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48 anos depois, herdeiros do 25 de Abril ainda lutam por liberdade

São filhos e netos da revolução. Nasceram em democracia. Beneficiaram do Estado Social. Mas consideram…

Texto de Flavia Brito

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São filhos e netos da revolução. Nasceram em democracia. Beneficiaram do Estado Social. Mas consideram o 25 de Abril um projeto inacabado e a liberdade uma luta contemporânea. O Gerador falou com quatro jovens, entre os 20 e os 30 anos, para perceber como os ideais de Abril continuam vivos nas suas vidas.

Afinal, o que significa a efeméride para quem a PIDE, a censura e os territórios colonizados já só existem nos livros de História? “De forma imediata, o 25 de Abril acabou com o fascismo e com a Guerra Colonial", responde prontamente Leonor Rosas, ativista estudantil e feminista de 22 anos. "Uma ditadura de 48 anos e uma Guerra Colonial que somava já 13 anos, que era uma guerra completamente contra os ventos da história e que levou a vida a milhares e milhares de pessoas, que, na altura, tinham as nossas idades, e até mais novas”, esclarece. “Depois, num segundo plano, é uma construção que acho que ainda está inacabada, de uma sociedade de iguais.” A também deputada na Assembleia Municipal de Lisboa, pelo Bloco de Esquerda, considera que parte do sonho de Abril foi construído e chega até nós, através do Estado Social, mas que há ainda muito por fazer: [o 25 de Abril é] "um projeto de nacionalização e de coletivização que ficou por terminar, um projeto de um de um Portugal onde não mandavam as grandes oligarquias, não mandavam os grandes grupos económicos, mas mandavam as pessoas."

De acordo com um inquérito, publicado ontem, são os jovens entre os 35 e os 44 anos, as mulheres e os mais instruídos que mais valorizam a Revolução dos Cravos. A conclusão é de um estudo, realizado pela Universidade Católica Portuguesa (CESOP) para a Fundação Mário Soares e Maria Barroso, que pretendia identificar os principais contributos do 25 de Abril aos olhos da população portuguesa, acima dos 16 anos.

Andreia Galvão, 22 anos. Fotografia de cortesia.

Filha de pais imigrantes cabo-verdianos, Andreia Galvão demorou alguns anos até perceber o que a data significava para ela. “Não sentia que [a História portuguesa] fosse sobre mim, e acho que [o 25 de Abril] é mesmo sobre essa noção de nos sentirmos portugueses ou não”, reflete a estudante e atriz, de 22 anos, nascida em Portugal. “Foi só com alguma mudança de perspetiva, sobre o que pode significar ser português – uma perspetiva que me incluía –, que o 25 de Abril, a história da Revolução e da mudança, em Portugal, começaram a fazer mais sentido e a ser algo que me tocava também", conta a aluna académica de ciências da comunicação, que viveu dos três aos cinco anos, em Cabo Verde.

Como pessoa racializada e bissexual, também Daniel Silva, de 24 anos, confessa que teve de passar pelo mesmo processo de entender como a Revolução se refletia na sua vida. No entanto, e apesar de considerar que o 25 de Abril não lhe conseguiu proporcionar o mesmo nível de liberdade de que usufruem "pessoas brancas" e heterossexuais, admite que lhe proporcionou uma série de liberdades, garantias e direitos a que teve acesso durante toda a vida. “Ter andado sempre na escola pública, ter feito a universidade, estar no mestrado, ter feito Erasmus, ter acesso ao Serviço Nacional de Saúde”, enumera o estudante de mestrado em empreendedorismo e criação de empresas, na Universidade da Beira Interior.

Daniel Silva, 24 anos. Fotografia de cortesia.

Foi só depois de descobrir alguns factos históricos que ligavam intimamente a Revolução, à Guerra Colonial e aos seus antepassados colonizados – factos esses que nunca tinha encontrado nos livros de História que o formaram – que passou a encarar a data de uma outra forma. "O 25 de Abril foi um movimento intercontinental, tendo em vista a acabar com um regime que juntava pessoas desfavorecidas, tanto em Portugal, como nas colónias, numa missão comum." Este enquadramento tornou-se crucial para a forma como hoje atua politicamente. “Acho que é necessário agir e acho que, como pessoa racializada e LGBTI, não posso ficar estanque. Não tenho esse privilégio.” Por isso, para além de estudar e trabalhar, o jovem de Almada dedica-se hoje a uma série de causas, como o movimento antirracista, ou a organização da primeira Marcha LGBTI na Covilhã, onde estuda.

Para Leonor Rosas, a descolonização da sociedade portuguesa é um dos grandes desafios dos 50 anos do 25 de Abril, cujas comemorações arrancaram ontem e terminam apenas no ano de 2026. "Também em parte pelo 25 de Abril ter sido feito por militares que haviam lutado na guerra, não houve uma grande vontade de perceber o que tinha sido a Guerra Colonial, o que Portugal tinha feito. Descolonizou-se e pronto”, entende a ativista, mestranda em antropologia, sobre colonialismo, memória e espaço público, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. “Nunca houve um debate sério sobre como descolonizar a sociedade portuguesa e por isso é que ainda hoje temos um debate muito acesso e um problema muito grande com o racismo em Portugal”, acredita.

Continuar a Revolução de Abril

Esta quinta-feira, 24 de março, Portugal supera por um dia o tempo vivido em ditadura – são já 17 500 dias de democracia. Mas a luta continua. “Não consigo conceber um país, ou uma sociedade, no qual não haja espaço para as pessoas terem ideias diferentes, ou para haver um diálogo democrático sobre isso, sempre dentro dos limites democracia.” Andreia considera que há ideais de Abril incontornáveis, como a liberdade de expressão, mas defende também que é preciso "não cristalizar o 25 de Abril" e pensar nas revoluções que ainda falta fazer. “Acho que o espírito do 25 de Abril é continuar essas revoluções e reinterpretá-las à luz do que são os problemas contemporâneos.”

