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Opinião de Leonor Rosas

Um selo lusotropical

Nas Gargantas Soltas de hoje, Leonor Rosas reflete sobre o controverso selo da Jornada Mundial da Juventude — que representa Papa Francisco na posição de Infante Dom Henrique e que tanto lembra a propaganda fascistas das Lições de Salazar —, a imagem lusotropical que perpetua e as implicações da mesma para um Estado que se quer laico, democrático e plural.

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Nos últimos dias, acendeu-se o debate público em torno do selo comemorativo da Jornada Mundial da Juventude. Neste, o Papa Francisco é representado, qual Infante D. Henrique, em lugar cimeiro no Padrão dos Descobrimentos, seguido de crianças que rezam, festejam e seguram a bandeira de Portugal atrás de si. Este selo, desenhado pelo Vaticano e que terá uma tiragem de 45 mil exemplares, é descrito no site Vatican News da seguinte forma: Da mesma forma como o timoneiro D. Henrique lidera a tripulação na descoberta do novo mundo, assim também no selo do Vaticano o Papa Francisco conduz os jovens e a Igreja”. Rosa Pedroso Lima, porta-voz da fundação da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, face às críticas generalizadas à imagem, apressou-se a afastar qualquer interpretação colonial ou saudosista do Estado Novo, procurando esboçar através do selo uma narrativa de progresso e multiculturalidade. 

A Jornada Mundial da Juventude de 2023 em Lisboa tem vindo já a ocupar a discussão pública com sucessivas polémicas em torno de gastos excessivos: um palco milionário, infraestruturas pouco prováveis de serem reutilizadas em próximos eventos e uma módica quantia final de cerca de 35 milhões de euros da Câmara Municipal de Lisboa gastos no evento. Somando à pertinente discussão sobre se um Estado laico deve financiar um festival da Igreja católica, junta-se agora a questão suscitada por este controverso selo: que imagem de Lisboa e da história da cidade veicula este evento? Recorrendo a ilustrações e simbolismos que em tudo lembram os manuais escolares oficiais do Estado Novo e as imagens das Lições de Salazar promovidas pelo Secretariado de Propaganda Nacional, o Vaticano escolhe, em pleno 2023, exaltar acriticamente Lisboa como cidade de “descobertas”, associando ao colonialismo português uma imagem benigna de multiculturalismo e de inocência. Este selo apresenta-se, assim, como uma imagem profundamente lusotropical, neoimperial e nacionalista: uma representação que se encontra nos antípodas do que uma cidade progressista e plural deveria ambicionar. 

Nestes momentos em que a questão colonial salta para a esfera do debate político mais amplo, convém sempre relembrar alguns factos históricos. Comparar o Papa Francisco a Infante D. Henrique e, nesse plano, a Jornada Mundial da Juventude aos “Descobrimentos”, não é um exercício inocente. Portugal não descobriu novos mundos, de Lisboa não partiu uma viagem pacífica e potenciadora do multiculturalismo. Pelo contrário, o nosso país foi pioneiro do tráfico de pessoas escravizadas (cerca de 6 milhões apenas sob responsabilidade portuguesa), levou a cabo brutais campanhas de subalternização dos povos africanos, impôs até aos anos 1960 legislação desumana e violenta para os africanos que habitavam nos territórios colonizados e insistiu numa sangrenta Guerra Colonial contra os ímpetos descolonizadores dos povos. Associar um evento em pleno 2023 à suposta excepcionalidade e bondade do colonialismo português é, no mínimo, profunda ignorância, e, se propositado, um ato de desrespeito pelos povos escravizados, colonizados e por todas as pessoas que persistem sendo vítimas de uma sociedade racista e xenófoba. 

Há menos de dois meses, a Igreja Católica, pela voz do Papa Francisco, veio formalmente repudiar a chamada “Doutrina da Descoberta”, reconhecendo os erros cometidos pela mesma no tratamento das pessoas indígenas no continente americano, a quem negaram repetidamente um estatuto humano igual aos povos europeus. Se é relevante pedir desculpa pelos erros cometidos no decorrer do projeto imperial europeu e procurar reparações históricas, este reconhecimento de pouco serve quando se mantêm práticas e narrativas que sustentam os mitos do bom colonizador e da benevolência do imperialismo europeu. Aliás, o papel da própria Igreja Católica no projeto colonial europeu foi determinante. Olhemos apenas para um pequeno exemplo do império português: a Companhia de Jesus foi, até à sua expulsão do Império Português, em 1759, uma das maiores proprietárias de pessoas escravizadas do mesmo, tendo usado recorrentemente trabalho escravo e brutalizado povos indígenas que resistiam aos avanços da colonização. 

O passado colonial não desaparece, não se esfuma com o passar do tempo e não pode ser eternamente coberto pelas narrativas lusotropicais que se vão fabricando e readaptando para evitar encará-lo. Este debate sobre o selo lusotropical da Jornada Mundial da Juventude é mais um que se vem somar a dezenas de outros exemplos da persistência das narrativas oficiais sobre colonizadores benignos que deram novos mundos ao mundo, sobre a forma como escolhemos representar o nosso passado e de que forma essa representação estrutura o futuro que queremos construir. Neste caso, esperemos que o debate do selo - em conjunto com as supracitadas discussões sobre os gastos públicos deste evento religioso - sirva para nos fazer ainda questionar: deve um Estado laico, democrático e plural subsidiar a Jornada Mundial da Juventude? 

-Sobre Leonor Rosas-

Estudou Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH. Está a fazer um mestrado em Antropologia sobre colonialismo, memória e espaço público na FCSH. É deputada na AM de Lisboa pelo Bloco de Esquerda. Ativista estudantil e feminista.

Texto de Leonor Rosas
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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