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“Karen”. Mais do que uma história, o retrato de uma relação profunda, entre a dependência e o poder

O CineFiesta – Mostra de Cinema Espanhol apresentou, nos últimos dias de novembro, no Cinema…

Texto de Flavia Brito

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O CineFiesta – Mostra de Cinema Espanhol apresentou, nos últimos dias de novembro, no Cinema São Jorge, nove filmes produzidos em Espanha. "Karen", de María Pérez Sanz, foi um dos destaques entre as várias longas-metragens que estrearam no país vizinho este ano.

Nesta produção, a cantora e compositora Christina Rosenvinge é Karen Blixen, mulher livre e aventureira, autora da incontornável obra África Minha (Out of Africa, na versão original). Conhecida pelo pseudónimo Isak Dinesen, Blixen viveu no Quénia entre 1916 e 1931. Entre um casamento problemático e o relacionamento com um amante, assumiu o negócio de café que construiu com apoio da família, mas que, ao fim de alguns anos, não daria certo. Com a ruína económica, regressou à Dinamarca, sua terra natal, onde escreveu o livro que a levaria ao estrelato, duas décadas depois da sua morte, em 1962, com uma adaptação ao cinema de Sydney Pollack.

Ao longo de 65 minutos, María Pérez Sanz construiu um retrato dos últimos tempos de Blixen, no Quénia, através de vinhetas de luz cristalina, acompanhadas pela música da própria Rosenvinge. E, em especial, da particular relação entre Karen e o seu criado somali, Farah Aden (interpretado por Alito Rodgers): "uma amizade à frente do seu tempo, na qual as diferenças que parecem insuperáveis (uma mulher europeia numa posição de poder face a um homem africano) se diluem diante de um entendimento ancestral", lê-se na sinopse.

O Gerador conversou com a realizadora espanhola María Pérez San e a atriz Christina Rosenvinge.

O CineFiesta – Mostra de Cinema Espanhol esteve no Cinema São Jorge, de 25 a 30 de novembro. ©Joana Linda
Gerador (G.) – Como surgiu a ideia para este filme?

María Pérez Sanz (M.P.S.) – O filme é rodado na Estremadura, perto de Cáceres, que é de onde venho. Sempre tive a fantasia de filmar uma história de colonos em África, naquela paisagem que me faz lembrar África – de uma maneira romântica, porque não conheço. Mas a paisagem, os pássaros, o pôr do sol… Tinha feito curtas-metragens em que comecei a testar, a colocar a figura do colono nessa paisagem. Comecei a testar para ver o que acontecia se introduzisse personagens que não correspondessem àquela paisagem e gostei do resultado.

O meu pai disse-me que tinha de ler o África Minha. Eu não tinha visto o filme de Sydney Pollack. Nunca me tinha interessado pelo filme, nem pelo livro de [Isak Dinesen]. Mas comecei a lê-lo e foi-me fascinando. Pensei que, como era uma personagem universal, mítica, que o grande público conhecia, era uma sorte escolher essa personagem para não ter de explicar muitas coisas, para poder simplesmente fazer um filme do momento. E foi assim que tudo começou.

G. – Porquê reduzir o guião a estas três personagens – sendo que são maioritariamente duas, Karen e Farah.

M.P.S. – Todo o filme é como uma espécie de exercício de destilação, tanto do romance, quanto do filme [de Pollack], de levá-lo aos mínimos elementos. No início, havia mais personagens no guião, mas, aos poucos, foram caindo e pareceu-me que a relação mais interessante era a de Karen e Farah. Achei interessante eliminar os personagens masculinos do filme – o amante, o marido – e realçar aquela ligação que no filme é muito pequeno, mas que, a mim, me interessava muito. Essa relação é uma relação da qual ela falava muito nas suas cartas e em Sombras no Capim – o outro livro que escreveu sobre a África, depois do África Minha. Ela fala muito sobre Farah e da sua relação, além da de servo-amo. [Fala sobre] a sua relação pessoal, as conversas e espiritualidade.

G. – Como descreves essa relação? E como é que essa relação, marcada pelo colonialismo, é abordada no filme?

M.P.S. – No outro dia voltei a ver o filme. Há já muito tempo que não o via, e percebi que a personagem da Karen é muito discutível. É uma personagem um pouco narcisista.

