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Opinião de Paula Cardoso

A minha beleza exótica-tóxica

Prometeram-me beleza tinha eu uns ingénuos 8 anos. Uma prima minha, que nunca mais vi,…

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Prometeram-me beleza tinha eu uns ingénuos 8 anos. Uma prima minha, que nunca mais vi, e de quem nunca mais tive notícias, olhou para mim e profetizou: “Esta miúda quando crescer vai ser bem bonita”.

Desconfiada, porém animada com aquela possibilidade, sei que quis acreditar em cada palavra. Lembro-me de, nesse dia, um pouco mais tarde, me ter demorado em frente ao espelho, como quem busca traços de salvação estética.

Que raio de milagre iria acontecer para me libertar do reino das invisíveis – e, portanto, das feias – e me instalar no reino das vistosas e, por inerência, “bem bonitas”?

Imaginei que a minha metamorfose pudesse estar ligada a um velho ritual capilar de passagem para a adolescência: a desfrisagem.

A associação parecia-me óbvia, porque a beleza que aprendi a reconhecer, a partir de concursos de misses, anúncios de televisão, e páginas de revistas, era exclusivamente branca, mas desfilava algo que estava ao meu alcance: cabelos compridos e lisos.

Reforcei a crença na desfrisagem como poção mágica e todo-poderosa, quando a Naomi Campbell despontou para o pódio da beleza mundial com uma imagem capilar impecavelmente alisada.

Na altura tinha 12 anos, e fantasiava com uma carreira no mundo da moda, contagiada pelo sucesso da supermodel negra.

Foi graças à Naomi Campbell que comprovei, pela primeira vez na vida, que beleza e negritude não são mutuamente exclusivas.

Mas, apesar da tomada de consciência, ainda estava muito longe de me sentir “bem bonita”, porque na realidade minha de todos os dias os únicos padrões estéticos continuavam a ser brancos.

Por isso, nas raríssimas ocasiões em que me apontaram beleza, ela veio em modo condicional.

Como no meu segundo ano de faculdade, altura em que uma amiga me deu este recado: “A minha mãe disse que és uma mulata muito bonita”.

Era suposto ser um elogio. Para a mãe que o disse, e para a minha amiga que o partilhou. Mas a mim sempre me causou desconforto essa necessidade de fabricar fronteiras para demarcar humanidades.

Como se houvesse um mundo de construções sociais positivas que se aplicam apenas a um certo tipo de pessoas – brancas –, e outro de construções negativas feito à medida da exclusão de todas aquelas que estão nos seus antípodas: as negras. Por isso quem foge da guerra na Ucrânia é automaticamente acolhido como refugiado, mas quem luta para escapar aos conflitos em África é prontamente repelido como “imigrante ilegal”.

Foi também sob esses dois pesos e duas medidas que a beleza se globalizou como uma característica branca, pontualmente “emprestada” a pessoas de outras pertenças étnico-raciais.

Só que, já se sabe, com os empréstimos vêm os juros, e com eles a taxa de esforço cobrada pela beleza de pessoas não-brancas torna-se insuportável. Por isso, ao mínimo desencontro com o referencial branco, essa beleza acaba penhorada.

Elogio envenenado

Aconteceu com a S. há uns largos anos: descobriu que, aos olhos do então namorado, homem branco, perdeu a beleza ao trocar as extensões lisas pelo seu afro 4C.

Apesar de a relação não ter terminado logo após a mudança de visual, S. conta que a pressão para voltar ao look anterior se tornou insustentável, profundamente influenciada pelos insistentes comentários de reprovação dos amigos.

“Mas quem é que disse que para ser bonita tenho de usar o cabelo liso? Escolhi e escolho viver segundo os meus próprios padrões de beleza, segundo as minhas opções, e não de acordo com uma vontade cega de pertencer, até ao ponto de me anular”.

A partilha chega até mim durante uma conversa sobre microagressões racistas, na qual se alerta para o facto de muitos desses ataques surgirem fantasiados de elogio. Como aquele que a mãe da minha amiga me fez questão de enviar.

Ou aquele que, há dias, me interrompeu o passo na rua, quando um tipo me parou para ‘elogiar’ a minha “beleza exótica”. Que é como quem diz, explica o dicionário Priberam, uma beleza “estrangeira; importada; extravagante; esquisita”, ou originária de “país ou de clima diferente daquele em que vive ou em que se usa”.

Quer dizer que posso ser bonita, sim, mas… há sempre um mas.

“A sério, Paula? Estás-te mesmo a queixar porque alguém te ‘elogia’ a beleza?”, ouço questionar.

Na realidade, não. Não é isso que estou a fazer. Aliás, agradeci o elogio sem mais conversas, porque sei que o plano de onde a pessoa me observa – e de onde a sociedade me observa – está profundamente distorcido por uma infinidade de construções sociais enviesadas.

Porque se a beleza foi construída à imagem de pessoas brancas, sempre que se observe em pessoas negras e de outras minorias étnico-raciais tem de ser outra coisa. No meu caso dizem-me que é exótica, e insistem em ignorar que se trata de uma classificação tóxica. Exótica-tóxica.

-Sobre a Paula Cardoso-

Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.

Texto de Paula Cardoso
Fotografia de Aline Macedo
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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