*Esta reportagem centra-se no conceito de virgindade feminina nas mulheres com vagina.
Não existem evidências científicas da virgindade feminina
Lisa Ferreira Vicente, ginecologista, não hesita em dizer-nos que o conceito de virgindade não é um termo médico e científico. “O conceito de virgindade é um conceito cultural ligado ao facto de alguém nunca ter tido contactos sexuais”, explica, fazendo sobressair que os contactos sexuais existem “independentemente da identidade de género e da orientação sexual das pessoas”. “A questão da virgindade é uma questão social, cultural e não tem nenhum fundamento científico nem médico”, continua. “Ao longo dos anos, [a noção de virgindade esteve] muito centrada no conceito de que as relações sexuais com penetração vaginal na mulher produziam uma modificação no hímen que era observável e, por isso, era possível fazer uma demonstração, pela observação ginecológica, [que permitia ver se] o hímen estava íntegro e se não tinham existido relações com penetração vaginal. Mas isto é diferente de ter tido, ou não, relações. Sexo oral é uma possibilidade, sexo anal é outra possibilidade, e nenhuma delas deixa marcas ao nível do hímen”, clarifica Lisa.


De facto, o conceito cultural de virgindade feminina é, muitas vezes, falocêntrico e heteronormativo, por se associar a virgindade feminina a nunca ter havido uma experiência de sexo vaginal através da penetração por um pénis. Tânia Graça, psicóloga sexóloga, atesta existir uma “heteronormatividade que paira” com a “assunção de que uma relação sexual é entre um homem e uma mulher”, assim como um falocentrismo, em que se vê “o pénis como centro do mundo” e em que há uma ideia de o “sexo ser uma coisa ligada ao homem”.
Devendo a virgindade estar associada ao início da vida sexual, Tânia considera que cabe a cada mulher definir o que isso significa. “Certamente, não diz apenas respeito à penetração por um pénis, e o conceito [erróneo] de virgindade tem que ver com isto – a primeira experiência sexual de entrada dum pénis na vagina, que rompe o hímen, e isso é o sinal de perda de virgindade. Isto não faz qualquer sentido, porque posso romper o hímen de muitas outras formas, posso ter nascido sem ele, ele pode ser hiperflexível e, portanto, não quebrar com a entrada de nada, nem dum pénis, e, além disso, o sexo é muito mais do que a penetração, entre um homem e uma mulher. Para uma mulher lésbica, por exemplo, que nunca tenha tido relações sexuais com um homem, seria virgem para a vida toda, mesmo relacionando-se com mulheres? Não faz sentido.” A psicóloga e sexóloga observa ainda que a primeira experiência sexual pode ser vista de duas formas: “como a primeira experiência sexual comigo, seja a primeira vez em que me masturbei ou a primeira vez que tive consciência de que me excitava com determinado conteúdo, com determinada imagem; ou também podemos vê-la como a primeira vez que temos uma experiência sexual com outra pessoa, partilhada, mas que não tem necessariamente de envolver um pénis nem uma penetração.” Por isso, Tânia defende que “cada mulher poderá decidir em função do que, para si, faz sentido”, o momento que marca o início da sua vida sexual.
Lisa Vicente esclarece ainda que, “pela observação ginecológica, é possível observar o hímen”, porém essa observação apenas “pode dar uma ideia sobre como está o hímen”, não sendo possível, “num exame médico, estar a demonstrar a virgindade”. “A virgindade é uma coisa que extravasa completamente a possibilidade de observação”, reitera. Assim, tal como nos diz também Tânia, “nunca pode ser a partir de uma membrana que se define uma primeira experiência sexual”.
Existem tantos tipos de hímenes quantas formas de vulvas
Como nos explica a autora de O Atlas da V, o hímen “é uma transição da vulva para a vagina”. “Na entrada da vagina existe, para dentro dos pequenos lábios, uma prega de mucosa fibroelástica que tem, normalmente, poucas terminações nervosas e poucos vasos [sanguíneos] e que deve ter um orifício que põe em comunicação a vagina com o exterior para, depois, na altura em que existe menstruação ela poder sair.”
