É verão no hemisfério Norte. Calor, férias, praia, viagens, sabores e aromas estivais, esplanadas, museus, música e arraiais, caminhadas urbanas ou natureza, passeios de barco… Cruzeiros. Aeroportos. Autoestradas. Bagagens. Portagens.
Exato: o turismo tem múltiplas faces. Uma delas é risonha e amável, como as imagens que nos apontam destinos turísticos apetecíveis. Outra face, menos exposta, mostra-nos navios de cruzeiro gigantescos prestes a abalroar uma minúscula Veneza, filas intermináveis de turistas à porta dos grandes museus de Roma ou Paris, praias onde não se enxerga um cm2 de areia, tantos são os guarda-sóis, as toalhas e as gentes. E lixo no fim do dia. Muito lixo.
A meio do século passado as deslocações turísticas atingiam os 56 milhões anuais, o que já constituía um número bastante expressivo… Em 2019, o número de turistas que trilhou o planeta chegou aos 1,4 mil milhões1. No mesmo ano, o número de voos aéreos aproximou-se dos 40 milhões, comparativamente com os quase 24 milhões de 2004. Convém notar que os meios de transporte, com as viagens aéreas à cabeça, são responsáveis por 49% da pegada de carbono devida ao turismo.
Esta deslocação febril de todos para toda a parte, que se acentua em determinadas alturas do ano, radica em inúmeras causas mais ou menos profundas. Entre elas, e ainda no nosso hemisfério, contam-se as campanhas publicitárias; o turismo airbnb, de curta duração, jovem e cosmopolita; a queda dos preços dos bilhetes de avião para valores inverosímeis; o estiolar do mercado turístico do Magreb, a seguir à “primavera árabe”; a habitual procura do sol e do clima – embora cada vez menos ameno – de latitudes mais baixas.
Fenómeno global de grande impacto, o turismo é uma das preocupações da Organização das Nações Unidas que lhe dedicou alguns organismos, como a World Tourism Organization e o respetivo Committee on Tourism and Sustainability criado em 2013. Outro comité mundial foi responsável por um Global Code of Ethics for Tourism, aprovado no já longínquo ano de 1999 e de que muito poucos turistas terão ouvido falar. É pena. Para além das recomendações de teor social e económico, tanto a proteção do património cultural e natural como a sustentabilidade ambiental são temas presentes nestes documentos e recomendações dirigidos ao turismo e aos seus atores e agentes.
Como noutras áreas, a pandemia de 2020 reduziu dramaticamente a pegada de carbono desta “indústria”, muito mais do que décadas de atividade das organizações mundiais que dela se ocupam. De novo, os números são eloquentes: entre 2019 e 2020 a mobilidade turística registou uma quebra global de 74%, equivalente a menos mil milhões(!) de deslocações. As economias mais vulneráveis dos destinos turísticos de topo na América do Sul, África, Sudeste asiático, menos preparadas para operações de vacinação em massa, estão, como de costume, a arcar com a maior parte do prejuízo.
No “nosso” hemisfério, o balanço relativo a 2021 vai depender do maior ou menor sucesso das campanhas nacionais de vacinação em curso, com uma certeza apenas: os números ficarão, em qualquer caso, muito aquém dos índices de 2019.
Embora esta pausa devesse também servir para refletir e avaliar sobre as práticas e estratégias habituais da “indústria” turística, há quem anseie pelo regresso à era pré-Covid numa perspetiva de “reconquista” da Terra pelos globetrotters assumidos, ou apenas aspirantes. Esta era a mensagem publicitária quase bélica, apregoada há dias em Lisboa na fachada de uma agência de viagens “global”, em plena avenida Fontes Pereira de Melo.
E se da calamidade que atravessamos resultasse uma redefinição dos padrões do consumo turístico, buscando a qualidade em vez da quantidade, reconhecendo valores tanto nas pessoas como nos monumentos, na fauna, na flora, na geologia dos lugares, procurando em Roma ser romano e não um mero passante alheio ao espírito, à história e às tradições locais?
Porquê reduzir as paisagens naturais a simples cenários e as cidades à dimensão caricatural de parques temáticos? O Planeta, o seu património cultural e natural não suportam, nem merecem, o turismo massificado e predatório anterior à pandemia. Impõe-se uma abordagem criteriosa e sensível a cada destino, quer na forma de deslocação, quer nos comportamentos a assumir em cada um.
Neste século povoado de errantes, entre os que migram por necessidade de sobrevivência e os que se deslocam por necessidade de distração, agentes e governantes ainda se ocupam muito mais empenhadamente da rentabilidade do turismo do que da sua ética.
Oxalá possamos confiar cada vez mais na consciência ambiental de cada viajante quanto à escolha de destinos e estilos de férias e apostar na defesa, divulgação e assimilação de uma ética do turista atenta à autenticidade cultural e aos direitos da natureza e dos outros seres vivos com quem partilhamos o Planeta.
Sejam lá quais forem a nossa ideologia, a nossa religião, a nossa personalidade, as nossas necessidades – porque nenhuma delas obriga à destruição da vida que nos rodeia para melhor vivermos a nossa.
1 Medidos em chegadas internacionais.
Fonte de informação de referência: United Nations World Tourism Organization, www.unwto.org
Outras fontes: ourworldindata.org; statista.com; sustainabletravel.org
Nota do autor: Este ano, a ZERO participou na consulta pública do Plano Turismo +Sustentável 20-23, apresentada pelo Turismo de Portugal. Para mais informações sobre o plano, consultar http://business.turismodeportugal.pt/pt/crescer/sustentabilidade/Paginas/plano-sustentabilidade-turismo-2020-2023.aspx
-Sobre Maria Helena Barreiros-
Maria Helena Barreiros, historiadora de arte e mestre em Conservação do Património. Integrou o Pelouro do Urbanismo da CM Lisboa e exerceu funções de coordenação na ex-Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Recentemente, assumiu funções técnicas no Pelouro do Ambiente da CML. Foi docente de história da arquitetura na Universidade Autónoma de Lisboa, entre outras. Autora de diversos trabalhos publicados no âmbito da questão patrimonial e da história da arquitetura e do urbanismo, prepara tese de doutoramento sobre a habitação pré-moderna em Portugal. Fez parte da direção da APHA - Associação Portuguesa de Historiadores da Arte, é membro da EAHN - European Architectural History Network e da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável.