habitantes locais estão a festejar, centenas de pessoas trabalham nas sombras — desempenhando um papel crucial para evitar que o festival imploda sob o peso do lixo. Todos os anos, um número crescente de indivíduos de comunidades marginalizadas, principalmente da Roménia e da África Ocidental, viaja para norte para recolher garrafas de cerveja vazias, copos e latas deitadas fora por milhares de festivaleiros, trocando-as por dinheiro através do sistema de reembolso dinamarquês. O Festival de Roskilde reconhece que mais de 300 coletores de reembolsos de cerca de 15 países visitam o festival anualmente.

Os coletores de garrafas fazem fila e esperam para trocar as suas garrafas pelo depósito.

Os coletores de garrafas podem ser encontrados na maioria dos países que implementaram um sistema de depósito para garrafas e latas de alumínio. Embora esta prática seja uma das muitas “atividades secundárias” para os indivíduos que vivem abaixo do limiar da pobreza ao longo do ano, é durante a “época festivaleira” que a escala se torna desproporcionada. No caso da Dinamarca, por exemplo, famílias inteiras viajam para norte especificamente para ganhar a vida com as latas de cerveja vazias deitadas fora pelos dinamarqueses.

Uma vulgar “máquina Pant” nas traseiras de uma mercearia em Copenhaga. “Pant” é o nome dinamarquês para os artigos elegíveis para o sistema de reembolso.

No entanto, este trabalho está longe de ser “dinheiro fácil”. Exige um esforço físico e mental que ultrapassa as capacidades individuais: o esforço é de 24 horas por dia, 7 dias por semana, e depois de estarem em constante movimento durante uma semana consecutiva, com pouco ou nenhum descanso, os coletores ficam rapidamente exaustos e doentes. Enfrentando uma concorrência feroz entre um número cada vez maior de pessoas que todos os anos se juntam ao festival para fins de recolha de reembolsos, os coletores trabalham em condições difíceis sem o reconhecimento oficial da direção do festival.

Os coletores de garrafas operam numa zona cinzenta da regulamentação. Muitos festivaleiros acreditam erradamente que os coletores de reembolsos são empregados de limpeza do festival, mas não é esse o caso. Todos eles estão a pagar um bilhete normal e completo para o festival.

Como é que este processo de recolha de garrafas se enquadra no “orange feeling” do Festival de Roskilde? Como é que os coletores vivem a experiência do festival? E como é que isso se relaciona com o que o festival promete e promove? Para o descobrir, passei uma semana inteira no festival do verão passado. Entre concertos e festas, passei o meu tempo a fazer voluntariado nas “estações de reembolso” — locais designados onde os recipientes vazios podem ser trocados por dinheiro — e a aprender sobre o dia a dia dos coletores.

Primeiros encontros com o “orange feeling”: a multidão, o lixo, Lars, Marlene, Joe

A chegada à estação de comboios de Roskilde. Os comboios partem de Copenhaga para Roskilde a cada 20 minutos. No entanto, todas as viagens estão incrivelmente cheias durante os primeiros dias.

O dia de abertura do festival, 30 de junho, tinha chegado e estava na altura de embarcar no comboio regional de Copenhaga para Roskilde. A acompanhar-me estavam centenas de festivaleiros entusiasmados.

O festival realiza-se a sul da cidade de Roskilde, a cerca de 5 km do centro e a 35 km de Copenhaga. Durante o trajeto para o parque de campismo, a atmosfera já é elétrica — e ligeiramente surreal. Uma parte significativa desta sensação vem da quantidade cómica de bagagem que todos parecem transportar.

