A urgência da resolução dos problemas mais graves da habitação existentes pode, em alguns casos, toldar a visão prospectiva e estratégica que é fundamental para uma acção baseada na avaliação sistemática das necessidades de habitação presentes e futuras.
O facto de a habitação ser tipicamente o maior investimento das famílias e de estar a tornar-se, cada vez mais, um investimento empresarial, explica que o tema da habitação tenha dominado muitos dos debates das eleições autárquicas de 2021. Sobretudo nos municípios com mercados de habitação mais tensos, as persistentes desigualdades no acesso à habitação e nas condições habitacionais, ganharam centralidade.
Nos debates políticos, e também académicos, abordam-se as insuficiências da habitação social (em volume e em estado de conservação), o aumento generalizado dos preços da habitação e apontam-se os culpados (os do costume e os novos). Criticam-se os decisores políticos por ainda não terem resolvido (ou nalguns casos tentado resolver) o que se tornou um grave problema socioeconómico com importantes efeitos demográficos e na justiça intergeracional. Acusam-se os actores privados por usarem a habitação como activos imobiliários de elevada rentabilidade.
No entanto, o problema da habitação em Portugal precisa de ser abordado de uma forma integrada e sistemática. É preciso que se considere, além das necessidades presentes, estimativas sobre as necessidades de habitação futuras, como tem sido feito noutros países europeus, onde as estimativas de habitação têm um papel de relevo no planeamento de habitação pública e nos processos de licenciamento de habitação privada.
As necessidades de habitação resultam da conjugação de diversos determinantes de natureza demográfica, geográfica, social, económica e política. Os efeitos de alguns destes determinantes nas necessidades de habitação são mais fáceis de estimar porque são mais constantes no tempo (os demográficos, por exemplo), outros mais difíceis por terem associada uma considerável imprevisibilidade (o caso dos determinantes económicos, por exemplo).
Foquemo-nos no papel da demografia nas estimativas das necessidades de habitação futuras. Excluindo situações de excepção, as tendências demográficas são projectáveis no curto e no médio-prazo. Um exemplo simplificado para efeitos de demonstração: as crianças que nascem hoje procurarão casa dentro de 20-30 anos. Por mais óbvia que pareça esta relação entre população e habitação, ela tem estado frequentemente ausente nos debates públicos da actualidade. Interessa, pois, reflectir sobre ela.
Entre população e habitação existe uma relação bi-direccional e dinâmica, no tempo e no território. Por um lado, o volume, a estrutura etária e os padrões de (re)composição familiar determinam a procura de habitação à escala local. Por exemplo, quanto maior a população num município, mantendo-se os padrões de (re)composição familiar, maior a procura. Uma população residente com uma estrutura etária jovem permite-nos antecipar um aumento da procura de habitação nos anos seguintes, por efeito da emancipação residencial e eventual formação familiar. Pelo contrário, uma população envelhecida deixa-nos antever um aumento da oferta de habitação, por força da mortalidade e, logo, uma maior rotatividade da ocupação da habitação. Os padrões de (re)composição familiar também influem igualmente na procura de habitação. A redução da dimensão média dos agregados, por exemplo, pode fazer aumentar a procura de habitação, mesmo verificando-se um decréscimo na população (vejam-se os resultados preliminares dos Censos 2021).
Por outro lado, a distribuição da habitação no território e os padrões de mobilidade condicionam a distribuição da população. Por exemplo, nos municípios que constituem as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, a oferta de habitação varia bastante em termos de volume, de preços e de características. A disponibilidade e os custos da habitação impõem restrições às opções habitacionais das famílias, o que, por sua vez, tem efeitos nas oportunidades dos indivíduos. As desigualdades criadas pela distribuição da população em função da habitação a que as famílias conseguem aceder, podem ser minoradas ou agravadas consoante a mobilidade. A existência de redes de transportes públicos que assegurem os movimentos pendulares em conforto, segurança, a custos razoáveis e em tempo útil são neste aspecto fundamentais.
Estes exemplos mostram bem a importância de, a nível municipal e em alguns casos a nível metropolitano, começarmos (e urgentemente) a estimar as necessidades de habitação futuras, e a planear de acordo com essas evidências. A passagem de políticas e práticas reactivas para práticas activas, permitirá melhorar a qualidade das respostas públicas e, por conseguinte, as condições de vida da população. Este ano de 2021 junta dois elementos de oportunidade cruciais que devem ser considerados em tempos de mudança nos estudos da habitação. Em primeiro lugar, a realização dos Censos 2021 oferece um retrato actual da população e da habitação que poderá servir de base às estimativas. Em segundo lugar, o início do Plano de Recuperação e Resiliência, ao contemplar financiamento para dar resposta às necessidades habitacionais imediatas, através de modelos centrados na construção e reabilitação de habitação social e acessível, deverá também desafiar o conhecimento científico necessário para o desenho de políticas. Precisamos então de começar a fazer as contas.
-Sobre Alda Azevedo-
Alda Botelho Azevedo, doutorada em Demografia pela Universitat Autònoma de Barcelona (2016), é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais e professora auxiliar convidada no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, ambos da Universidade de Lisboa. As suas publicações e investigação centram-se no estudo da demografia da habitação e do envelhecimento.