fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

42: O ano do Leão

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 15.º episódio, Alex reflete sobre a extinção dos leões, um símbolo da devastação ambiental e das crises globais, enquanto continua a sua investigação sobre o passado revolucionário da mãe.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Deitado na minha carruagem-cama entretinha-me naquele que se ia tornando um dos meus hábitos mais reconfortantes: ver as paisagens pela janela do comboio. Neste caso, as águas do Lago Michigan. Já tínhamos feito metade do caminho quando parámos em Chicago. O casal que me acompanhava e a sua criança barulhenta despediram-se, pelo que finalmente tive sossego. Depois dos arredores da cidade, começou um percurso muito bonito a que chamavam “Great River Rail”. No meio do grande lago Michigan flutuavam barcaças cobertas de painéis solares que transportavam pessoas e mercadorias enquanto capturavam energia. Grandes bandos de aves voavam sobre as águas. Do lado contrário dos carris erguia-se uma densa floresta de coníferas, no meio das quais pontuavam pequenas casas. As cheias do lago já tinham submergido a linha várias vezes nos últimos anos, informou o condutor do comboio enquanto atravessávamos um baixio. No entanto, os maiores efeitos das rápidas variações do nível de água foram nas zonas baixas das cidades de Chicago e de Milwaukee, que começavam a ser relocalizadas, com as populações a ser transportadas para novas localizações.

Estava deitado há quase uma hora, exausto mas sem conseguir dormir. O colchão era demasiado mole e a minha cabeça não conseguia desligar. Estava preocupado com a falta de resposta por parte da Lia, a quem tinha voltado a tentar ligar sem sucesso. As minhas mensagens também não tinham resposta. Imaginei algum acidente, com ela e o António a serem apanhados numa cheia em Espanha sem a minha ajuda, e eu ali, desaparecido a milhares de quilómetros de distância, com um oceano inteiro entre nós e sem qualquer possibilidade de poder voltar para casa se fosse urgente. Tinha tomado a decisão errada em vir? A Lia tinha-me incentivado. Para quê? Para escrever um livro sobre uma coisa que não interessava a ninguém além de mim? Merda.

O comboio balançava quando me levantei da cama, pelo que deixei cair o relatório, espalhando as suas muitas folhas pelo chão. Apressei-me a apanhá-las, pensando já no trabalho extra de agora ter que reordenar as folhas. Sentei-me na mesinha que havia na carruagem, tentando pô-las por ordem, mas a oscilação fez-me sentir tonto, trazendo-me uma memória-naúsea da terrível viagem marítima entre Antuérpia e Nova Iorque. Estava angustiado com a dificuldade em sentar-me e ler o que a Josephine me tinha dado. De certeza que estaria ali algo que me permitiria conhecer melhor a minha mãe, na sua versão “Maria García”. Como não consegui, decidi abrir o computador para ver mais coisas que a Lia me tinha enviado. O ficheiro “Ano do Leão”, outro podcast, chamou-me a atenção. Estava presente em vários documentos e entrevistas que tínhamos feito, mas eu não sabia exatamente quão crítico tinha sido aquele momento. Pus a tocar enquanto reordenava lentamente as folhas do relatório.

Podcast: Ano do Leão, o início de uma nova era

O Ano do Leão foi o mais simbólico evento daquela que é a maior crise provocada deliberadamente por um ser vivo no planeta Terra: a sexta grande extinção de espécies. Não tendo esta espécie já um valor ecológico central para a maior parte dos ecossistemas onde uma vez o Panthera leo ficou conhecido como “O Rei da Selva”, o desaparecimento dos leões selvagens provocou uma profunda comoção por todo o mundo. Ao contrário dos Dódós, dos pequenos golfinhos Phocoena sinus, ou dos rinocerontes da Sumatra, a extinção dos leões em natureza, cujo enorme risco estava assinalado há mais de duas décadas por cientistas de todo o mundo não veio e passou como apenas “mais um ser vivo desaparecido”. Chocou pela velocidade com que passámos de perigo para extinção e chocou pela proximidade histórica e cultural com a espécie. Os dois últimos exemplares conhecidos, duas leoas adultas chamadas Noltapata e Hasina, foram encontradas mortas na Reserva Natural de Masai Mara, no Quénia. Foram as derradeiras vítimas de caçadores furtivos a mando do califado Aden Ayro.

