Fran Lebowitz, escritora nova iorquina, diz com graça: quando vê alguém a ler nos transportes públicos fica tão entusiasmada a ponto de não se importar com o género ou com os pergaminhos literários do autor – o que interessa é que aquela pessoa lê e com isso acrescenta sentido à sua vida.
Na verdade, o contexto histórico é desfavorável à leitura. O estremecimento do isolamento em rede corresponde a uma sociedade de indivíduos furiosos e ensimesmados que se julgam unidos quando vivem fora do mundo, essa realidade paralela e distópica do espelho fatigado, qual vórtice onde o ruído se transforma, no final do dia, num silêncio profundo – o nosso eco. A necropolítica (a destruição do outro como dispositivo de afirmação e construção da hegemonia) só conhece a banalização do ódio e a naturalização excrementícia da guerra quotidiana de todos contra todos. Ao invés, os processos de plataformização, gamificação e datificação da economia e das vidas assumem a forma de uma vigilância permanente (um colonialismo digital) sobre as mentes e os corpos sitiados, vigiados e explorados pelos algoritmos de extração em massa de “excedente comportamental”, vendido a peso de oiro aos mercenários do negócio e da política (Shoshana Zuboff).
A “colonização do mundo da vida” (Habermas) pelos algoritmos que nos dizem o que fazer, o que pensar e do que gostar, pressupõe o desabamento do agir comunicacional (a interação que flui pela linguagem, unindo exterior e interior) e a impossibilidade de construção de argumentos através da conversa. O declínio da sociabilidade (e a agressividade que daí advém) alimenta-se em muito do declínio da leitura. A que resiste torna-se fragmentada e cada vez mais utilitária, perdida nos nós e nos nexos, distraída no hipermédia e na hiperleitura da “navegação flutuante” (os links que levam a outros links que não levam a lado nenhum), beco sem saída, rizoma enervante que destrói a possibilidade da integração num todo significativo. Esse modo de ler (a leitura episódica e intermitente, a leitura fragmentada, utilitária e rápida) é o correlato da vida fragmentada, em pedaços, e da sociedade fragmentada, de indivíduos sós, cheios de medo e de fúria.
Mas ninguém nos conhece melhor do que os nossos livros. Ler é um ofício de tempo lento e de combustão difícil que nos liga aos outros, ao alimentar o pensamento com as narrativas e o conhecimento acumulado, partilhado e por isso coletivo. Ler é afirmar o desejo de demorar nas praias da imaginação; é não permitir que sejam os algoritmos (ou qualquer outra forma de poder) a sonhar os nossos próprios sonhos.
É da maior importância, então, construir um contrato social através de pactos descentralizados de leitura: livros como pontes entre os bairros, os locais de trabalho, as associações e as bibliotecas, que devem ser porosas com o território e autênticos centros culturais onde a leitura por prazer se pode comunicar aos outros com café, bolinhos e sociabilidade chã. Talvez através da multiplicação dessas comunidades interpretativas que são os clubes de leitura seja possível redescobrir a importância das mediações e das sociabilidades, descolonizar a imaginação e produzir novas narrativas pós cartesianas, em que emoção e razão se alimentam do mesmo banquete.
É esta uma utopia viável? Quem quer começar e criar no seu canto um clube de leitura e conversa? Vamos unir esses clubes como pontos reflexivos e emotivos de uma nova prática? Vamos ser pessoas que não desistem de sonhar os seus próprios sonhos?
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.