Tentando arranjar tema adequado à ocasião, entre o bacalhau omnipresente na lusa mesa e a sardinha dos santos populares a escolha está difícil.
Neste ano, ainda sem as sardinhadas e festas de rua (pelo menos em Lisboa), dedicamo-nos então ao bacalhauzinho.
E aproveito alguma irritação pessoal sobre um assunto bacalhoeiro para aqui deixar uma “catilinária” apontada aos promotores do bacalhau fresco, conhecido na gíria como “skrei”.
Tenho de ter algum cuidado para não ferir as suscetibilidades de alguns amigos e amigas que juram pelo bacalhau fresco como eu juraria pelos presuntos e chouriças de porco bísaro.
Não desejo a esses amigos mal nenhum, pelo contrário.
Se o peixe em causa fosse muito abundante só ansiaria que muitos comessem bacalhau fresco e que deixassem o "verdadeiro" para quem gosta. Mais sobraria.
Mas com a espécie quase a entrar no rol das que necessitam de proteção? Tenham paciência.
A Noruega, fonte importante da alimária, tem dado uma ajuda a esta moda do bacalhau fresco. Até já se organizava (antes da pandemia) por esta Lisboa uma "Skrei Fest", evidentemente que acarinhada por alguma nomenklatura urbana e muito “dans le vent”.
Tentei comer duas vezes este dito “Skrei”. Na primeira fui ao engano, já que na carta do restaurante estava "bacalhau" e, que eu saiba, aqui em Portugal quando alguém escreve “bacalhau” será do salgado e seco. E não gostei nada.
Convenci-me a experimentar de novo, noutro local, porque tenho por norma dar sempre e a qualquer coisa uma segunda oportunidade. E não gostei outra vez.
Li depois disso coisas mais ou menos incríveis em “sites” da especialidade, entre elas uma frase do tipo " Era o bacalhau fresco uma coisa muito prática porque não tinha que se demolhar...". Esta estranha criatura escriba era capaz de demolhar cherne ou pescada? Talvez.
As razões da minha pouca inclinação para este novo "produto" são de duas ordens:
- Em primeiro lugar não me sabe bem. Prefiro o peixe fresco da nossa costa. Admito que as preparações do tipo "disfarça aquilo e mete espumas" não ajudam também. Mas na grande prova real do peixe fresco, que é a grelha com sal apenas, ou a cozedura simples em vapor, esta proposta não se sai bem.
- A segunda razão do desgosto é mais estratégica. Se desatam a comer bacalhau fresco, e dado que a espécie está a reproduzir-se com mais dificuldade, onde sobram os peixes para fazer - na demolha e na secagem - o bacalhau a sério?
Confesso que se vou a algum restaurante e vejo isto na carta irrito-me. E se é algum chef ou restaurador conhecido digo-lhe logo ali na cara o que penso.
O problema, como tento adivinhar, é que alguns “chefs” desejosos de subir na escada da apreciação dos seus pares e dos inspetores dos Guias, não admitem ter na sua carta um prato dito de taberna, que é servido com alho picado, cebola e pode levar colorau...
Mas ter um prato de "Skrei"? Só o nome dá uns ares de grito de falcão a subir no céu azul... Poesia pura.
Chamo a isto a rota das três ervilhas e emulsão de caranguejo, com geleia de mirtilos em prato branco grande.
Estou convencido que se aparecesse tal ideia no dia 10 de junho, na Taberna do Malcozinhado, estando presente Luis de Camões, os “perpetrastes” ainda acabavam era a engolir pirolitos no Tejo (ali tão perto).
Pelo menos o rio não devia estar tão poluído como hoje. E, com sorte, quando saíssem trariam alguma faneca no bolso do gibão…
Viva Portugal!
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.