Lisa refere ainda que, “em algumas situações, este hímen pode não estar aberto, ao que se chama hímen imperfurado, que é uma situação em que é muitíssimo importante abri-lo, na altura da menarca [primeira menstruação], para poder sair o sangue e não ficar acumulado dentro da vagina e, depois, gerar infeções”.
De facto, a anatomia clássica distingue várias formas que o hímen pode assumir: “um orifício circular, ou semicircular, pequenos orifícios ou estar dividido em dois (com um septo entre eles)”, como lemos em O Atlas da V.


Porém, a ginecologista faz notar que, “às vezes, nos esquecemos de que em todo o nosso corpo, seja a nossa vulva, o nosso hímen, o útero, os ovários, têm tantas variações quanto os nossos olhos e o nosso nariz. Não se consegue enquadrar todas as formas de hímen, porque o hímen tem tantas variações quanto o nosso nariz.”


Assim, clarifica que “olhando para as imagens de hímenes, estas são ilustrações científicas para explicar que há hímenes que são circulares, que há hímenes que têm septos, são criviformes, ou seja, que têm formas diferentes, mas, na verdade, ao vivo, numa mulher, como a vagina é um espaço virtual e que está fechado, de facto é preciso entreabrir os pequenos lábios para ser evidente o hímen, sendo que ele não é tal e qual como vem nas ilustrações e é composto por várias preguinhas que, às vezes, pode dar a ideia de que ele é muito fechado, muito pequenino, mas como existem várias variações, pode não ser definitivo ter a certeza de que aquele hímen é um hímen intacto”. “Por outro lado, quando, de facto, se vê lacerações pela penetração com dedos, com o pénis, ou com brinquedos sexuais, aí é possível dizer que o hímen já tem pequenas lacerações, por isso já foi manipulada a entrada na vagina.”
Virgindade feminina: um construto social opressor
Tânia Graça, psicóloga sexóloga, diz-nos que “não faz sentido usar um termo cujo único objetivo é colocar regras sobre o corpo da mulher”. Ademais, o controlo da existência do hímen tem “que ver com o policiamento, que continua a ser feito, do corpo da mulher”. “É uma regra que foi imposta e que já muito matou mulheres, aliás, ainda hoje em algumas culturas e religiões isto acontece com a questão da perda de virgindade antes do casamento ser justificação para chibatadas, por exemplo. Portanto, [existe] este poder sempre central no homem e no seu pénis e dele como definidor do que é a sexualidade e a tua primeira experiência sexual, ou não.”


Para explicar a origem deste falocentrismo, a psicóloga recorre à religião. “A sexualidade feminina, inclusive na religião, sempre foi muito atrelada àquilo que é o poder do homem e à sua decisão e desejo. Apesar de nos considerarmos um estado laico, a verdade é que isso não é assim. Mesmo nas pessoas não praticantes, existe uma moral judaico-cristã de base, nomeadamente sobre o corpo da mulher. Religião e cultura misturam-se, elas não acontecem isoladas.”
Por isso, a psicóloga considera que perpetuar um conceito falocêntrico e heteronormativo da virgindade feminina é um “atentado contra a vida e integridade física da mulher”. “É preocupante que se continue a ter esse conceito como central em tantos lugares e, aqui, no ocidente, embora já ninguém verifique se somos virgens, ou não, é uma ferramenta de controlo que só serve para as mulheres. Isto ilustra tão bem o peso que metem na sexualidade de uma mulher e o que metem na de um homem. A pureza e virgindade da mulher é que é um tema, a virgindade de um homem não o é, senão em termos da pressão que sentem para iniciar a sua vida sexual. Portanto, continua a ser uma ferramenta de controlo em todo lado, ainda que de formas diferentes”, continua Tânia.
