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Opinião de Cátia Vieira

Zunzum – como gosto desta palavra

Nas Gargantas Soltas de hoje, Cátia Vieira fala-nos sobre o auto-respeito.

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No decorrer do ano passado, algumas advertências amigáveis foram chegando ao meu ouvido. Vamos chamar-lhe um zunzum existencial. Aproximava-me dos trinta e, entre o meu círculo de amizades, seria a última a abandonar a inocência dos vinte. Esta não era grande conquista, começava a parecer-me. Algumas pessoas, que eu reconhecia como pragmáticas, começavam a assumir que os trinta eram mais do que um número. Eram uma viragem para as responsabilidades da vida adulta. Enquanto as palavras deles ruminavam na minha cabeça, o meu olhar recaía sobre as suas olheiras. Nunca reparara nelas até então. Será que já lá estavam? Provavelmente, pensava para os meus botões. Afinal de contas, atenção para o detalhe não é o meu forte. Outras pessoas, mais dramáticas, alertavam-me para que aproveitasse os últimos cartuchos, porque agora era sempre a descer - li-te-ral-men-te. Fogo, ainda tenho tanto para subir, lá respondia eu. Estranhei, quando um ou outro se dedicou a uma auto-reflexão exaustiva sobre o passado e o futuro e decidiu mudar de vida; e preocupei-me quando outros, que nada tinham dito sobre esta viragem, começaram a esvanecer para se focarem na família e no trabalho.

Ainda assim, o meu optimismo não me falhou. Tinha as crises existenciais do costume: o que ando aqui a fazer, para onde vou, o que há depois da morte, como posso viver num país que vota PS nos tempos que correm… Enfim, como diria a minha avó, mais arroz. Mas, em nenhuma circunstância, a minha preocupação recaiu sobre estar prestes a fazer trinta. Perto de Dezembro, mês do meu aniversário, encontrei o meu primeiro cabelo branco. Era apenas um, garanti que estava solitário. Quase fraquejei. A partir de agora, seria sempre mesmo a descer? Acabei por dizer a mim mesma que este cabelo não se transformaria no encontro que Clarice Lispector nos proporcionou com a barata de G.H. Para garantir que não fraquejava nos dias seguintes, arranquei-o.
Depois desse acto, fui tomada de assalto por um conceito que me começou a obcecar (apesar de não terem qualquer co-relação): o auto-respeito. Ao longo do ano passado, encontrei-me em algumas situações complexas, que desafiaram os meus limites. À medida que ia reflectindo sobre este topos a solo ou na terapia, ia relendo o ensaio de Joan Didion, publicado na Vogue norte-americana em 1961, intitulado Self-Respect - em português, auto-respeito. Nesse texto icónico, a escritora afirma que esse conceito não está relacionado com a aprovação alheia ou reputação. Imbrica-se, acima de tudo, com a coragem de assumirmos os nossos erros. Quem se respeita, está consciente de que tudo na vida tem um preço e que esse preço deverá ser pago. Em suma, pessoas que se respeitam evidenciam uma moral robusta e aquilo a que se costuma apelidar de carácter.

Ao reflectir sobre esta palavra composta - auto-respeito -, ia cogitando sobre o caminho para o alcançar. Esse parecia-me ser o grande desafio. Nascemos e morremos sós. O percurso é que se faz, por vezes, acompanhado. Estando assim, entregues a nós próprios, o auto-respeito deveria ser-nos intrínseco. Respeitar quem somos e as nossas experiências deveria ser uma habilidade que nasce connosco como respirar. No entanto, não é o caso; é algo que temos de aprender. Na verdade, a maioria de nós nega estar entregue a si mesmo. Existe um pudor em torno de determinadas questões como a solidão ancestral e a morte e essa é uma das razões pelas quais passamos a vida em busca de alguém que colmate essa ausência, essa incerteza que a finitude nos traz.  Quem sabe, é também um dos motivos pelos quais abrimos mão do auto-respeito, em certos momentos. Se ele não nos é intrínseco e se temos de o apreender, resta saber em que consiste e como o interiorizar.
Parece-me que a descrição de Joan Didion, que nos surge nas suas habituais palavras incisivas e clínicas, é exímia. A meu ver, para nos respeitarmos, devemos ter a capacidade de reconhecermos e impormos os nossos limites, assumindo as consequências desse acto. Ter auto-respeito é afirmar o nosso ser e as suas necessidades, não obstante todo e qualquer medo. Incluindo, o de estar só. Um dos factos mais interessantes de que me apercebi, ao longo desta reflexão, é que a língua portuguesa tende a traduzir self-respect como amor-próprio, em vez de auto-respeito, em alguns dicionários. Apesar de não achar que estes dois últimos termos sejam intermutáveis, a verdade é que o auto-respeito é uma manifestação de amor-próprio.

Didion estava a três anos dos trinta, quando escreveu este ensaio. Era um pouco mais nova do que eu - como os Boomers têm por hábito de dizer, antes amadurecia-se mais cedo; nós, millennials, é que andamos a reboque. Contudo, não posso evitar assumir que esta reflexão crucial e transversal sobre o auto-respeito é um sinal dos tempos e da tal viragem de que tanto me falavam. Já em 2023, encontrei outro cabelo branco. É o segundo e também este surge solitário como um aviso manso da maré de mudança. Desta vez, não o arranquei e continua por lá. É que, na verdade, os trinta não são o princípio do fim ou o grito austero das responsabilidades. São, acima de tudo, uma consciencialização da nossa individualidade, bem como das nossas liberdades, necessidades e limitações. O auto-respeito deveria ser sempre não-negociável; mas, se a partir dos trinta, não se torna mote da nossa caminhada, arriscamo-nos a que nos aconteça o que Didion tanto temia: escapamos para nos tentarmos encontrar, e acabamos por regressar a uma casa que está só.

-Sobre Cátia Vieira-

Cátia Vieira diz que não tem ídolos, mas chorou quando o Leonard Cohen e a Joan Didion morreram - e até sabe o mapa astral deles. Também diz que não é grande fã de pessoas, mas não pára de ler livros que esmiuçam a mente humana. Por isso, é que estudou Estudos Portugueses e frequentou o Doutoramento em Modernidades Comparadas, na Universidade do Minho. Como se já não lesse muito (o T1 está a ficar pequeno para as gatas e livros), também escreve. Lola, o seu primeiro romance, foi publicado em 2021, pela Penguin Random House, e encontra-se, neste momento, a escrever a sua segunda obra. À noite, dá-lhe para escrever poesia. Também trabalha como directora criativa na Selafano e fundou a Alma Interior Design Studio, uma marca de design de interiores. Vive em Braga e publica as suas leituras e ideias sobre a vida e o mundo em @catiavra. 

Texto de Cátia Vieira
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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