Enquanto leitor, imaginaria que levar uma mochila de caminhada seria suficiente para desfrutar de um festival de música? Pois bem, vai ter de pensar de novo! Em Roskilde, na Dinamarca, vejo centenas de pessoas, muitas delas com ar de miúdos de 16 anos, a transportar carrinhos de carga e sacos do IKEA atolados. As colunas são empurradas com carrinhos de compras, enquanto dezenas packs de 18 cervejas Tuborg e vários outros materiais são precariamente empilhados e criativamente presos com fita adesiva, aparentando muitas vezes pesar mais do que uma pessoa (mais tarde, no parque de campismo, testemunhei coisas ainda mais engraçadas, como alguém que decidiu trazer um sofá de sala inteiro para a festa — sim, um sofá verdadeiro!)

A caminho do festival, sinto um grande contraste. Há uma pacata cidade dinamarquesa, Roskilde, frequentemente descrita pelas pessoas em Copenhaga como um lugar aborrecido onde nunca acontece nada. De repente, surge um novo grupo: festivaleiros com bagagem com o dobro do peso do seu corpo, e tudo preso com fita adesiva (todos parecem ter adotado a mesma solução de fita adesiva, como uma regra tácita). Um “caos ordenado” escandinavo — todos adotam o mesmo padrão de comportamento ao abraçar a perturbação, mas são extraordinariamente criativos ao encontrar soluções individualizadas.

Acomodação no parque de campismo do festival — dia e noite.

No festival, já no primeiro dia, o ruído constante é notório, com pouca distinção entre o dia e a noite. Para além dos palcos de música, a maioria das festas decorre no parque de campismo, onde grupos de pessoas se organizam em acampamentos e de lá fazem explodir as colunas. As várias fontes de música sobrepõem-se e transformam-se em algo indistinguível.

Mas, enquanto voluntário, tenho a sorte de ter tido acesso a uma área de campismo reservada que é muito mais silenciosa do que as restantes. Cada um dos meus turnos de voluntariado terá a duração de oito horas, abrangendo tanto o dia como a noite em quatro dias diferentes da semana do festival, entrelaçando-se com a minha experiência “normal” no festival. Surpreendentemente, o facto de ter de pôr o despertador e de ter de estar num determinado local a uma determinada hora integra-se sem problemas, caso contrário, num festival, a maioria dos dias poderia rapidamente parecer uma mistura. Acho que perder a noção do tempo é outra componente da experiência de “libertação”. No meu caso, consigo sentir o tempo a passar e sinto que tenho os pés mais assentes na terra.

Sendo um grande festival, o calendário do Festival de Roskilde é incrível. Para além dos grandes artistas que aqui atuam todos os anos, o festival oferece um programa rico com artistas menos famosos, para além de alguns palcos que acolhem palestras e workshops.

Decorridas algumas horas, há um concerto. Estou na parte de trás, onde pequenos grupos de pessoas estão sentados no chão, e há muita gente à minha volta a beber e a conversar. Uma rapariga e um rapaz parecem estar a discutir, concentrados apenas um no outro. Não reparam na jovem que apanha os seus copos de cerveja usados do chão.

Entre concertos, painéis de inovação e uma rotina encharcada de cerveja que esbate as fronteiras entre os dias, os coletores de garrafas surgem como figuras semi-invisíveis. Navegam pelas multidões com agilidade, recolhendo todas as garrafas que conseguem encontrar. Parecem sérios e estratégicos no seu trabalho: sabendo que os artigos partidos ou danificados têm pouco ou nenhum valor, tentam soprar ar de volta para a garrafa ou remodelar as latas tortas antes de as juntarem aos seus crescentes sacos de lixo.

É o primeiro dia e já estou impressionado com a enorme quantidade de lixo e sujidade por todo o lado. Parte do “orange feeling” parece envolver uma abordagem quase hedonista à vida, em que lidar com o lixo se torna algo demasiado aborrecido para nos preocuparmos: a lata de cerveja vazia é simplesmente atirada para o chão, para que todos possamos seguir em frente.

