Ter uma filha aos 56 anos é, hoje, um gesto de insubmissão. Não é apenas ternura tardia, nem capricho biográfico: é um murro na mesa das convenções, um libelo contra a ideia de que a esperança tem prazo de validade. É escrever, à mão firme, uma carta para um futuro que muitos já dão como cancelado — e enviá-la assim mesmo, sabendo que os correios da História andam irregulares, mas ainda entregam mensagens de quem não desistiu.
Vivemos tempos em que a regressão se tornou atmosférica. Paira no ar, infiltra-se nos discursos, molda comportamentos, desacostuma as pessoas da decência. O meu colega e amigo António Firmino da Costa chama-lhe, com rigor doloroso, des-civilização: este processo lento, quase hipnótico, de perda de qualidades humanas que pensávamos sólidas. A brutalidade reaprende a falar; a ignorância veste fatos de autoridade; a intolerância conquista aplausos que julgávamos irrecuperáveis.
Neste cenário, ter uma filha não é apenas um ato íntimo: é uma pancada seca no cinismo dominante. É afirmar — contra as estatísticas, contra os profetas do colapso e contra as gavetas etárias que nos querem arrumar — que ainda há futuro a disputar.
Aos 56 anos, esperam de nós o declínio organizado, a contenção, o silêncio polido de quem já viu o suficiente. Mas talvez seja precisamente na maturidade que a insubmissão mais faz sentido. Porque já aprendemos a desconfiar das receitas rápidas e dos moralismos preguiçosos. Porque já vimos o que o medo faz às sociedades quando as governa por dentro. E porque reconhecemos, com maior nitidez, que a vida não obedece às fronteiras estreitas com que a normatividade tenta cartografá-la.
Dizem que trazer uma criança ao mundo nestes tempos é irresponsável. Pois é exatamente o contrário: irresponsável seria ceder ao desencanto, baixar os braços, aceitar que a espiral de des-civilização é inevitável. Responsável — e radical — é responder à regressão com cuidado, à violência com criação, à resignação com uma aposta renovada na humanidade.
Uma filha aos 56 é a prova viva de que a idade não determina o tamanho do futuro que carregamos connosco. É um manifesto contra a gravidade do mundo — essa força que tenta puxar-nos para baixo, para o conformismo, para o “não vale a pena”. E é, sobretudo, um lembrete feroz: por muito que o presente se queira pequeno, há sempre espaço para gestos que o desafiam. Gestos que, por si só, reinstalam a ideia de que o futuro não é uma ruína anunciada, mas uma construção em disputa.