Tânia reconhece pairar um peso sobre a mulher em como esta deve ser “a santa, a virgem, a pura, a sem pecado, a que não gosta assim tanto de sexo e que não deve gostar, porque isso não é um bom valor numa mulher”. “E o contrário nos homens, porque aí tens a hipersexualização em como tens é de ter mulheres e de cumprir com os teus deveres conjugais, que, neste caso, é estar presente para a tua mulher e obrigá-la, no fundo, a ter sexo contigo e seres aquele que vem desflorar a virgem. Embora todos estes conceitos possam parecer estranhos no nosso contexto, há resquícios disto. Uma mulher com vários parceiros sexuais, seja isso aquilo que for, tem uma conotação social diferente daquela que tem um homem. Continua a haver um double standard [dois pesos e duas medidas] de avaliação da vida sexual da mulher, que é de alto escrutínio, comparativamente à vida sexual dum homem, que é vangloriada.” “Acho que a virgindade continua a ser um sinal, quase como se fosse uma prova física e palpável, de que continuamos a exigir à mulher um comportamento sexual diferente daquele que se exige ao homem e a querer controlar o corpo dela de uma forma que não se controla o corpo dos homens. Não é que se deva controlar o deles, simplesmente essa sexualidade deve ser tida em liberdade”, remata Tânia.


Desta forma, tanto Tânia como Lisa frisam que a questão da virgindade é tida como mais valiosa na mulher do que no homem. Lisa faz sobressair, inclusive, que “a demonstração de virgindade se centrava na ideia de que a virgindade podia ser observada a partir da integridade do hímen, no caso da mulher”, enquanto, “no caso do homem, não há nenhuma possibilidade física nem científica” de o atestar.
Como vimos anteriormente, apenas em algumas situações, através da observação ginecológica, é possível “dizer que houve penetração vaginal”, embora a mesma não seja definição de início da vida sexual, porque “as relações sexuais também podem ser penetração anal ou sexo oral”, relembra Lisa Vicente, para explicar, de seguida, que “a observação médica pode, em algumas situações, pela observação do hímen, quando este já tem várias lacerações, indicar que, de facto, a pessoa já teve relações com penetração vaginal”. “Mas é muito importante [perceber] que não é só o pénis que produz esta abertura do hímen, também a utilização de dedos e de brinquedos sexuais produz o mesmo efeito”, aclara. “Por isso, em mulheres que têm relações com mulheres, muitas vezes, o seu hímen não está intacto por causa da questão da manipulação nestas duas situações”, adianta ainda a ginecologista.
Associada à visão falocêntrica e heteronormativa sobre a virgindade feminina, existem vários mitos, que, em algumas épocas e culturas, chegam inclusive a pôr em perigo a vida da mulher.
O hímen é um tecido fibroelástico que pode romper em diferentes ocasiões
Contrariando a ideia de que um hímen se rompe numa primeira penetração vaginal, ou até, que apresenta obrigatoriamente lacerações com a continuação dessa prática, uma investigação científica no Texas, cujos resultados foram publicados no artigo “Genital Anatomy in Pregnant Adolescents: ‘Normal’ Does Not Mean ‘Nothing Happened’, publicado na revista científica Pediatrics, mostrou que, em 36 mulheres grávidas, apenas duas tinham sinais claros de penetração por um pénis, por lacerações no seu hímen.
Lisa Vicente, explica-nos que, “por tradição, se fala do hímen complacente que terá o orifício bastante largo e, por isso, vai fazendo um afastamento e não é assim tão evidente que haja rasgaduras. O que acontece é que para todas as pessoas que tenham um parto vaginal, nessa altura, ainda se rasga mais esta estrutura do hímen, que umas mulheres têm mais e outras menos”. “A distensão da abertura da vulva, ou da entrada na vagina, esta estrutura fibroelástica, ao longo dos momentos de distensão vai-se alargando e vai sofrendo pequenas rasgaduras. O hímen não é propriamente uma tampinha que sai, um dia. Muitas vezes, com a manipulação com dedos, ou doutras formas, começa-se a abrir um bocadinho o hímen e, por isso, ele vai cedendo e pode não ser duma só vez. Por isso, é importante que tentemos afastar a ideia deste conceito da virgindade em que o hímen faz a demonstração de que a pessoa nunca teve relações sexuais”, continua a ginecologista.