Esta sensação é confirmada momentos depois: junto ao palco, encontro Lars, um jovem de vinte e poucos anos que frequenta o festival há vários anos. Quando lhe digo que estou a tentar perceber melhor o papel dos coletores de garrafas no festival, fica impressionado. Diz-me que nenhum dos seus amigos ninguém pensa nisso, embora ele pense. Reconhece que se trata de um problema, mas também acredita que ninguém pensa nele como tal. Embora o sistema de reembolso tenha sido criado para encorajar os consumidores a terem cuidado com o seu lixo, entre alguns dos jovens dinamarqueses parece haver a sensação de que apanhar garrafas — mesmo as suas — e trocá-las é uma espécie de vergonha. Ironicamente, deitá-las fora torna-se um símbolo de estatuto. É um sinal tácito: Não preciso do dinheiro.

Fotografia do primeiro dia do Festival de Roskilde 2024. Apesar de as portas estarem abertas há menos de 24 horas, já é notável a acumulação de lixo. Há apenas algumas garrafas espalhadas por aí — os coletores já as devem ter recolhido.

Um pouco mais tarde, falo com a Marlene. Marlene é de Roskilde e está na casa dos 50. O Festival de Roskilde não é apenas para os mais jovens. Também atrai um número significativo de “veteranos” que regressam ano após ano.

Na verdade, Marlene frequenta o festival desde os anos 80. Quando falo da recolha de garrafas, ela recorda que, em pequena, entrava no recinto do festival e recolhia latas de cerveja para trocar. Naquela altura, a recolha de garrafas era algo que as crianças faziam para ganhar dinheiro extra — muito diferente da situação atual. Marlene reconhece que isso se deve à dimensão crescente do festival: manter aquele “espírito de comunidade” de que se lembra com carinho é impossível numa cidade temporária de 130.000 pessoas. Sente que algo precisa de mudar. O quê, não tem a certeza.

Ao passear pelo parque de campismo, avisto um acampamento que decidiu celebrar a cultura da bebida usando como bandeira o plástico dos packs de cerveja. Segurada por algumas latas vazias, um invólucro de plástico de um pack de Tuborg e um saco do lixo vermelho de 60L esvoaçam ao vento.

Outra coisa que não se vê muitas vezes no material de marketing é o quanto o clima pode moldar a experiência do festival — e na Dinamarca, pode fazer toda a diferença. O verão de 2024 trouxe chuva e frio ao Festival de Roskilde. À noite, tremi na minha tenda quando as temperaturas desceram inesperadamente para 7-10 graus. Nunca me passou pela cabeça a possibilidade de ficar doente num festival de música em julho.

Outra implicação é que, apesar de muitos descreverem o festival como notoriamente poeirento, as chuvas deste ano transformaram o recinto num inferno lamacento. As botas de borracha e os impermeáveis tornaram-se equipamento essencial, com os festivaleiros a salpicarem o terreno inundado, tirando o melhor partido do caos. No meio deste cenário, vejo coletores de garrafas no meio da multidão. Para se protegerem, usam sacos do lixo e quaisquer artigos que encontrem. Um homem usa um casaco de plástico improvisado com o logótipo do Metro de Copenhaga, enquanto muitos usam lenços e bonés cheios de lama, que provavelmente apanharam do chão. Também eles são festivaleiros, que devem contar com os seus próprios recursos. Pergunto-me como estarão a conseguir.

Quando pergunto a um dos coletores de garrafas sobre estas dificuldades — refiro-me a ele como Joe, uma vez que prefere manter o anonimato — ele apenas abana a cabeça e continua a repetir: “Isto é horrível, este ano está a ser horrível”. Falamos uma mistura de italiano e inglês: Joe vive atualmente em Itália e trabalha numa pizaria perto de Roma. Vem ao festival todos os anos “para ganhar dinheiro” e esforça-se ao máximo para recolher garrafas. Em média, ganha 1 DKK (0,13 cêntimos de euro) por cada artigo ou copo que recolhe. A título de comparação, um lavador de pratos ou um empregado da restauração na Dinamarca pode ganhar entre 130 a 170 DKK por hora, sem impostos. Para igualar esse valor, uma vez que o reembolso é isento de impostos, Joe teria de recolher cerca de 75 artigos por hora — sem contar com as inúmeras horas de espera na fila para os trocar. Quando lhe pergunto se consegue dormir, apesar do frio e do barulho, diz simplesmente que não dorme, apenas trabalha — e ri-se.

