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Andanças: Uma árvore da vida que quer ganhar novas raízes

Nas áridas planícies alentejanas, apesar do calor e da seca, há quem germine uma semente, regando-a de esperança. Após dois anos de restrições impostas pela pandemia, o Andanças regressou, entre os dias 18 e 21 de agosto, com a vontade fincada de criar raízes na aldeia de Campinho, situada junto a Reguengos de Monsaraz e ao espelho de água do Alqueva, o maior lago artificial da Europa. O festival, organizado pela Associação Pé de Xumbo, sediada em Évora, mete o dedo numa ferida aberta – a erosão contínua de práticas sociais ancestrais que compõem a identidade de diversos territórios e povos –, e tenta sará-la, tecendo, através da dança, uma colorida e diversa manta de retalhos.

Texto de Redação

© Juliano Mattos

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Ao longo de quatro dias, desdobram-se oficinas de dança, sessões de contos e cinema, visitas e passeios pela região, concertos, atividades de relaxamento e bailes, muitos bailes. Das danças dos Balcãs, ao kizomba, passando pelo bollywood e pelas danças de Porto de Mós, as fronteiras perdem significado com o reconhecimento de que todo o movimento é uma variação de um mesmo sentir. O ponto de encontro entre todas as pessoas que fazem o festival acontecer é além-Tejo, numa paisagem amarela, torrada pelo sol, pontuada pela presença de sobreiros e azinheiras. Campinho surge no horizonte como uma mancha branca, resgatando o olhar que se vai perdendo no cenário bucólico e desértico, belo e melancólico. Esta é a nova casa do Andanças, cuja história se escreve de Norte a Sul do país, num ‘caminhar caminhando’ próprio à vida.

A primeira edição do Andanças aconteceu em 1996, fruto do desejo de um grupo de amigos de recuperar e cuidar uma tradição que, em Portugal, havia esmorecido: o dançar a pares, em grupo e em comunidade. Apesar de os bailes serem reconhecidos e praticados pelos ranchos folclóricos, que existem um pouco por todo o país, a espontaneidade desses ritos foi-se perdendo. Para a coordenadora da Associação Pé de Xumbo, Marta Guerreiro, o espírito do Andanças passa por “levar as pessoas a experimentar uma série de danças, sem que haja uma imposição de técnica, de traje… As pessoas poderem dançar livremente e transformar as danças tradicionais no que elas realmente são: danças sociais”.

Entre 1999 e 2010, o festival realizou-se na aldeia dos Carvalhais, em São Pedro do Sul, unindo, com o passar dos anos, músicos, artistas e viajantes, que ali faziam um ponto de paragem obrigatório, num ritual que se repetia a cada volta ao sol. O primeiro dia do Andanças é marcado por reencontros, as pessoas abraçam-se, recordam, partilham histórias. Num dos cafés do largo, duas participantes falam com saudade dos Carvalhais, enquanto aguardam a abertura da bilheteira. A grande afluência de pessoas à localidade situada no Norte do país levou a que o projeto tivesse de pensar em espaços alternativos para se realizar, porque o local já não oferecia as condições necessárias para receber os “andantes”. Em 2013, o Andanças é construído, pela primeira vez, na Barragem de Nossa Senhora da Graça de Póvoa e Meadas e aí permanece até ao verão de 2016, em que um enorme incêndio forçou a organização a readaptar-se novamente.

Um dos membros da Pé de Xumbo e coordenador da equipa de montagem do festival, Nelito, explica que “não foi sempre fácil aceitar que íamos mudar de sítio, porque na barragem tínhamos o ideal, tínhamos uma perspetiva de futuro e um projeto pensado a longo prazo, já tínhamos construído estruturas a pensar nos próximos anos. Estávamos realmente a construir o que seria a aldeia do Andanças”. No entanto, a flexibilidade, a itinerância e a resiliência parecem já fazer parte do ADN do festival que, nesta nova edição, planta uma árvore perto de casa e espera vê-la crescer com “força e folha persistente”.

Campinho © Inês Sambas

A arte de ganhar asas com os pés bem assentes na terra

A aldeia de Campinho é a nova casa do Andanças. Apesar de as fundações e das paredes ainda não estarem construídas, já existem janelas, através das quais podemos espreitar e imaginar que forma e feitio a paisagem vai adquirir nos próximos anos. Até que ponto conseguimos influenciar o contexto que nos rodeia? De que forma somos moldados por ele? Que histórias contam as portas fechadas de Campinho e que portas se vão abrir para a comunidade do Andanças nesta e em próximas edições? As ruas alcatroadas, ladeadas por casas caiadas a branco, levam os participantes até aos principais pontos do festival, enquanto os habitantes, sentados nas escadas da entrada ou debruçados sobre o parapeito, olham com curiosidade quem passa.