A notícia espalhou-se como fogo na savana africana: o anunciado fim do leão tinha chegado. Ninguém tinha levado a sério a ameaça, apesar de todos os avisos. Ninguém tinha percebido o definitiva que era esta ameaça, isto é, até ser impossível escapar à realidade. Houve cerimónias tradicionais e missas improvisadas, cantos de dor e de tristeza levantaram-se primeiro na África Oriental, depois espalharam-se pelo continente e rapidamente para todos os outros. “Roubaram tudo a África. Roubaram as suas pessoas e os seus recursos, as suas árvores e os seus minérios. Roubaram os seus elefantes e as suas gazelas. Reproduziram mini-Áfricas e mini-mundos nos jardins zoológicos ocidentais enquanto construíram a destruição de tudo o que ainda sobrava ao nosso povo. E agora? Agora roubaram o nosso leão, o nosso símbolo, a nossa força, a nossa divindade. África não pode mais ser roubada. Não vamos mais deixar África ou o seu povo ser roubado.” disse Theresa Shabani, líder do movimento panafricano Ushindi wetu.

Mas os últimos leões desaparecidos não eram os mais representativos. O efeito dos caçadores furtivos na extinção do leão é responsável no máximo, por 5% dos desaparecimentos. A proibição de caça legal a leões não tinha sequer cinco anos quando desapareceram os últimos exemplares. Mas mesmo a soma de caçadores furtivos e caçadores legais representou pouco em comparação com a destruição do clima e dos habitats onde viviam, comiam e se abrigavam os leões. Em menos de dez anos passou-se de cerca de 20 mil leões vivos na natureza para nenhum, em uma dezena ou menos de países. O mundo estava a braços com mil crises: financeiras, políticas, climáticas, sociais, militares, para agir de forma decisiva.

A guerra total entre o exército tanzaniano e as milícias do Estado Islâmico que antecederam a formação do califado é considerada diretamente responsável pelo desaparecimento de cerca de 14 mil leões. A sul, o mesmo conflito contribuiu para a destruição de mais de dois mil leões, em particular na Reserva do Niassa e no Parque Nacional da Gorongosa. As peles de leões passaram a ser elementos usuais nas fardas dos exércitos de todos os lados. As ondas de calor na África do Sul e no Botswana dizimaram as suas presas, as populações locais de zebras, bois-cavalos e búfalos. Muitos leões também morreram por causa das temperaturas recorde atingidas. As notícias do desaparecimento sucessivo dos leões país a país, que se foram sucedendo nos anos antes do Ano do Leão, levavam sempre a anúncios de fundos e de iniciativas públicas e privadas para travar o desaparecimento da espécie. Estes fundos eram desviados para outras iniciativas, gastos em projetos inúteis ou nem sequer chegavam a ser transferidos. A promessa de clonar leões para repovoar a África do Sul ou de introduzir na natureza as populações nascidas nos jardins zoológicos apenas levaram a mais desapontamentos e morte dos espécimes envolvidos. No fundo, apesar de assinalarmos o fim do leão, o que tinha desaparecido eram os territórios e os climas que tinham permitido a existência da espécie por todo o continente. Não tinham também desaparecido os leões europeus dezenas de milhares de anos antes, na altura em que surgira a agricultura?

No resto do mundo, em profunda convulsão, entre o bloqueio do canal do Suez, o cemitério do de arame que matava milhões na Europa de Leste, os rumores revolucionários na Europa e no continente americano, a notícia do fim do leão caiu como uma bomba. Mesmo em zonas de conflito houve paralisações. De todos os lados as pessoas percebiam que o que estava a acontecer-nos a todos não era mais escapável ou evitável. Não havia ninguém que não soubesse o que era um leão, provavelmente toda a gente já tinha até visto um leão e a sua força bruta em algum momento da sua vida. A extinção do leão foi vista como a extinção de uma parte da humanidade. Significava que nós, humanos, podíamos extinguir-nos, que nós podíamos desaparecer. E não é como se não houvesse gente a dizê-lo há muito tempo. Além disso, foi depois do ataque nuclear no Texas, depois da explosão da central de Zaporizhzhya, depois das ondas de calor, das quebras massivas de colheitas. As maneiras como podíamos desaparecer eram várias e acumulavam-se. O sentido geral do que tinha acontecido ao leão, o caráter definitivo das grandes mudanças em que vivíamos, tudo apontava para a sensação da nossa mortalidade coletiva. As lutas encarniçaram-se e a violência aumentou. Não sabemos se foi coincidência ou não, mas até ao fim desse ano uma boa parte da velha ordem estaria destruída, a muralha arrasada, as revoluções francesa, brasileira e californiana vitoriosas, derrubando os frágeis regimes em vigor. A guerra civil americana acabaria e Rússia tornar-se-ia um potência alimentar, após anos a perder os seus territórios periféricos. A imagem do crânio de leão tornou-se um símbolo revolucionário. O leão tornou-se um dos principais símbolos da Grande Mudança.