A mentalidade estoica do “é o que é” é uma força invisível que mantém em movimento uma parte do ciclo de desperdício do festival. É interessante observar como, embora o “orange feeling” seja sobre libertação, parece assentar numa dinâmica que está longe de ser livre. A folia despreocupada do festival depende em parte do trabalho incansável de outros — uma contradição silenciosa na sua cultura.

Uma visão geral dos valores de depósito para diferentes artigos. Enquanto o sistema Pant A, Pant B, Pant C é a norma nacional dinamarquesa, o Festival de Roskilde introduziu um sistema de depósito interno — incluindo a atribuição de uma espécie de compensação monetária (0,2 DKK, o equivalente a 0,03 €) para latas esmagadas e estrangeiras, normalmente recusadas pelas máquinas Pant.

O lixo é um tesouro: o panorama nas estações de reembolso

Apesar de o Festival de Roskilde se estender por uns impressionantes 2.500.000 metros quadrados, e de se estimar que albergue 50.000 tendas, existem apenas três estações de reembolso, mais uma máquina de reembolso Drop&Go. Estas estações de reembolso são o palco principal da minha experiência de voluntariado no apoio aos coletores de garrafas. O trabalho é relativamente centralizado, uma vez que todas as pessoas que fazem a recolha terão de passar por uma destas três estações de reembolso, mais cedo ou mais tarde, para trocarem os seus artigos. Por isso, sinto que estou a familiarizar-me rapidamente com a comunidade de coletores.

O primeiro dia continua a ser uma noite calma para a estação de reembolso “West City” — a mais distante, situada a cerca de 30 minutos a pé dos palcos do festival.

Surpreendentemente, as estações de reembolso funcionam manualmente. As operações são geridas por associações de jovens e voluntários, muitos com apenas 17 anos. Contam e separam os depósitos manualmente e depois transferem o dinheiro digitalmente para a pulseira do utilizador. Embora estas estações estejam abertas a todos, na prática, servem sobretudo os coletores de garrafas.

As estações de reembolso têm ajustado o seu horário de funcionamento ao longo dos anos. Antigamente ficavam abertas até de madrugada, em 2024, a “West City” e a “Agora L” abriram diariamente das 8h às 2h da manhã, enquanto a “East City” abriu das 10h às 4h da manhã. Isto tem um impacto significativo no dia de trabalho dos coletores: o dia tende a ser relativamente calmo, mas as noites são intensas, com todos a apressarem-se para fazer a sua troca antes de a estação fechar, tentando maximizar as “melhores horas”. À medida que o festival avança, o volume de garrafas, latas de alumínio e outros artigos reembolsáveis aumenta, e o tempo de reembolso por cada pessoa aumenta proporcionalmente — quanto mais artigos para contar, mais tempo demora, especialmente porque o processo de contagem é completamente manual. Os carrinhos de transporte e carrinhos de bebé são meios populares para maximizar o número de garrafas que um coletor consegue transportar, e a fita adesiva reaparece — desta vez para manter as latas todas juntas durante o transporte, tal como manteve inicialmente a bagagem a caminho do festival. A meio do festival, as pessoas tinham normalmente um tempo de espera de 4 a 6 horas para obterem os seus reembolsos contados — um passo necessário antes de voltarem “ao terreno” para recomeçar o processo.