Da mesma forma, existindo uma primeira penetração vaginal quer, através de dedos ou de brinquedos sexuais, quer de um pénis, pode nem sempre haver a laceração do hímen, quer nessa relação, quer em relações posteriores. Ademais, Lisa lembra que, sendo esta estrutura constituída por várias pregas de mucosa, “pode tornar-se difícil dizer se houve ou não lacerações”.
Nem sempre há sangramento numa primeira relação sexual com penetração vaginal
Lisa Ferreira explica-nos que, apesar de o hímen ser uma estrutura fibroelástica com poucos vasos sanguíneos, estes não deixam de existir. “Quando [existe uma penetração vaginal], o hímen, ou por afastamento ou por rasgadura, se apanhar um vaso, pode sangrar. Normalmente, isso é mais frequente na fase inicial em que a pessoa começa a manipular a vagina – porque o hímen oferece mais resistência nessa altura – não necessariamente com o pénis, pode ser com os dedos, ou com um brinquedo.” “Se não acontecer um sangramento, não quer dizer que não tenha existido [uma primeira] penetração. Pode ter havido afastamento do hímen, mas sem que tenha apanhado um vaso e, por isso, não sangrou. Pode sangrar numa penetração vaginal posterior ou nunca sangrar”, aclara a ginecologista.
Da mesma forma, Tânia Graça, explica que “havendo hímenes mais flexíveis, pode haver uma primeira penetração em que ele não rompa, em que não haja laceração e ele se adapte à entrada e saída do pénis, pode acontecer que essa laceração aconteça em mais do que uma vez, ou seja, que haja um sangramento inicial, mas que numa segunda penetração volte a sangrar mais um bocadinho. Portanto, pode não acontecer na primeira vez, pode ir acontecendo, pode acontecer numa segunda ou numa terceira, ou só num parto. Claro que se se verificar sangramentos ao longo do tempo na penetração, pode haver algum problema.”
De facto, Lisa ressalva também que, após se ter tido várias vezes relações sexuais com penetração vaginal, “já não é suposto” uma mulher “sangrar com as mesmas”, aconselhando que, nesses casos, “é sempre uma boa razão para procurar uma observação [médica] porque pode ser sinal de uma infeção ou lesão mais importante, por exemplo, em termos do colo do útero.”
A dor nas relações sexuais não deve ser normalizada
Outra ideia comum no imaginário cultural da sociedade é a de que a primeira penetração vaginal, sobretudo a que acontece através de um pénis, acarreta necessariamente dor para a mulher. Lisa Vicente explica-nos que isso é um mito e que a existência ou não de dor “depende de como correm as coisas numa primeira relação – se a mulher tem tempo de ficar excitada antes da penetração, se está à vontade”. “Às vezes, na primeira [penetração], a pessoa pode estar preocupada por ser a primeira, ou por não saber como vai decorrer, e pode não estar relaxada. Por isso é que, por vezes, pode estar associada à dor, mas não necessariamente”, esclarece.
