Incomoda-me, sem me surpreender, o que os jornais relatam sobre as culturas de prepotência instaladas em algumas faculdades, como é o caso da faculdade de Direito de Lisboa e o Instituto Superior Técnico. Estudantes que são humilhados, catalogados de burros ou sacrificados no altar de uma prática em estilo militar, dão conta da propagação de sintomas de ansiedade, stress e depressão (Instituto Superior Técnico). Na Faculdade de Direito (de Direito, note-se!), os alunos que denunciaram casos de assédio moral e sexual são pressionados para não seguirem com as queixas, num ambiente geral de permissividade institucionalizada face ao abuso. Há pouco tempo, ao entrevistar uma aluna para um trabalho de pesquisa, ela contou-me da vergonha que sentiu ao entrar na Universidade, porque uma professora se ria com escárnio do seu linguajar popular.
Muitas destas situações acontecem na sala de aula, com insultos, ameaças ou graças estúpidas quando um estudante exprime as suas dificuldades de aprendizagem. Aliás, os níveis de insucesso e de abandono, no caso do Técnico, deveriam ter feito soar todos os alarmes, mas, ao invés, surgem como a glorificação suprema de uma cultura de “exigência” e “excelência”, epítetos abastardados pela verve de quem os usa como trofeu. Ora, as salas de aula devem ser lugares de debate, de colaboração, de um exercício metódico e coletivo de aprendizagem, ao invés de máquinas de repetição unidimensional e unidirecional.
Como é possível que isto aconteça, em pleno século XXI e em democracia? Rui Cardoso lembra-nos, em recente artigo no Expresso, que, no estertor do fascismo, em 1972, os corajosos estudantes do Técnico confrontaram o diretor e os professores catedráticos com a chumbaria em algumas cadeiras. Gerou-se, então, um ambiente de fraternidade estudantil e o medo foi vencido. Quando um catedrático os ameaçou com a polícia de choque, um estudante ousou perguntar-lhe, desfazendo instantaneamente, pela rebeldia, a aura de autoridade de que o lente se investia: “Ó tiozinho, e tu és quem?”
Tal como acontecera em França, embora noutro contexto político, com o maio de 68, os estudantes levantavam o dedo, faziam as perguntas difíceis, recusavam a autoridade só porque sim e abanavam o país de brandos costumes, “tão manso/quase vegetal” (Alexandre O’Neil).
Hoje volta a impor-se um sobressalto. Os abusos devem ser denunciados e as instituições fiscalizadas e responsabilizadas. Mas cabe também aos estudantes o dever de não serem servis e de se manterem unidos. Quantos vezes ouço queixumes de estudantes que, perante o meu conselho de confrontarem os docentes ou a direção da faculdade com determinadas ocorrências, se refugiam na desculpa da eventual punição. Importa saber, em ambiente de fraternidade, correr riscos e arcar com as consequências das nossas ações. Desmontar o arbitrário das ordens absurdas ou dos insultos soezes. Dizer não. Fazer greve, se necessário. Olhar para os professores autoritários com a resistência de quem não lhes reconhece esse poder.
Contudo, os estudantes estão, em geral, atomizados, sem qualquer ligação às associações de estudantes ou aos movimentos sociais. Tantos e tantas insistem no exercício da “praxe”, que mais não é do que a ritualização do conformismo e da obediência em troco de integração. Ninguém quer ser a ovelha negra. Mas, como em tantas outras ocasiões ao longo dos tempos, sem a loucura e a ousadia dos tresmalhados unidos jamais se encontrará o prado verde e livre, a água mais pura ou a alegria soberana.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.