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A experiência no meio do Atlântico: festival Tremor

No meio do Atlântico estão nove pedaços de verde, tranquilidade e de uma amabilidade singular…

Texto de Redação

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No meio do Atlântico estão nove pedaços de verde, tranquilidade e de uma amabilidade singular e distinta. Os Açores. Há nove anos que estas gentes recebem, em suas casas, na sua natureza, nas suas salas de espetáculo e pelas suas ruas, o festival Tremor, que se torna, além de um festival, uma experiência. É a maior ilha dos Açores, a ilha de São Miguel, que tem vindo a abraçar esta iniciativa. De sorriso nos lábios e de sotaque carregado, cuidam dos festivaleiros e dos artistas como se fossem família. Um festival que surge para combater uma problemática identificada por um grupo de amigos: a desertificação que se observava, há nove anos, na cidade de Ponta Delgada, em S. Miguel.

Durante um dia inteiro, o Tremor pretendia, não só fazer tremer o coração da ilha, mas igualmente dar a conhecer Ponta Delgada, desde as casas de espetáculo, ao centro histórico e a vista para o mar, ou até passando por atuações dentro de lojas de roupa e a integração do festival dentro de uma igreja, alcançando, assim, a hipótese de “ter um festival que conseguisse passar por todas as artérias da cidade e que fizesse as pessoas descobrirem e explorarem Ponta Delgada”, refere Luís Banrezes, membro da organização do festival. Caracteriza-se, então, por ser um festival que deseja criar um mapa de experiências musicais que desafiem os espectadores a novas leituras sobre o território açoriano e a sua respetiva identidade, demarcando-se pela diferença e exploração desta mesma diferença, quer seja relativa à comunidade, cidadãos, culturas e até arquipélago, uma vez que acaba por juntar diferentes personalidades e nacionalidades, sendo que, ao longo do tempo, o festival captou já um público que viaja todos os anos para conseguir assistir e viver o Tremor.

Todavia, não só de música vive o Tremor, passando também pela partilha de experiências com artistas e público. Banrezes defende ainda que “não se trata propriamente de música, apesar de ser música, trata-se sobretudo da experiência das pessoas virem até cá de viagem, de se juntarem com a população local, da própria população local também fazer parte dos projetos”, resultando numa fusão de ideias compenetrada na natureza azul e verde, com ADN micaelense, e com um rasgo de mistério. A programação do festival e as iniciativas associadas apresentam-se de forma a conseguir ajudar a elevar a região autónoma dos Açores, tornando-se, assim, um dos maiores desafios na hora de preparação do Tremor: corresponder às expetativas, tendo em conta os problemas existentes na periferia, e levar mais longe os Açores e os açorianos.

Tremor na Estufa, Parque Terra Nostra | ©Vera Marmelo

Não se tratando de um festival massificado, o Tremor não pretende receber nomes já comercializados e bastante recorrentes no mundo da música. Escolhe albergar artistas e bandas emergentes, que ainda não tenham tido hipótese de se darem a conhecer. Luís revela que, quando chega a hora de escolha dos artistas, dá-se uma fusão entre os projetos, e os espaços que foram já desenhados para aquele ano de festival, dizendo mesmo que “há um role de artistas que nós sabemos que queremos trazer cá, mas, às vezes, não fazem sentido porque não se enquadram nos espaços escolhidos, ou vice-versa. Temos à disposição um espaço incrível e, automaticamente, visualizamos aquele artista naquele local”. O membro da organização acrescenta ainda que, “às vezes, arriscamos e, se não correr bem, não faz mal, com a noção constante de que é possível fazer e acontecer, sem medos, porque o Tremor é também isso. É um festival sem medo e não há propriamente uma fórmula, há sim, sobretudo, a ideia de se organizar um cartaz eclético, com bandas provenientes de todo o lado e, acima de tudo, emergentes, capazes de abrir novas portas e novos mundos às pessoas que estão presentes no festival”. No que concerne à escolha dos espaços, a linha de raciocínio da organização toma os mesmos moldes, com a certeza de que de ano para ano os spots de atuação e performance são sempre diferentes e primam pela componente fora do comum, dando espaço para o insólito. Torna-se um “jogo entre perceber que artista se adequa ao espaço ou ao contrário, e é este jogo que, do ponto de vista do programador, é o mais interessante e que faz sentido para nós”, explica Banrezes.