Não queria que o filme fosse uma tese anticolonial que fosse expor as minhas ideias. Queria que fosse um exercício fílmico, de representação cinematográfica. Mas acho que o filme está cheio de detalhes que nos permitem tirar as nossas próprias conclusões como espectadores. Também acho que a personagem é bastante humana, é cheia de contradições. Em alguns momentos odiamo-la, é detestável, noutros momentos sentimos pena dela e também a compreendemos.

Em alguns momentos, também, há algo de mágico nesta relação entre os dois, que é capaz de transcender tudo o resto. São duas pessoas que falam sobre Deus e o destino e que, de alguma forma, se conectam. É verdade que, apesar de todas as diferenças de classe, de raça, nessa relação, também havia uma conexão profunda. Ou assim o dizia Karen, no que escreveu, porque não conhecemos a versão de Farah. Não há nada que possamos encontrar, para saber realmente o que Farah pensava dela. Mas os escritos que ela deixa falam dessa ligação profunda com a sua fé no destino, com uma ideia muito forte de destino, cada um com a sua religiosidade.

Também são seres como de outra época, não são seres contemporâneos. Os dois vivem como no mundo das mil e uma noites, num mundo de palácios, castelos, sultões, o que chocava com a realidade que chegava até eles, dos anos vinte, trinta, das armas, da guerra, tudo. E eles ali, numa espécie de castelo estranho, vivendo as suas vidas diárias. Acho que essa relação tem tantos níveis, tantas camadas, tantas contradições, coisas tão inesperadas, que valia a pena focar-me nela.

G. – Porquê focar nos últimos anos de Karen no Quénia?

M.P.S. – O tempo do filme é muito difuso, mas, sim, é sobre a sua queda. Há uma decadência. Sempre quis que o filme marcasse um curto espaço de tempo, que não procurasse contar muito…

G. – Que não fosse biográfico...

M.P.S. – Sim. Os últimos tempos foram os que me pareceram mais interessantes, porque foram os anos em que ela cai naquela ruína. Divorciada, doente de sífilis, arruinada, e daí vai ser a escritora. É esse o último momento no Quénia, onde morre a colona e nasce a escritora. E é, por isso, que o filme tem esse final, que conduz ao presente, ao mito e ao museu. Essa ideia foi, até certo ponto, a força do filme. Como era necessário que acontecesse algo na sua vida, algo trágico, para a escritora que ela já trazia dentro passasse a escrever, a publicar e se tornasse uma das escritoras mais importantes do século XX.

No centro, Christina Rosenvinge, e, à direita, María Pérez Sanz, na sessão de Q&A, no São Jorge. ©Joana Linda
G. – Christina, como foi interpretar a Karen?

Christina Rosenvinge (C.R.) – Já tinha feito alguns filmes nos anos 90, e não tinha voltado a representar, então foi um desafio estar à frente das câmaras a interpretar [a Karen]. Mas a María estava tão certa de que só eu podia fazê-lo, que foi muito difícil dizer-lhe que não. Para mim, foi muito divertido. Estudei representação, mas não apliquei nada disso. Na verdade, o que fiz foi recriar os pontos em comum que tenho com ela, que são o facto de ser dinamarquesa, de ser de uma família privilegiada, de ser também de uma família de imigrantes – porque a minha família também se foi movendo – e também uma mulher com ambições artísticas. Então tinha muito em comum com ela, em que me poderia recriar.

G. – Como descreves a Karen?

C.R. – É verdade que ela é uma pessoa cheia de contradições e com uma nostalgia do do passado. Ela viveu no século XX, mas tinha uma nostalgia do século XIX. Era uma raridade entre os colonos britânicos, que eram uma comunidade com algumas características. Eram muito libertinos. No entanto, Karen não se integrou nesse grupo e também fez a sua pequena experiência de criar uma comunidade, mas com os seus próprios trabalhadores. Nos seus diários, ela fala muito sobre o seu povo, faz uma espécie de estudo, tenta entendê-los, quem são, porque são assim, tenta ajudar e tenta brincar aos deuses, sabes? Ser uma espécie de salvadora. Embora muitas das coisas que ela fez sejam altamente discutíveis – a partir deste nosso mundo –, na época, construiu escolas, davam boas condições aos seus trabalhadores, pagava-lhes bem e tudo isso era muito malvisto pelos outros colonos, porque estava a dar um exemplo muito negativo.