Tânia Graça avança ter “muitas questões quanto à normalização da dor nas relações sexuais”, pois a mesma não é normal. Embora se tenda a normalizar a dor, “numa primeira relação sexual – aqui falando quando a penetração por um pénis é a primeira experiência – acarreta muitas questões”. “Se calhar, estás nervosa, mais tensa, mais preocupada, se vai acontecer ou não, ainda por cima disseram-te que doía, portanto estás mais contraída. Ou seja, há muito mais coisas do que o hímen que podem levar a que seja uma experiência mais dolorosa, porque há esta contração dos músculos do pavimento pélvico, dos músculos vaginais, o teu corpo está mais contraído, por estares mais preocupada o teu corpo não lubrifica tanto, e como não lubrificas vai ser uma penetração mais a seco e, portanto, provavelmente, mais dolorosa. Mas acho que não podemos assumir que vai ser uma experiência dolorosa, porque não tem de o ser. Pode não ser incrível e, comparativamente às restantes, provavelmente, não será a melhor, mas não acho que seja para assumir que vai doer. Acho que devemos tentar aproveitar ao máximo, relaxar, curtir, ter lubrificante, que vai ajudar imenso. Diria que pode haver algum desconforto se for a primeira vez que entra algo destas proporções num lugar onde nunca tinha entrado nada, ou onde só tinha entrado um tampão, vamos imaginar, mas esse desconforto não supõe que seja uma dor sofrida, uma coisa horrorosa, independentemente da laceração ou não do hímen. Mais do que ir a pensar que vai doer, é pensar como posso aproveitar isto ao máximo. Se for uma experiência boa no seu todo, de envolvimento, conexão – e com conexão não estou a dizer que têm de estar apaixonados, mas em termos de intimidade, de estarem à vontade, de haver excitação –, em princípio, não é uma coisa para doer.
Em casos em que exista uma dor persistente aquando da penetração, em relações posteriores à primeira, Lisa Vicente diz que é “importante ver em consulta questões anatómicas, em termos da pele, em termos vaginais. É importante fazer uma boa história clínica, porque a dor pode ser logo um indício de outros problemas”.
Não existe uma idade certa para iniciar a vida sexual, seja sozinha, seja acompanhada
No seu consultório, Lisa partilha que encontra diferentes formas de viver as expectativas relativas ao início da vida sexual das mulheres: “Ainda há mulheres que querem preservar não ter relações com penetração vaginal, mas também existe o contrário. Existem algumas que veem que a maioria das mulheres, aos vinte e tal anos, já tiveram relações sexuais e, se ainda não tiveram, algumas sentem-se um bocadinho [excluídas]. Há mulheres que acham isso normal por nunca terem conhecido alguém com quem quisessem ter relações sexuais. Outras sentem-se um bocadinho tristes porque achavam que já podiam ter tido. Há outras que não pensam muito no tema.”
À luz da sua experiência como psicóloga sexóloga, Tânia consegue observar uma “inversão clara” na forma de viver a pressão social para iniciar a vida sexual. “Há uns anos, era problemático ter sexo antes do casamento. Atualmente, acho que acontece o inverso, começa a haver uma pressão para que, a partir dos 15/16 anos esteja na altura e se passas muito daí começas a sentir que há algo de errado contigo.” Partilha que recebe algumas mensagens no seu Instagram de mulheres entre os 25 e 30 anos que relatam nunca ter tido uma experiência sexual com penetração, ou qualquer outra, e que expressam a dúvida de se “têm um problema” ou se “é estranha”, sendo que “quanto mais tempo passa, mais a pessoa atribui o significado de que deve haver algo de errado consigo e mais se inibe a, eventualmente, iniciar essas experiências.” “Isso vem da pressão de que há uma idade e que a partir daí estás a ficar fora de prazo e há alguma coisa de esquisito contigo. Não tem de ser assim. É uma coisa absolutamente individual, pessoal, que tem que ver com a tua própria experiência de vida. Pode não ter feito sentido nem aos 15 nem aos 16 anos, não tinha de o fazer nessa idade por ser a idade certa, não. Se calhar, faz sentido aos 20, aos 30 ou aos 40”, reitera.