Se há nove anos se pensou em um dia inteiro de Tremor, em 2022, contam-se com cinco dias repletos de atividades de manhã à noite, de uma ponta à outra da ilha de São Miguel, passando por concertos de doze horas de uma orquestra, fruto de uma open call feita pela organização. Para além da performance, conta ainda com as cozinhas comunitárias, onde a comunidade de Rabo de Peixe, uma vila açoriana na cidade da Ribeira Grande, abre as portas das suas casas para os festivaleiros e artistas comerem. Refletindo sobre esta última iniciativa, a organização considera ser “supergenuíno e honesto, do ponto de vista de quem nos visita e vem cá e consegue ter essa experiência”. Existem ainda os passeios de bicicleta com colunas e música a bombar pela marina, concertos mistério, com localização e artistas-surpresa, cruzando todas estas atividades experimentais com a música em que diversidade e atração são as palavras de ordem. Este conjunto de atividades, de intervenientes, entidades, apoios, participantes, caracterizam o Tremor. Planeia-se, em simultâneo, associar uma coisa bela, que são os Açores, ao conjunto de bandas novas e experiências diferentes.

Cozinha Comunitária em Rabo de Peixe | ©Vera Marmelo

No dia 4 de abril, a experiência começou com uma conversa informal, as Incógnita Talks. Hanne Hukkelberg, uma das artistas do festival, norueguesa e imensamente inspirada pela natureza açoriana que veio descobrir, em contexto descontraído, expôs a importância que teve a natureza, as cores e os cheiros no seu percurso. Enquanto se esperava que começasse esta Incógnita Talk, pelos corredores de uma das lojas mais icónicas da ilha, a La Bamba Store, entre discos de vinil e rádios, falou-se do encanto da pequenez que forma este arquipélago. Por todo o lado, ouviam-se elogios e procuravam-se respostas para a maior questão levantada pelos visitantes: como pode um local tão pequeno ser tão grande ao mesmo tempo? O que existe neste recanto do mundo que vos molda para serem tão diferentes? Nenhum açoriano conseguiu responder as estas perguntas e, entre gargalhadas e curiosidades sobre o arquipélago, permaneceu o convite para regressarem às ilhas, com a garantia de que terão sempre um teto que os acolha.

No dia seguinte, começou, em formato oficial, o Tremor na companhia de Tristany, uma voz da música portuguesa que atuou num dos palcos mais respeitados dos Açores, o Coliseu Micaelense. Tristany afirmou, após uma atuação que pôs o público a cantar, estar grato pela oportunidade já que “o Tremor foi a oportunidade e a forma de acreditarmos que estamos no caminho certo”, mencionou com felicidade.

Concerto Tristany | ©Paulo Prata

Num formato fora da caixa, a atuação de Trypas-corassão decorreu numa antiga garagem de uma das grandes empresas de transportes públicos presentes na ilha, com um papel fulcral para o desenvolvimento da região, equiparando-se, num formato contemporâneo e atual, ao papel dos espetáculos decorrentes naquele espaço para a cultura açoriana. Na garagem do Varela, as artistas exploraram, através da música, o conceito de ser mulher e da liberdade e permissão para se ser feliz. Após uma interpretação ousada e dinâmica, destacaram a programação diversificada do festival e defenderam que “as vibrações de afeto foram evidentes no público açoriano, mostraram-se um público atento”. Terminaram com um agradecimento e apelando para que  as pessoas “tenham sede e vontade de criar também, coisas que comovam e criem contágio e partilha de experiências. Estamos atentas também ao futuro e achamos que isto, aqui e agora, é uma excelente adição para o futuro”, finalizaram as artistas.

Concerto Trypas-corassão | ©Carlos Brum Melo

Com a integrante de mistério e surpresa, surgiu o Tremor na Estufa, onde os artistas e localização são apenas revelados na manhã do próprio evento. A organização do festival permitiu, através desta componente, levar os festivaleiros a banharem-se nas águas quentes do Parque Terra Nostra. Dentro de água férrea de cor alaranjada, ouviu-se Cocanha. Uma agradável surpresa, numa das paisagens mais emblemáticas dos Açores, repleta de instrumentos variados e boa disposição. De um ambiente tranquilo, envolto na natureza e ao som dos pássaros, de rompante, o Tremor passou para um cenário contrastante. No Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, assistiu-se a um espetáculo de som e luzes pela Ece Canli e Odete, em que as questões assoberbaram a cabeça dos espetadores, assolados pelo absurdo, pelos flashes que cegavam e pela mensagem que a performance consigo acarretava, diferente de espetador para espetador. As opiniões dividem-se, mas num aspecto convergem: a atuação vai com o público para casa, remoendo-lhes os pensamentos. As surpresas continuam, envolvendo os Açores e os visitantes na beleza natural do Jardim Botânico José do Canto, onde o palco é verde e cheira a relva molhada e os sons da música condizem com o ambiente.