Por outro lado, o facto de o seu livro começar com “Eu tinha uma fazenda em África”. A verdade é que ela podia ter uma fazenda porque os nativos não tinham direito a comprar as terras. Mesmo que quisessem, não poderiam comprar as terras que pertenciam ao Império Britânico. Então, ela beneficiou de políticas que eram profundamente injustas. Nos dias de hoje, estamos a experienciar as consequências desse desequilíbrio.

G. – Sentiste que, em algum momento, a Karen questiona o colonialismo?

C.R. – Como disse a María, não era possível analisar profundamente esta questão, mas queríamos que houvesse alguns exemplos, através dos comentários, da conversa entre Farah e ela, em que se tornasse claro como foi a luta de poder. Ela é a dona e está a usar esse privilégio, mas, na realidade, a sua vida e o seu futuro dependem dele. A sua sobrevivência depende dele. E esta é uma relação muito complicada, com muitas nuances.

G. – María, o filme relaciona-se de alguma forma com o filme de Sydney Pollack?

M.P.S. – Bem, como uma espécie de reverso da moeda. Se víssemos algo no guião que pudesse lembrar [o “África Minha”], tirávamos essa parte, procurando sempre criar uma certa distância.

Acho que bebemos de fontes diferentes e os objetivos são diferentes. Porque o romantismo e o épico são o centro do filme [de Sydney Pollack] e, para nós, seria como um épico da vida doméstica, ou mesmo um não-épico. É mais um retrato do que uma história. Não é tanto contar a história, que não me interessou tanto quanto retratar algumas personagens num lugar e num momento muito específico das suas vidas. Então, relacionamo-nos porque estamos em dimensões diferentes.

G. – E a ideia de partir de uma personagem cuja história as pessoas já conhecem…

M.P.S. – E o final do filme, que termina no verdadeiro museu Karen Blixen, em Nairobi. Esse museu existe por causa do filme do Pollack, porque foi rodado lá, ou seja, de alguma forma, o filme do Pollack também está dentro do nosso, inevitavelmente. Porque lhe deu a fama. Ela tinha prestígio, mas aquele filme deu-lhe fama e, sem aquele filme, não haveria aquele museu que nos permite encerrar a nossa história.

G. – A Karen foi, de alguma forma, inspiradora para vocês?

M.P.S. – Para mim, sim. Encontrei muitas ligações com ela, como a sua não-maternidade, com a sua decisão de não ter filhos, com os seus fracassos e, depois, com o seu nascimento tardio como artista. Claro que também gosto de algumas das suas histórias e dos seus escritos. Parece-me que ela é uma pessoa única, com uma posição muito clara. Não se deixa influenciar pelo seu tempo, nem pelos outros. É muito genuína e isso parece-me muito valioso. Eu aspiro também a tentar seguir o meu próprio instinto. Reparem que nos anos 20 estava tudo a acontecer. Toda a modernidade, as vanguardas. E ela, nos seus castelos, nos seus palácios, com as suas coisas, na casa da mãe, com o seu círculo pequeno. Força, carácter, feminismo. Há muitas coisas muito inspiradoras na Karen. Outras mais questionáveis, mas revejo-me nela e também revejo a Christina.

C.R. – Ela nunca fala sobre feminismo. No entanto, ela tem, desde jovem, a determinação de que será a dona da sua vida. Por exemplo, sobre irem para África, embora vá com o marido, na verdade, é um sonho dela, e ela consegue o dinheiro para fazê-lo. Ela anseia ter a aventura e o épico que o pai teve na América, o irmão quando foi para a Primeira Guerra Mundial. Ela não quer estar em casa a cuidar da família. Isso não é suficiente para ela. Quer conquistar o mundo, de alguma forma, e, no final, consegue. Nesse sentido, ela é uma figura feminista.

M.P.S. – Ela é uma mulher encarregada de tudo, de uma empresa de café, num mundo com muitos muçulmanos, entre eles o Farah. Isso é realmente atípico. E não disse “hoje faço a minha mala e vou para casa, porque o meu marido é um c*****.” “Não, filho, eu fico aqui e o que vim fazer faço sem ele, faço sozinha”. E aguentou até que se arruinou. Mas se não se tivesse arruinado, ela teria ficado. Mas aquele café não cresceu ali. Porque não cresceu. Porque a terra era muito alta. Foi uma empresa que nasceu para morrer. Isso faz-me também identificar, com os projetos que não são comerciais, não dão dinheiro, não são sensatos, loucuras.

O Gerador é parceiro do CineFiesta – Mostra de Cinema Espanhol
Texto de Flávia Brito
Fotografias de ©Joana Linda

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