Por outro lado, Tânia relata que, por vezes, acontece, em relações heterossexuais em que a mulher vai ter a sua primeira experiência sexual, uma tendência de “alguns homens dizerem coisas como – ‘não te agarres muito’, ‘não te apaixones’, ‘agora vou fazer isto com ela, vai achar que sou o amor da sua vida’, mas não é assim, necessariamente”. “Pode acontecer, mas também podes perceber as expetativas da pessoa previamente. Se sabes, à partida, antes de te envolveres com alguém, que é a sua primeira experiência com penetração, podes perceber o que a pessoa espera disso e se está a romantizar imenso aquele momento e tu não. É construir aquilo que te fizer sentido, mas não termos por definição que a primeira experiência tem de ser de forma x, como nas novelas e num determinado ambiente. Pode não ser nada disso e ser ótimo também, ou não ser especialmente bom. É uma primeira experiência como acontece com tantas outras. Não temos de banalizar completamente também, porque é o teu corpo e vai ser uma coisa de que te vais lembrar para a vida toda, mas também não tem de ser colado a um ponto em que há a pressão para ser perfeito”, assinala. Assim, a psicóloga aconselha que se “perceba quais são as expectativas” das várias pessoas envolvidas numa relação sexual. “É preciso respeito e responsabilidade afetiva, mas ninguém deve nada a ninguém e ter uma primeira experiência com alguém não significa que se vá casar.”
A violação de direitos humanos em prol do conceito de virgindade
O “teste de virgindade”, “um exame ginecológico realizado com a falsa convicção de ter a capacidade de determinar de forma precisa se uma mulher ou menina tiveram relações sexuais” é ainda uma prática comum em, pelo menos, 20 países, de acordo com agências da ONU, pedida por pais ou por futuros maridos “para verificar a elegibilidade para casamentos, ou até mesmo, por solicitação de possíveis empregadores”. Ademais, nesse mesmo artigo publicado em outubro de 2018, assinala-se a declaração conjunta – feita no Congresso Mundial da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia, realizado nessa altura no Rio de Janeiro – em como “este tipo de teste não tem fundamento científico e viola os direitos humanos”.
Porém, já em 2014 o Diário de Notícias dava conta de que tinha surgido a recomendação, no manual da Organização Mundial da Saúde (OMS), “Cuidados com a saúde de mulheres submetidas à violência pelo parceiro íntimo ou violência sexual”, de que profissionais de saúde não deveriam aplicar os “testes de virgindade”. Assim, enfatiza-se “o respeito pelo conforto e pelos direitos das mulheres, deixando claro que qualquer exame físico só deve ser conduzido com o consentimento esclarecido da paciente, e deve ser focado em determinar a natureza dos cuidados médicos necessários”, reforçando ainda que estes testes não têm “nenhuma validade científica”.
Tânia Graça explica que estas práticas são uma violação dos direitos humanos “na medida em que é uma violação da tua privacidade, do usufruto do teu corpo como tu achares melhor, é um controlo sobre a tua vida, o teu corpo, a tua sexualidade, que ninguém deve ter” e “isso seria impensável de se fazer a um homem”. Quando questionada sobre esta prática, Lisa disse “nem sequer saber que teste é”, deixando claro que não é algo que aconteça em Portugal.
Outra prática de que, por vezes, ouvimos falar é a cirurgia de reconstrução do hímen. Lisa conta ter tido contacto com estudos que relatam existir “países, nomeadamente no norte de África, em que muitas raparigas vêm estudar para a Europa, nomeadamente para França, e têm relações sexuais, e, depois, muitas vezes, recorrem a técnicos para reconstruir o hímen.” No entanto, a ginecologista ressalva que estas cirurgias, em teoria, “não são para ser feitas” e que acontecem “sempre na área do ilegal e misterioso”, pelo que é algo que não se faz, “de todo”, em Portugal, em contexto hospitalar ou em clínicas médicas.
Ademais, a ginecologista defende que “a observação ginecológica deve ser feita sempre com o consentimento da própria pessoa”. Por outro lado, conta-nos que, para si, “a observação só faz sentido se a pessoa a quiser e se for ganhar com a minha observação”. “E não tem que ver com o facto de as pessoas terem tido relações sexuais, ou não. Às vezes, as pessoas já tiveram relações sexuais, mas não têm vontade nem sentem necessidade de serem observadas. Para mim, isso é perfeitamente pacífico”.