Tremor na Estufa, Jardim Botânico José do Canto | ©Vera Marmelo

Este festival é feito de palcos e artistas inéditos. A natureza dá lugar a uma igreja, a igreja do Colégio. Aqui, atuaram o Coral de São José, com os Ondamarela e a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel, numa parceria que emocionou a plateia. Um dos membros do Coral de São José relata que, “ao princípio, era um desafio quase indefinido, mas, rapidamente, após se ver nascer a musicalidade e interação, veio um alento de mergulharmos juntos nesta dimensão do cruzamento”, afirma. Além do Coral de São José, dos Ondamarela e da Associação de Surdos da Ilha de São Miguel, também os Victoria e os WeSea, artistas regionais, atuaram nos palcos do Tremor. Um festival que já se tornou um ícone da cultura açoriana, capaz de criar espaço e impacto para os artistas que nasceram nesta terra e que a conhecem como ninguém. Para Francisco Madureira, dos Victoria, “é quase um ciclo que se fecha. Se há uns anos saí de cá em busca de melhores condições de vida e de trabalho, agora volto com a oportunidade de demonstrar este trabalho na terra que me viu crescer, sinto uma evolução e um reconhecimento. Esta atuação é ainda mais especial por ser aqui”.Já os WeSea, uma banda totalmente composta por açorianos, são presença assídua neste festival e acreditam que “o Tremor tem a capacidade de criar um impacto muito grande à volta dos projetos envolvidos. Sempre em moldes diferentes, mas sempre especial”. Os artistas concluem ainda que “este festival é uma montra para os artistas, quer sejam regionais ou não”.

Diversidade é a palavra de ordem no Tremor, e a prova disso é a componente pensada e edificada para os mais novos, o Mini-Tremor, que, durante uma tarde, executa um programa com atividades, música e arte dedicado às crianças. Este ano e, para romper com todo e qualquer tipo de estigmas e tabus, a drag queen açoriana Valleydation atuou no palco do Estúdio 13, acompanhada pelo DJ Paco Piri Piri. Valleydation, de forma a validar este lado feminino e artístico de Valdemar Creador, refere que “é extremamente gratificante conseguir fazer isto numa ilha tão pequenina, porque, até então, não me tinha sido possível, não me deram esta oportunidade até ao convite do Tremor e do Estúdio13”.Fora da sua zona de conforto, Valleydation admite que fazer drag queen em contexto infantil foi uma “chapada sem mão” para os adultos, uma vez que “ninguém nasce preconceituoso, e este espetáculo foi a prova disso. Senti, sim, muita curiosidade por parte das crianças, mas, acima de tudo, senti aceitação, empatia e amor”, e acredita, igualmente, que “só através deste tipo de exposição é que se consegue moldar e desconstruir mentalidades e preconceitos”.

Mini-Tremor, com drag queen Valleydation | ©Carlos Brum Melo

É, sem dúvida, um festival fora da caixa em que reina a diversidade, o empreendedorismo e a valorização dos artistas e do público. Tornou-se um local de atração para onde várias pessoas, de diferentes partes do mundo, viajam para conhecer e explorar o festival, a ilha e a população micaelense. A organização admite que se torna “fácil vender o Tremor, através das imagens que se mostram dos Açores, dos locais exóticos e das paisagens de cortar a respiração, interligadas com bandas totalmente diferentes”, acrescentando ainda que “seria difícil o Tremor [acontecer] noutra parte do mundo. Não seria Tremor, até porque Tremor está sempre associado à condição do nosso arquipélago. Não faria sentido noutra parte do mundo, mas faria sentido explorar as nove ilhas dos Açores”. Um desafio para quem organiza um festival no meio do oceano Atlântico, mas em que, de ano para ano, e com muita criatividade, a confiança do público na entidade organizacional cresce e nota-se um maior reconhecimento da comunidade quando termina o festival. É já um hábito, na mesma semana em que ficam disponíveis os bilhetes para a edição do ano seguinte do Tremor, ver-se que mais de metade dos bilhetes são vendidos. Sem programação definida, sem artistas divulgados, só com a vontade de partilhar a experiência no meio do Atlântico. O Tremor é, realmente, amor.

Para 2023, as datas estão definidas para dia 28 de março a 1 de abril e os bilhetes já estão à venda.

Texto de Carlota T. Dâmaso
Fotografia de destaque de Vera Marmelo

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