©Nuno Saraiva

Foi também no Ano do Leão que se assinalou a destruição do califado Aden Ayro. A própria bandeira da República Oriental Africana, a OAR, formada em Dezembro de 2030, assinala as ossadas de leão. O exército da OAR, composta pela África do Sul, a República Eco-Social de Moçambique, Tanzania e Quénia, conseguiu acabar o que o anterior exército da SADC não tinha conseguido: destruiu o Estado Islâmico na África Oriental. Diz-se que o regimento que conseguiu finalmente conquistar Mbeya ao califado transportava os ossos de Noltapata e Hasina. As palavras finais da general Mondlane no discurso de formação da nova república foram mesmo “Sob as ossadas do último leão erguer-se-á o grande elefante africano”.

Até chegarmos a Minneapolis voltei a falar com Luiz. O seu conhecimento sobre a vida da minha mãe após a sua saída da Descarbonária era pequeno, apenas sabia que ela tinha ido para Sul e que tinha voltado ao México, onde tinha feito estragos nas operações da Máfia. E sabia que ela tinha morrido lá, no México. Contou-me histórias sobre o que ele próprio tinha feito entre o fim da guerra e a dissolução da Descarbonária, como tinha participado na procurar e desmantelamento de operações petrolíferas ilegais geridas por grupos criminosos um pouco por todo o Atlântico Norte, das incursões no Texas para resgatar pessoas mantidas contra a sua vontade e como tinha rejeitado juntar-se ao partido, acabando por voltar para a Transpiness, onde agora já não se enquadrava bem. Era uma pessoa que tinha ficado desenquadrada depois de muitos anos de ação ao mais alto nível.

- O mundo ainda é um sítio muito perigoso, mas eu já não me sinto capaz de enfrentá-lo como quando tinha vinte anos. Por outro lado vejo muita gente jovem no comando, o que é encorajador, mas também às vezes sinto que não têm a experiência e a consciência suficiente das ameaças. As coisas nunca estão decididas, é sempre possível voltar para trás. E por isso é sempre preciso continuar a lutar, mesmo quando parece que estamos perto de ganhar ou que ganhámos. Se calhar foi um erro a dissolução da Descarbonária, mas também não tive vontade de seguir os passos da Maria e juntar-me ao Exército Verde. Por outro lado, ainda não sou um velho.
- Quantos anos tens?
- Quarenta. - Parecia ter bastante mais.
- Sei que pareço mais velho, mas é só fruto de décadas de tensão máxima. E sabes que mais? Também estou doente. Estou a morrer.
- A morrer?
- Eu pensava que era cancro, que é curável, mas é uma forma persistente de encefalite provocada por um arbovirus, provavelmente por causa de picadas dos novos insetos que há nos Estados Unidos.
- Mas não pareces mal.
- A medicação está a deixar de surtir efeito. Os médicos dizem que é uma questão de meses. Por isso mesmo foi tão bom podermos falar.
- Lamento muito, Luiz.
- Não lamentes. Eu não lamento. Faz parte do preço que pagamos por tudo o que foi destruído. Vemo-nos depois.

Luiz desapareceu antes de chegarmos a Minneapolis. Foi apenas poucos minutos antes de chegarmos à estação que consegui finalmente falar com Lia.

- Sim?
- Olá, Lia. Está tudo bem? Não consigo falar há dias.
- Sim, está tudo bem. Já estou de regresso a casa.
- O que se passa? Porque não me respondeste?
- Está tudo bem, não te preocupes. O António também está bem.
- Então porque não consegui falar contigo?
- Alex, aconteceu uma coisa. Não fiques stressado. - como é que eu não fico stressado depois de me dizerem para não ficar stressado?
- O que aconteceu?
- Eu e o Ettore… Nós ficámos juntos.
- Ficaram juntos como?
- Como as pessoas ficam juntas. Somos adultos, Alex.

