Ele, Andreas Kragler (que nome já tão de raiva, de range-dentes): pele cheia de terra, encardida, irreconhecível, outro diferente do que era antes, vestido de azul forte, calças e casaco comprido enlameados e em buracos. Chega chamando por ela, a garganta sufocando, o nome da amada todos estes anos dito para dentro repetido, agora em grito que não sai, enchendo a cena toda. Encosta-se à mesa da sala dos outros e tira as suas botas, uma de cada vez. De dentro delas sai um deserto de areia, escorrendo por tudo o que as palavras não podem explicar.
Ela, Anna Balicke (apelido de balística e terror): muito loura, vestida de cor-de-rosa infantilizada, entre pais que muito mandam e um noivo inventado à força, colocando já as garras de fora para a ascender à burguesia-branca. Ela nervosa, saudosa, complexa, do tamanho da casa que lhe coube.
Brecht (brré-xe-te - ensinou-me a Vera San Payo de Lemos a dizer) escreve Tambores na Noite genialmente, muito novo, registando mais um dos seus actos desafiantes do sistema. Na peça, Kragler é o regressado de guerra, tão esperado pela sua noiva, e que volta de África tarde demais, ou digamos, no preciso momento errado. A comicidade da maior tragédia. O desencontro máximo - há lá coisa mais triste! Menos meia-hora e tudo seria outra história a ser contada.
Fiz a Anna muito novinha eu também, em paixão irremediável com o Teatro Nacional São João - a casa, as pessoas, a escola que era para mim diariamente. E a felicidade que se sentia ao ir ensaiar. Éramos felizes, verdadeiramente.
O autor, ainda além de nós, conseguia erguer-se ainda da sua cova funda e falar com os seus intérpretes através da sua escrita, de folha em folha impressa, na sua poesia teatral, de forma tão inovadora, tão sinuosa também, tão directa, que o corpo começava a aprender outra forma desconhecida de estar em cena. O movimento e a voz servindo um jogo disciplinado de pequenas circunstâncias contínuas, destruindo a personagem e pedindo mais de nós do que isso - agora é este momento e agora mesmo cai um garfo ao chão e tudo tem de mudar. Os gestos eram para mim tão essenciais como o som das palavras, além dos seus significados. E a respiração mudava, a reverberação, o ritmo da sala.
Fui mais tarde “acusada”, depois de termos estreado, de me faltar emoção. A verdade é que não poderia construir um caminho naturalista nestes Tambores. Emoção é coisa fácil, coisa para ser vista por quem vai ao teatro distraír-se do mundo. Ora, Brecht não nasceu para distrair mas para interromper tudo e alertar-nos: “Não se ponham com esse olhar tão romântico”. Isto que fazemos aqui não é para esquecer, não é para mergulhar, nem para adormecer, no escurinho da plateia e nada fazer perante as atrocidades de que se é testemunha. Brecht quer que olhemos de retina para retina. Caíam, por isso, grandes telões do céu, no nosso espectáculo, e retratos e imensas luas de sangue - quem sabe não me cai mais alguma coisa em cima, se eu não estiver muito atento - pensa a plateia.
Anna, no momento do seu brinde ao avanço da vida, dá de caras (literalmente) com o seu soldado, que pouco é já o homem que era. Tinha passado todo o dia agoniada, vomitando e em estado de pressentimento (sim, também está grávida de outro homem). Recusa tudo veementemente, depois do choque do encontro, cega que quer ser àquela cara disfigurada. Passará o resto da peça procurando Kragler, em busca de um futuro qualquer, imprevisível. “Qual o tamanho do mundo e onde estará ele?” Pego na peça, releio as minhas notas à margem, e encontro o Manual de Leitura da peça, editado pelo TNSJ em 2009, que tem na contra-capa, com tradução de João Barrento, o seguinte poema de Brecht:
“Também o céu desaba quando há
Estrelas a cair sobre a Terra,
Arrasando-a, e a todos nós dela.
Pode ser amanhã já.”
Penso nas guerras todas do mundo que nunca nos irão largar. Nos Kraglers, nas Annas, nas luas vermelhas, no som estridente no peito, estremecendo. No amor, apesar de tudo. A única verdadeira revolução.
Lisboa - São Tomé e Príncipe
Um Abril desmoronado
-Sobre Sara Carinhas-
Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres Assim, Madre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.