No lavadouro de Campinho, A Urtiga, duo composto por dois eborenses, cantam sobre Catarina Eufémia, agricultora alentejana assassinada pela Guarda Nacional Republicana em 1958, durante um protesto de trabalhadores que reclamavam aumentos salariais. O dedilhar das guitarras ocupa o silêncio da planície sem, por isso, o perturbar. Cá fora, o pequeno parque infantil e zonas relvadas surgem como um oásis, estimulando bocejos e sestas. “O tempo para ou passa devagar”, canta o duo. Durante os dias do festival, este espaço vai receber oficinas criativas e concertos intimistas ao início da tarde. O programador deste local, Nelito, afirma que, na escolha das atividades, “quis apostar nas manualidades com reciclagem e em iniciativas de âmbito tradicional. Para além disso, queria que fossem oficinas em que as pessoas pudessem levar algo daqui, que não fossem oficinas em que as pessoas estão apenas a absorver informação”.

No primeiro dia de festival, o espaço Lavadouro foi inaugurado com duas atividades, uma onde a Tipografia do Papeleiro Doido ajudou os participantes a construir cataventos e outra em que o músico natural e residente em São Pedro do Corval, Nelson Conde, apresentou a viola campaniça, um instrumento alentejano, tradicionalmente usado para acompanhar os cantares à desgarrada, ou “cantes a despique”, nas festas e feiras. “Amanhã também vou tocar com o grupo Al Canti, que se dedica ao cante alentejano”, conta-nos com entusiasmo o professor, que dá aulas no Centro de Valorização da Viola Campaniça e do Canto de Improviso. Os Al Canti são compostos por seis pessoas da região, entre as quais o filho de Alda Garcia, trabalhadora na Associação Gente Nova de Campinho, entidade parceira do Andanças que já tem vindo a criar sinergias na região.

Pintura © Isabella Johansson

No dia seguinte, sexta-feira, Alda dinamiza uma atividade de pintura alentejana, mostrando aos participantes fascinados como fazer os coloridos motivos floridos com que, naquela zona, se decoram caixas, potes e cadeiras. Personalizamos a caneca que adquirimos, que acompanha todos os “andantes”, chocalhando pelas ruas de Campinho. Alda pintou nas olarias de cerâmica durante muito tempo, a mais importante atividade económica artesanal da região, que serve de inspiração para a decoração dos espaços de descanso. Sobre o Andanças, refere que está feliz por se realizar na aldeia: “A Associação Nova Gente de Campinho também tem uma tasquinha no festival, estamos a vender comida e bebida. Está a ser muito bom para nós, e também para o comércio local.”

Uma família que cresce a cada ano que passa

Do campismo até à cantina é preciso atravessar a rua principal da aldeia de uma ponta à outra, distância que parece maior ou menor dependendo da altura do dia e da consequente temperatura, que teima em não baixar até bem perto das 18 horas. O espaço destinado às refeições está instalado na antiga escola de Campinho. Num dos passeios até lá, encontramos Maria Luísa, que nos conta que, durante 36 anos, trabalhou no refeitório para o qual nos dirigimos. Recorda os tempos em que servia almoços para sessenta crianças e lamenta que, agora, a maior parte das casas onde outrora viviam famílias estejam vazias. Oferece-nos bolo de mel para a sobremesa, enquanto nos pergunta repetidamente se estamos a gostar de ali estar. Voltamos a passar mais vezes à porta de casa de Maria Luísa que, com um sorriso na cara, vê passar pessoas de todas as idades.

Habitantes © Juliano Mattos

As crianças marcam presença por todo o lado, fazem perguntas, brincam e dançam. O calor parece não as afetar da mesma forma que incomoda os adultos. Numa oficina de dança, bailamos com uma mulher que carrega um bebé com um grande lenço vermelho que lhe cruza o peito e sustenta o recém-nascido que, apesar de ainda não saber andar, já se move ao som da música. Uma das coordenadoras do espaço criança, Rafaela Calheiros, explica que o Andanças “sempre foi um festival de famílias, mas eu considero que, este ano, foi um festival de famílias novas. Tivemos muitos bebés, muitas crianças pequenas, muitos bebés da covid, acho eu. E também muitas caras que já conhecíamos dos bailes que estão agora aqui enquanto pais com os seus pequeninos”. O Andanças é um evento assente numa passagem intergeracional e o seu público assemelha-se a uma família que vai crescendo, à medida que as relações interpessoais entre participantes se adensa, tal como um tronco que, em cada encruzilhada, se vai ramificando.