Fiquei em silêncio, atónito.

- Alex, estás aí?
- Sim. Não estava tudo bem entre nós? Como é que isto aconteceu? Nós não tínhamos um acordo de ficar juntos os dois enquanto o António fosse criança?
- Eu não quero deixar de estar contigo, Alex. Foi só uma coisa que aconteceu.
- Não foi só uma coisa que aconteceu. Se fosse só uma coisa que aconteceu não paravas de me responder durante dias…
- Ele é interessante, mas não é mais do que isso. Ele está com o Gianni. Não faço disto mais do que uma coisa física. - As tentativas de me tranquilizar não estavam a ser muito eficazes. Entretanto o comboio tinha parado em Minneapolis.
- Olha, Lia, preciso pensar sobre isto. Agora tenho de sair. Estou a chegar a Minneapolis.
- OK. Falamos depois.
- Sim, falamos depois.
- Um beijo Alex.
- Tchau.

Que murro no estômago. Quando saí do comboio um homem veio ter comigo e cumprimentar-me, levando-me novamente a uma sede do partido ecomunista na cidade, um ritual que se iria repetir em quase todos os sítios que eu ia visitar. Nem me lembro bem da nossa conversa, só pensava no que a Lia me tinha dito. As entrevistas foram rápidas e cansativas - “Quantos elementos ativos tem o movimento neste momento? Quantas novas pessoas foram recrutadas nos últimos seis meses? Como avalias a preparação política dos novos quadros? Em quantas formações políticas políticas participaste nos últimos seis meses? Como tem decorrido a participação nas assembleias temáticas? Existe inatividade indesejada na tua área de atuação?”, a enorme bateria de perguntas que eu repetia uma e outra vez aos quadros ecomunistas e no dia seguinte estava novamente no comboio, rumo a Denver. Lia tinha-me ligado mas eu tinha adiado a nossa conversa.

Quando o comboio arrancou Luiz veio sentar-se e meu lado.

- Ainda por aqui? - perguntei-lhe.
- Sim, se não te importares com a companhia.
- Não, nada. - disse sem grande energia.
- Que se passa contigo?
- Estou um pouco abalado com uma novidade sobre a minha companheira.
- O quê? Ela enrolou-se com outra pessoa?
- Como sabes?
- É a resposta a mais de 80% das preocupações de casais. Mesmo quando as pessoas se acham muito modernas e livres. É um pouco surpreendente.
- Nós sempre tivemos uma relação muito aberta. Há anos. Relacionávamo-nos com outras pessoas, mas voltávamos um para o outro ao fim do dia, na maior parte das vezes.
- Então o que há de diferente agora?
- Tínhamos feito um acordo, agora que tínhamos um bebé, decidimos que enquanto ele fosse pequeno, não estaríamos com outras pessoas.
- Mas entretanto tu vieste para o outro lado do mundo. Não falaram sobre isso?
- Não.
- Então acho que talvez estejas a ser um pouco dramático.
- Obrigado pela tua opinião.
- Acalma-te, é normal estas coisas acontecerem. A maneira como as relações foram idealizadas ainda está presa num passado em que as coisas eram completamente diferentes. E mesmo aí era uma fantasia, não um modelo funcional, por isso é que era precisa tanta repressão moral e violência, em particular para manter as mulheres na ordem. Nas últimas décadas mudou muita coisa neste aspeto, não foi apenas haver mais aceitação das diferentes orientações sexuais e identidades de género. Mas não há nenhum modelo que funcione sempre, é…
- Obrigado, não quero receber uma aula. Eu sei que isto é tudo complicado.
- OK, não te chateio mais sobre isto. Como vai a leitura do relatório da tua mãe?
- Lenta. Tenho-o aqui, queres ler comigo?

Fizemo-lo juntos, sentados vários horas.