O festival oferece inúmeras oportunidades de voluntariado para aqueles que desejam contribuir de várias formas. No início do texto, referi a minha decisão de me voluntariar para me aproximar da experiência dos coletores de garrafas. Devo grande parte do meu contacto ao projeto social “Responsible Refund” (Reembolso Responsável), uma iniciativa de voluntariado de base que visa ajudar e celebrar os coletores de reembolso durante o festival. Através do Responsible Refund, assumi o papel de “mediador intercultural”. A minha função consistia em passar algum tempo nas estações de reembolso, ajudar os coletores de garrafas na fila com quaisquer questões que pudessem ter e gerir potenciais conflitos. Tratava-se de um papel de apoio distinto do de um segurança ou de um representante de um ponto de informação. A visão do projeto consistia em colmatar a falta de comunicação, muitas vezes negligenciada, entre as estações de reembolso e os coletores. As estações de reembolso são apenas responsáveis pela contagem das garrafas e não se espera que tenham em conta as condições desafiantes e confusas em que os coletores trabalham ou as necessidades específicas que possam ter.

Mas o que acontece a estes artigos após serem entregues? No último dia, depois de uma semana de música, lama e artigos reembolsados, falo com Janne, um estudante de 25 anos e chefe de equipa numa das estações de reembolso. Ele explica que, enquanto os artigos com as etiquetas de reembolso padrão dinamarquesas “Pant A”, “Pant B”, “Pant C” são recolhidos diariamente — entrando na máquina nacional do Dansk Retursystem — as garrafas e copos do festival são enviados para uma instalação de lavagem para serem limpos e reutilizados no ano seguinte. As categorias de artigos que não têm depósito fora do festival nem podem ser reutilizadas — como garrafas esmagadas ou cervejas estrangeiras — são simplesmente recolhidas e enviadas para o sistema de reciclagem de lixo. No entanto, em Roskilde, estes artigos têm um valor de reembolso de 0,2 DKK (3 cêntimos de euro), o que é praticamente irrelevante para os coletores que fazem disto um negócio (e é compreensível). Não vejo nenhum destes artigos nos sacos de reembolso vermelhos que se encontram nas traseiras das estações.

Os “bastidores” de uma estação de reembolso. Cada artigo é contado e separado num saco por categoria. Sacos de lixo cheios são empilhados nas traseiras, à espera da recolha diária do camião.

Janne orgulha-se do impacto das estações de reembolso. Processaram 2 milhões de artigos reembolsados em 2024, 2,9 milhões no ano anterior. Tento imaginar 2 milhões de garrafas de cerveja na minha mente, mas como será possível? Parece-me demasiado.

Imaginem este sítio sem os coletores de garrafas. À medida que os festivaleiros bebem e espalham os copos como se fossem agricultores a plantar, os artigos deitados fora iriam simplesmente amontoar-se, transformando o recinto numa paisagem ainda mais deplorável — e talvez totalmente incontrolável.

O fluxo de capital é igualmente impressionante. Embora muitos coletores prefiram não revelar os seus ganhos, há quem diga que alguém fez 50.000 DKK (cerca de 6700 €) líquidos numa só semana. Mas não acreditem na minha palavra — vamos analisar a situação. Para ganhar 50.000 DKK, teria de ganhar uma média de 7100 DKK por dia, recolhendo cerca de 700 artigos por hora durante um dia de trabalho de 10 horas sem parar. Ou seja, cerca de 11 objetos por minuto. Embora este número pareça altamente irrealista, mostra como a promessa pouco clara de “dinheiro fácil” persuade os coletores de garrafas de que tudo vale a pena.

A fila na estação de reembolso.

Um turno normal é geralmente calmo. A fila avança lentamente, com os coletores sentados em cadeiras de campismo partidas, a fumar e à espera da sua vez. À noite, muitos amontoam-se junto à estrutura de madeira da estação de reembolso para se abrigarem, adormecendo no chão húmido. Quando chega a sua vez, alguém na fila os acorda, seguindo o que parece ser uma regra tácita de solidariedade mútua.