Para a também ativista climática, liberdade significa poder pensar em ter um presente e um futuro: "Significa ter um planeta. Significa não haver deputados ou forças políticas de extrema-direita que ponham em causa as vidas das pessoas, a sua segurança e a sua presença no espaço público". Por isso, importa hoje, sublinha, pensar no que foi "a ideia de um país para todos e como é que isso se concretiza na atualidade."

Também para Júlia Cunha, designer gráfica e ilustradora, de 26 anos, a efeméride serve para lembrar que esta é uma “luta constante”, a da liberdade: “Não é só liberdade, no sentido de não haver ditadura e haver democracia. Mas também haver liberdade individual, não só coletiva. Liberdade de as pessoas viverem a sua verdade e viveram a vida nos seus termos. Em comunidade, mas consigo próprias. A liberdade de ser quem são na sua totalidade”, entende.

Júlia Cunha, 26 anos. Fotografia de cortesia.

Quando questionada sobre o atual papel dos jovens na manutenção da democracia e liberdades, que sempre conheceram – mas que nem por isso considera que dão como adquiridas – responde: “Uma pessoa que seja mais ativa e mais vocal na defesa dos direitos LGBT, por exemplo, é uma pessoa que está a lutar pela democracia, no sentido em que está a lutar pela liberdade de uma comunidade”. Segundo a jovem, o combate à pobreza, ao racismo ou às desigualdades sociais são exemplos de lutas contemporâneas por liberdade plena, mas também por dignidade e melhores condições de vida para determinadas minorias. “Dentro da comunidade LGBT, as pessoas transgénero têm menos acesso a cuidados de saúde e emprego. As comunidades asiáticas, negras ou a comunidade cigana também têm um acesso diferente a essas oportunidades, a que toda a gente, no fundo, tem direito.” Por isso, garante, "a luta não acabou e a luta nunca vai acabar até as pessoas serem todas livres da mesma forma, o que, provavelmente, não é sequer possível de atingir.”

Embora considere que o foco das novas gerações em determinados assuntos se relaciona intimamente com a democracia conseguida há 48 anos, Júlia gostava de ver mais jovens envolvidos na política e a mobilizarem-se ainda mais por causas coletivas, na busca por direitos para todos, e mesmo estes que não impactem as suas vidas, individualmente. "As pessoas ainda não estão coletivamente – em grande escala – a defender esses problemas, a defender os direitos de muitas pessoas e muitos grupos de pessoas que ainda vêm os seus direitos negados." Para além disso, as ameaças do passado também estão à vista: “Isto não é o fim da História. As coisas podem perder-se. A ameaça da extrema direita na Europa e noutros sítios do mundo é muito real."

Daniel concorda que a Revolução é um “processo humano”, que” não está completo” e que nunca terminará. "Nós vamos decidir, como geração futura, como é o nosso 25 de Abril, o que visionamos como uma sociedade mais justa, mais solidária”, afirma. “As decisões que tomamos, os Orçamentos de Estado, as ações de coletivos, as manifestações, tudo isso é um processo do 25 de Abril”. Nas palavras do jovem, a sua geração prima-se "pela ideia de um 25 de Abril interseccional". Por isso, diz, é preciso continuar o processo, “aprofundando-o nas várias áreas que a nossa sociedade hoje exige." E continua: "Não falamos numa sociedade homogénea. Falamos nas suas heterogeneidades, seja orientação sexual, seja género, seja classe social, seja origem, seja área de residência, seja rural ou urbano, seja uma pessoa com deficiências ou não." Segundo Daniel, quase 50 anos volvidos da Revolução dos Cravos, é hora agora "de perceber as várias diversidades que existem, o ónus que nos permite identificar as lacunas do 25 de Abril”, para combater "desigualdades e as injustiças históricas" perpetuadas no tempo.

Manter a memória viva
Leonor Rosas, 22 anos. Fotografia de cortesia.

Para Leonor Rosas, é fundamental manter a memória do que foi o processo revolucionário, especialmente, da resistência antifascista. “A memória do 25 Abril é muito importante, não só para estar ali, nas páginas do livro de História, mas para ser uma memória viva", refere. "E a ideia de uma memória viva é, não só algo do qual nos lembramos, mas algo que incorpora a nossa ação política", concretiza. "É a importância de lembrar como é que chegamos até aqui."

Como tal, a ativista procura dar uma continuidade às causas de Abril, contribuir para mobilizar as pessoas para a rua, nomeadamente, as gerações mais jovens, para quem muitas vezes a memória do 25 de Abril já se torna mais mais distante.

“Tenho muita dificuldade, por exemplo, em ouvir mulheres a perpetuar um discurso machista e antifeminista, porque penso que nunca teriam uma plataforma ou a possibilidade de falar, se não fossem as feministas que o fizeram por elas", comenta. "Tal como me faz muita impressão ver pessoas mais jovens a dizer «antigamente é que era bom», ou que estes últimos 50 anos foram uma confusão, quando, na verdade, não percebem que a razão pela qual vão à escola, a razão pela qual vão ao hospital e não pagam um balúrdio no fim, a razão pela qual foram vacinadas desde crianças, ou a razão pela qual os pais têm subsídio de desemprego e não vivem na miséria, foi o 25 de Abril e foi essa luta antifascista”, critica. A própria liberdade de expressão, "que, muitas vezes, é dada como adquirida hoje em dia", lembra, "foi ganha, inclusivamente, com a vida de algumas pessoas”.

Texto por Flávia Brito
Ilustração de Marina Mota

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