@Nuno Saraiva

Resumo: Primeira travessia de grande volume (>50.000) de refugiados realizada em parceria entre o Mundo Novo (NW) e o Exército Verde (EV). Primeira entidade forneceu equipa de logística e a segunda forneceu a equipa de segurança. Partida no dia 30 de Setembro, saindo de La Ceiba, município devastado pelas tempestades marítimas e seca extrema. Reajuste na equipa armada após 30 dias da travessia, coincidindo com a chegada a Nayarit, no México, após segundo pico de violência. Posteriormente a caravana foi dividida em três agrupamentos, que chegaram a velocidades diferentes ao destino final:

Equipa 1: composta principalmente por adultos e jovens adultos em viagem individual ou em casais fez o percurso em 41 dias, chegando a San Bernardino a 11 de Outubro;

Equipa 2: composta por famílias terminou aos 60 dias, terminou a viagem a 30 de Novembro;

Equipa 3: composta principalmente por idosos, crianças, e adolescentes sozinhos, apenas concluiu a viagem após 93 dias, concluindo a 2 de Janeiro

As enormes dificuldades sentidas na conclusão da travessia prenderam-se, por ordem decrescente com:

- Ataques e raptos por elementos externos à travessia (62%)
- Assentamentos oferecidos por comunidades de passagem (15%)
- Intempéries e deslizamentos de terras (7%)
- Ruptura de stock de produtos alimentares (3%)
- Dificuldade de instalação e levantamento dos acampamentos (3%)
- Surtos de doenças (2%)
- Violência interna entre grupos na travessia (1%)
- Outros (7%)

Perdeu-se grande número de elementos em ataques sofridos nos primeiros 500 quilómetros da caravana. Iniciativas foram executados por milícias locais e alianças criminosas nas Honduras e Guatemala. A coluna saída de Tegucigalpa sofreu os ataques mais violentos antes de se encontrar com a coluna vinda de La Ceiba, onde vinham dois batalhões do EV. Esta coluna de Tegucigalpa, organizada de forma espontânea e com elementos de várias nacionalidades, foi acossada dentro da cidade e atacada assim que saiu da mesma, tendo como proteção apenas dois pelotões do EV. Mais de 20 mil elementos desapareceram e dispersaram, com número de mortes impossível de estimar. Após a junção das colunas os ataques continuaram, mas com menor capacidade, perdendo-se mais 4 mil pessoas até à saída da Guatemala. O percurso dentro de Chiapas e Oaxaca correu de forma exemplar, com um razoável número de refugiados assentando nessas terras a convite das entidades locais. Os acordos de abastecimento foram cumpridos integralmente e com muita flexibilidade por parte das autoridades locais. Na fase posterior, os três mil quilómetros entre Córdoba (Veracruz) e Tijuana (Baja Califórnia), a caravana foi frequentemente acossada por raptores e ladrões, num esforço por parte dos cartéis e máfias para desmobilizar e desmoralizar a caravana. Mais de 8 mil pessoas, especialmente jovens mulheres e raparigas, foram raptadas em diferentes partes do percurso, em particular durante os primeiros mil quilómetros. O reforço do EV em Tepic surtiu elevado efeito a nível da proteção dos acampamentos, contribuindo para tal os maiores números e as equipas de proteção por drones. Em Tepic foi feita a decisão de dividir a caravana em três partes, aumentando a capacidade de defesa dos grupos e ajustando-se a segurança na mobilidade.

©Nuno Saraiva

A travessia do triângulo Sinaloa, Durango e Chihuahua implicou negociação direta com os cartéis, sob ameaça de intervenção por parte do EV e da Descarbonária, reduzindo-se drasticamente o número de pessoas raptadas. A travessia do Deserto de Pinacate correu de forma bastante eficaz. Os deslizamentos de terra à entrada de Baja Califórnia levaram ao desaparecimento de pelo menos 1500 elementos, uma derradeira tragédia em todo o processo. Dentro do território californiano, os números de EV necessários reduziram-se drasticamente, sendo substituídos pela recém-criadas Guarda Californiana, que os conduziu ao destino final, San Bernardino.

Instabilidade emocional, apatia e medo atrasaram muito o processo - falta de pessoal para equipas permanentes de cuidados com forte impacto no insucesso da travessia.