16. Vista de uma estação de reembolso durante o dia.

O “sentimento de aldeia” permanece no ar — quase ninguém vem sozinho. Muitos coletores, tal como Joe, regressam ano após ano, muitas vezes residindo nas proximidades, na zona de Copenhaga. Falo com Prince, originário do Gana, mas atualmente residente em Itália, que exprime a sua frustração. É a sua primeira vez no festival, atraído pela promessa de “dinheiro fácil”, mas considera a concorrência esmagadora. “Os romenos levam tudo”, queixa-se.

Refere-se às famílias romenas, que são uma presença dominante entre os coletores. As tensões entre os grupos africanos e os romenos estão ao rubro, alimentadas por acusações de violação de regras não expressas, como a espera na fila. Para os romenos há muita coisa em risco. Muitos disseram-me que este rendimento pode sustentar as suas famílias na Roménia durante meses. Muitas vezes, ultrapassam os limites, furando a fila com sacos de garrafas acabadas de apanhar, enquanto outro membro da família lhes guarda o lugar. Estes momentos de conflito realçam a importância, para mim, de haver mediadores presentes, prontos a intervir quando o tom se torna aceso.

As pessoas dormem, fumam e conversam nos seus círculos de cadeiras de campismo tortas, enquanto o festival gira à sua volta. A sua presença “invisível” é uma parte essencial do ambiente do festival. Sobrevivendo à margem, são, em muitos aspetos, os “homens do lixo” não reconhecidos do “orange feeling”.

Outro: as muitas faces do sistema de reembolso

Um concerto no Festival de Roskilde em 2024. Alguém segura “o extraterrestre e a vaca” — um símbolo icónico do Festival de Roskilde desde 1999, que nos últimos anos passou a representar a importância do consentimento sexual.

Os festivais podem servir como uma janela para o futuro. Cada edição é ligeiramente diferente, mostrando que a mudança é possível e necessária. Estes valores moldaram a marca do Festival de Roskilde, mas à medida que a minha semana no Festival de Roskilde se desenrola, as suas contradições tornam-se impossíveis de ignorar.

É claro que os organizadores do Festival de Roskilde estão bem cientes dos seus problemas de sustentabilidade ambiental. Segundo o Statista, a Dinamarca foi recentemente classificada como o maior produtor de resíduos per capita da Europa, com 787 quilogramas por habitante — pelo que talvez faça sentido pensar que o consumismo está enraizado na cultura do país. Em Roskilde, o impacto do comportamento individual ultrapassa mesmo o impacto da produção do festival: de acordo com os relatórios, os resíduos do parque de campismo representam 75% do volume total de 2,2 mil toneladas de lixo gerado pelo festival. Atualmente, é prática comum os festivaleiros deixarem no local grandes quantidades de objetos pessoais, incluindo as suas tendas, o que constitui uma massa de resíduos não recicláveis que acaba na instalação de incineração mais próxima.

Já existem muitos estudos de caso e investigação disponíveis online sobre a gestão de resíduos ideal do Festival de Roskilde. O verdadeiro desafio consiste em mudar a cultura subjacente. A atitude atual do Festival de Roskilde relativamente ao consumismo centra-se em “influenciar o comportamento e inspirar”. Algumas das iniciativas que o festival tem tomado nos últimos anos incluem uma página dedicada à responsabilidade ambiental (entre outras) na sua página Web, a criação de um “Laboratório Circular” para fornecer uma plataforma de relações-públicas a startups centradas na circularidade e a criação de comunidades de parques de campismo ecologicamente conscientes — “Leave No Trace Camp”, “Clean Out Loud Camp” e, a partir de 2022, “Common Ground” — às quais as pessoas teriam acesso através de um processo de candidatura.

POV: Está a entrar no Laboratório Circular. Como o sinal sugere, um “futuro verde” espera-o atrás do portão — e espera-se que participe ativamente nele.

