Não gosto da passagem do ano e nunca gostei. Desconfio de uma mudança com data marcada, bem organizada e contida, com as esperanças e promessas bem arrumadinhas e bem-comportadas no início de janeiro, para logo se virem a desfazer em mais um ano como os outros. Uma mudança do mundo não tem nada de ordenado. Pode acontecer no final de abril ou no início de novembro. As bastilhas podem tomar-se à terça-feira, os palácios de inverno invadir-se à quarta-feira e à quinta-feira há ainda a possibilidade de derrubar uma ditadura. A mudança cozinha-se durante anos e anos e explode num dia, sem pedir licença e sem ter avisado previamente. Não há calendário que contenha a vontade dos muitos, nenhuma agenda que determine a terra que treme ou contagem decrescente que nos prepare para aquele dia inteiro e limpo.
Trabalhar todo o ano e ganhar pouco, sentar à frente da televisão para assistir às tragédias que nos chegam em direto para logo nos dizerem que nada podemos fazer sobre elas, ser incentivada a melhorar-me a mim própria, a ser empreendedora e responsável pelos meus sucessos e fracassos. Estar convencida que o mundo tem absolutamente de ser assim - não é bom mas é o melhor que há - e que nada espreita na próxima curva da nossa história. Depois, comprar passas, abrir o champanhe, inscrever-me no ginásio e prometer que para o ano é que vou dar aquele salto na carreira que me vai permitir sair de casa dos meus pais. Toda a esperança e expetativa está ali bem domesticada e confinada àqueles dias de festividades, absolutamente individualizada, como se o futuro fosse conjugado apenas na primeira pessoa.
Não tenho nada contra a passagem do tempo (mesmo que tivesse, de nada me valeria) ou contra os rituais que nos juntam aos que amamos. Não sou uma pessoa pessimista, bem pelo contrário, e muito menos azeda. Gosto tanto de me juntar aos que amo e brindar à mudança, à vida, aos sonhos e desejos que ainda temos por realizar e às pessoas que fomos e que ainda seremos. O que quero dizer é que a passagem do tempo - do ano, neste caso - não pode ser só um marcador vazio para conter uma espécie de esperança descafeínada em tempos de desacanto absoluto. A passagem do tempo é um assunto do nós e não (apenas) do eu. Insistem em tentar convencer-nos que o futuro são favas contadas, tudo igual ao que já é, que a única coisa que podemos mudar é o que depende de sermos “empreendedores de nós próprios”, expressão de Michel Foucault.
Gramsci, que menciono muito acima da conta nos textos que escrevo, achava que devíamos manter, mesmo face aos momentos mais penosos e em que o mundo insiste em piorar sem sinais de abrandamento, uma vontade política que acreditasse profundamente na possibilidade da nossa vitória. Não nos deixarmos cair em sentimentos banais de pessimismo e desistência. Dizia ele, que morreu nas prisões do fascismo sem nunca deixar de ser um otimista crítico. Parece-me que ele há de ter razão nisso.
Não defendo determinismos nem acho que a história caminhe para lado nenhum sem que sejamos nós a levá-la, mas não duvido que as curvas que ela dá (ou que nós lhe damos) nos hão-de virar para algum sítio melhor. Nem sempre é fácil. Genocídio, invasão, crise, renda, trabalho. Empurram-nos para o chão, mandam-nos ficar lá inertes. Mas nós levantamo-nos e continuamos à espera de outra coisa. Com essa esperança mal comportada, respondona, persistente. A pior coisas que lhes podemos fazer é continuar à espera, com o sorriso de quem sabe que melhores tempos virão - vêm sempre.
Este artigo não propõe nada. É apenas um desabafo que vos faço: sobre o tempo que vai passando e nos deixa a todos mais dados a estas coisas, sobre uma data que me desencanta e sobretudo sobre as coisas que temos de nos resolver a fazer. Precisamos de resoluções no coletivo, para todos os dias do ano, para acabar de vez com esta coisa toda.