A minha mãe tinha guiado uma das colunas que eram a sequência natural das caravanas que quase desde o início do século subiam desde a Nicarágua, El Salvador e Honduras rumo aos Estados Unidos para fugir das sucessivas catástrofes sociais e climáticas que devastavam a língua de terra entre o mar das Caraíbas e o Oceano Pacífico. Em particular os agricultores da região viam ano após ano as suas colheitas serem devastadas por secas seguidas de cheias e deslizamentos de terras, os litorais eram devastados por tempestades e furacões sem precedentes, que afundaram vários barcos de pesca e cruzeiros do Caribe. A “Via Sacra dos refugiados” já assumia mesmo um caráter religioso, uma espécie de fuga dos judeus pelo deserto, à procura de paz e de um sítio onde viver depois das suas casas de sempre serem destruídas pelo caos climático. As máfias faziam destas migrações desorganizadas um grande negócio, extorquindo e cobrando aos refugiados aquilo que tinham e não tinham, vendendo travessias em troca de dinheiro e mais tarde mulheres, filhas e filhos para os seus bordéis, para as suas tropas, para as suas minas e plataformas petrolíferas, espalhadas por todo mundo. A introdução do Exército Verde e do Novo Mundo, que se consolidou mais tarde na Rota do Futuro, foi um enorme rombo para as máfias e tornou as perigosíssimas migrações em algo um pouco mais gerível. As lições aprendidas em travessias como esta foram usadas para evitar os mesmos erros e para reduzir drasticamente a perda de pessoas. Os outros episódios descritos no relatório, incluindo dois assinados pela minha mãe, mostraram como ela tinha conseguido enfrentado a barbárie da Máfia. Mas não percebi exatamente a que custo pessoal.

O Luiz acompanhou-me até Denver e segui a minha viagem de trabalho até Los Angeles, a minha primeira paragem fora dos Estados Unidos. Quando se despediu, foi novamente misterioso, mantendo a sua aura de espião, que acho que gostava de exibir. Antes de eu descer na estação de comboio de Denver, sentou-se ao meu lado.

- Sabes que não entrei para o movimento ecomunista, apesar de ter sido convidado.
- Por quê?
- Achava pouco disciplinado em comparação com a Descarbonária. E nunca compreendi como a tua mãe não estava no topo da hierarquia. Acho que havia mesmo um preconceito em relação aos guerrilheiros, às pessoas de ação. E havia poucas pessoas como ela, que arriscaram tudo sempre, pessoas com um coração de leão.
- Mas foi o movimento que permitiu que ela fizesse tudo o que fez. Eu acho que ela acreditava nisso.
- Sim, ela acreditava no movimento. Mas não sei se o movimento acreditou nela até ao fim. Ela destruiu impérios de mafiosos, de petroleiros, era muito odiada por quem soubesse quem era e o que tinha feito. Ela tinha de se proteger melhor.
- Pelo que estou a descobrir, ela nunca esteve muito preocupado em proteger-se.
- Mas o movimento tinha o dever de protegê-la melhor. Bem, não vale a pena agora lamentar-me mais sobre a sua morte. - Lágrimas rolaram dos seus olhos. - Alex, foi um verdadeiro prazer conhecer-te. Não sei se sabes isso, mas és muito muito parecido com a Maria, com a Marta.
- O meu avô dizia-me.
- Protege-te. Fica com o meu contacto mas não o partilhes com os teus “camaradas”. Não tenho tempo para novas aventuras. - Aproximou-se de mim e deu-me um forte abraço. - Cuida-te, meu querido.

Texto de João Camargo

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

2 Outubro 2024

42: Panamericana

18 Setembro 2024

42: Como explodir um gasoduto

18 Setembro 2024

Quase 1300 pessoas e uma centena de coletivos pedem ação política contra escalada do ódio

16 Setembro 2024

O ódio ganhou terreno e está a contaminar o quotidiano

12 Setembro 2024

Obrigam-me a vir para a rua gritar

11 Setembro 2024

42: Arame farpado na rebentação

9 Setembro 2024

Mariana Jones: “Os ataques à liberdade de expressão estão a normalizar-se”

4 Setembro 2024

42: Mau tempo no Atlântico

28 Agosto 2024

42: O último cargueiro de Antuérpia

21 Agosto 2024

42: O algoritmo do trabalho

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura II – Redação de candidaturas [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e manutenção de Associações Culturais (online)

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

5 JUNHO 2024

Parlamento Europeu: extrema-direita cresce e os moderados estão a deixar-se contagiar

A extrema-direita está a crescer na Europa, e a sua influência já se faz sentir nas instituições democráticas. As previsões são unânimes: a representação destes partidos no Parlamento Europeu deve aumentar após as eleições de junho. Apesar de este não ser o órgão com maior peso na execução das políticas comunitárias, a alteração de forças poderá ter implicações na agenda, nomeadamente pela influência que a extrema-direita já exerce sobre a direita moderada.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0