No entanto, estas comunidades, que criam uma espécie de contracultura no festival, continuam a ser uma minoria. O evento conta sobretudo com a sua própria grande máquina de limpeza, ativada nos últimos dias, com camiões e maquinaria pesada a percorrer o parque de campismo. E trata-se de um processo rápido: a 19 de julho, menos de duas semanas após o final do festival, visitei o local e estava tudo impecável.

Também vale a pena comentar como a administração parece reconhecer a presença dos coletores de garrafas, uma vez que as operações das estações de reembolso foram concebidas para acomodar o fluxo de trabalho dos coletores, em vez de se concentrarem apenas nos clientes individuais. Apesar disso, não são apresentados “benefícios” significativos. Por exemplo, providenciar uma área de descanso mais calma para os coletores de garrafas — algo que já acontece com os voluntários do festival — poderia ser um passo positivo. Atualmente, dormem no parque de campismo principal.

Em cima: Um vislumbre da gestão de resíduos no festival. Há alguns locais designados para a recolha de lixo; poder-se-ia argumentar que não têm um aspeto muito diferente do resto do parque de campismo após o encerramento. Em baixo: Um camião de recolha de lixo atrevido.

Vista do parque de campismo do Festival de Roskilde alguns dias após o encerramento.

No fim de contas, os sistemas e as estruturas em que os festivais se baseiam são moldados pelo meio envolvente, o que significa que os festivais refletem frequentemente os mesmos problemas sistémicos que a sociedade em geral. É fascinante observar as diferenças de comportamento que os festivais podem inspirar e considerar quais os comportamentos que são (ou não são) apoiados pelos seus sistemas específicos.

O lixo é um problema significativo no festival, no qual os coletores, em grande parte não reconhecidos, desempenham um papel crucial na sua gestão. O “orange feeling” prospera com a ideia de liberdade e de comunidade, mas tem por base uma série de contradições. Enquanto os festivaleiros celebram a libertação, o trabalho invisível dos coletores de garrafas tem um papel essencial na manutenção da limpeza e da sustentabilidade do festival. Os seus esforços negligenciados expõem uma tensão mais profunda: a cultura do festival assenta em sistemas que marginalizam aqueles que o sustentam.

O Festival de Roskilde pode ter crescido ao ponto de beneficiar de intervenções políticas, tal como uma cidade real, mas à medida que continua a navegar pelas suas complexidades e se esforça por se alinhar mais estreitamente com os seus valores, reconhecer e abordar estas dinâmicas subjacentes pode ser o próximo passo para alinhar ainda mais os seus ideais com a sua realidade.

GALERIA DE FOTOGRAFIAS DO ÚLTIMO DIA E APÓS O ENCERRAMENTO

O lixo é normalizado: no último dia, um grupo de jovens convive no meio do lixo.

Depois de o parque de campismo fechar no domingo de manhã, a quantidade de coisas deixadas para trás é espantosa.

No último dia, um grupo de jovens fica a conviver atrás de uma vedação construída de forma criativa com equipamento de campismo e — vá-se lá imaginar — fita adesiva.

Resíduos após o encerramento do festival. Acima: Camp West. Em baixo: Camp East. 


Esta reportagem é publicada no âmbito do Come Together Fellowship Program, um programa de formação para jovens jornalistas que foi desenvolvido em parceria com vários órgãos de comunicação independentes europeus. O texto original foi publicado em Kulturpunk.hr a 1 de março de 2025.

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

3 MARÇO 2025

Onde a mina rasga a montanha

Há sete anos, ao mesmo tempo que se tornava Património Agrícola Mundial, pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o Barroso viu-se no epicentro da corrida europeia pelo lítio, considerado um metal precioso no movimento de descarbonização das sociedades contemporâneas. “Onde a mina rasga a montanha” é uma investigação em 3 partes dedicada à problemática da exploração de lítio em Covas do Barroso.

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