Resignificar a noção de perda da virgindade e educar para uma sexualidade livre
Tânia Graça defende, desde logo, que “não perdes a virgindade, no máximo ganhas o início da tua vida sexual, que se espera que seja boa”. Almejando que se deixe de associar o início da vida sexual de uma mulher a algo negativo, como uma perda, a psicóloga explica que “não perdes nada, a virgindade não foi a lado nenhum, apenas ganhaste o início da tua vida sexual e, agora, vamos trabalhar para que ela seja boa”.


Para que haja uma sociedade diversa e igualitária que, inclusive, promova a erradicação das opressões sobre o corpo das mulheres e quanto às vivências da sua sexualidade, Tânia considera que a educação sexual tem uma importância de 100 %, pois “ao contrário do que a maioria pensará, esta não vem ensinar como fazer sexo, ou incentivar a que se faça sexo”. “Pelo contrário, já se percebeu, por estudos que foram feitos, que jovens que têm acesso a educação sexual tendem a iniciar a sua vida sexual mais tarde, comparativamente com aqueles que não lhe tiveram acesso. Ou seja, quando tens a informação, consegues fazer escolhas mais informadas, mais conscientes.”
Neste sentido, Lisa Vicente destaca a importância da educação sexual em “dar a conhecer como funciona o nosso corpo, como é o nosso corpo, como decorre a resposta sexual, esta questão da imagem corporal e das representações associadas a cada parte do corpo”, sendo também importante para dar a entender o “conceito de virgindade e do hímen”. Por outro lado, permite trazer temas como a “identidade de género, a orientação sexual, e questões que são importantes para podermos viver melhor com o nosso corpo e na forma como nos relacionamos com os outros”.
De facto, Tânia aponta que, “a educação sexual, se feita como se prevê, traz o ensino sobre a igualdade de género, o respeito a pessoas LGBT, pela diversidade de orientações sexuais para o consentimento, para limites, para perceber que tenho a liberdade de dizer que não, que sim, de usufruir do meu corpo como quiser, que não existe uma avaliação diferente de um homem ou de uma mulher, numa mesma prática sexual – se um tem dez parceiras e outra tem dez parceiros não pode haver uma avaliação diferente, nem deveria haver uma avaliação diferente, porque é a tua vida, o teu corpo.”
Embora tudo isto seja “absolutamente essencial para a construção de uma sociedade mais justa e mais igual”, como nos diz Tânia, a educação sexual nas escolas “continua a não acontecer como está legislada”. “Tem uma carga horária definida, conteúdo previsto – e isto já está legislado desde 2009 – e o que é facto é que não acontece por uma série de condicionantes – professores que não se sentem preparados para dar este tipo de conteúdos, seja pela idade, pelas vivências que tiveram, pelo pouco à vontade com a temática –, mas têm de se arranjar soluções, porque continuo a achar que é o caminho para desmistificar coisas como o conceito de virgindade, que é um conceito opressor e que vem apenas controlar o corpo da mulher, dando esse poder ao homem. Isto nada mais é que uma imagem precisamente de desigualdade de poder. Portanto, se queremos educar para essa igualdade, este seria, sem dúvida, um bom tema para discutir numa aula de educação sexual. Vamos esperar que comecem a ser feitas como, de momento, ainda não o são”, remata a psicóloga.


Lisa Vicente garante ainda que “é importante e indispensável que a educação sexual vá sendo feita ao longo de toda a vida, de forma formal e informal”. “Sempre que abordamos ou estudamos um tema, estamos a continuar a nossa educação sexual, isto para dizer que é um processo contínuo, não é uma coisa que acontece algures, ligada à escola ou a algum momento da vida em concreto. É, de facto, um processo contínuo que a pessoa deve manter ao longo da vida, de aprendizagem sobre o seu próprio corpo e de como ele funciona.”
*Esta reportagem foi inicialmente publicada a 23 de dezembro de 2022.