Espaço criança © Juliano Mattos

O espaço criança tem dois polos, um em cada lado da rua: o interior agradavelmente fresco de um edifício e uma tenda de circo vermelha e azul. Dependendo da hora do dia, um ou outro é usado como palco de atividades para as crianças e famílias que exploram a dança, expressão plástica, corpo e movimento, teatro, yoga, etc. As iniciativas são propostas por artistas, através de uma open-call, sendo que Neide e Rafa, coordenadoras desta dimensão do festival desde 2013, fazem uma seleção dos projetos que a vão colorir e compor. Além disso, existe um berçário, onde as crianças mais pequenas podem fazer sestas, acompanhadas pelos pais. “O objetivo é que todos possam usufruir do festival, não só os adultos”, explica a membro dos órgãos diretivos da Pé de Xumbo, Marta Guerreiro.

Ser leve como uma folha

Um dos grandes pilares do Andanças é a sustentabilidade ambiental, que se traduz em diversas iniciativas que pretendem acautelar o impacto do festival no território onde este se realiza. Em Campinho, tenta-se recuperar e preservar o património cultural e natural, material e imaterial. O público participante parece ser o primeiro a dar o exemplo, cuidando da aldeia com o à-vontade e o respeito de quem já se apropriou do espaço. As boas práticas são incentivadas pela organização que espalhou pontos de reciclagem por toda a aldeia, havendo uma equipa de voluntários responsável por recolher e triar os resíduos. A coordenadora da recolha seletiva do Andanças, Micá, explica: “O que é não orgânico, temos estado a recolher, com contentores azuis, amarelos e pretos, e vamos pondo num contentor que nos foi concedido pela empresa de gestão de resíduos da zona e, no final do festival, eles irão levar para tratamento.”

Cantina © Juliano Mattos

No segundo dia de festival, sexta-feira, vemos um cartaz afixado na cantina com a seguinte informação: no dia anterior, 73 quilos de comida tinham ido para o lixo, 88 % de restos não consumíveis, como cascas, ossos, etc., e 12 % de desperdício alimentar efetivo. Segundo Micá, “o objetivo [desta sensibilização] é incentivar os participantes a levarem a sua dose certa”. Além disso, estabeleceram-se contactos com agricultores da zona que “têm estado a recolher o material orgânico para levar, ou para alimentação dos animais, ou para fazer compostagem”. Desde 2014 que o Andanças elabora relatórios que permitem à organização monitorizar os parâmetros de sustentabilidade ano após ano, sendo que este trabalho tem vindo a ser apoiado e reconhecido por diferentes instituições, como refere a coordenadora: “Em 2016, inclusive, houve um trabalho que foi feito em colaboração com a Universidade Nova de Lisboa e agora convidaram-nos para participarmos num Fórum Europeu relativo ao desperdício alimentar do consumidor.”

Para chegar a Campinho, é necessário fazer a estrada que liga Évora a Reguengos de Monsaraz, onde a agricultura intensiva toma conta dos campos, com as árvores organizadas em fileiras ordenadas, jovens e com um ar cansadas por terem de cumprir com os índices de produtividade. Videiras, amendoeiras e oliveiras cobrem hectares de terreno, alimentadas por quilómetros de complexos sistemas de rega. A estrada é reta e sem curvas. A vindima, nesta zona produtora, vai atrasada: falta água para adoçar a uva. O coordenador da equipa de montagens garante que todas as estruturas do festival são feitas com materiais reciclados e sublinha que a organização é consciente do impacto ambiental que quer ter num território onde se aceleram os processos de seca e desertificação:

“Nas próximas edições aqui em Campinho, há muitas coisas que vão precisar de ser melhoradas. Há ideias que nós já tínhamos, como construir os chuveiros mais elevados para podermos aproveitar a água para os autoclismos das sanitas, criando um circuito circular, porque esta terra também apresenta muitas dificuldades a nível de água. Nesta zona, não temos abundância de recursos hídricos e nós somos conscientes do impacto que temos e que queremos ter neste local.”

Bicicleta © Juliano Mattos

A nível de mobilidade, incentivam-se as boleias, através de um quadro afixado na zona para refeições, onde é possível deixar avisos, pedindo ou oferecendo lugares num carro que se desloque até determinada zona do país. De notar, também, que quem adquiriu o bilhete geral para o festival tinha 25 % de desconto na Rede Expressos. Além disso, este ano, a iniciativa Pedalanças juntou sessenta pessoas que chegaram ao festival de bicicleta e que, em Campinho, puderam assistir a oficinas sobre manutenção destes veículos de duas rodas ou upcycling de câmaras de ar. Uma parceria efetivada com a Cicloficina dos Anjos proporcionou a que alguns “andantes” pudessem, ainda, alugar uma bicicleta para se poderem deslocar dentro do festival.

Construir uma alternativa

O Andanças é uma obra de muitas mãos, o resultado frutífero de um esforço conjunto orquestrado pela Associação Pé de Xumbo, que quer afirmar o festival como uma alternativa a outros eventos do género. “Alternativa no sentido de não ser um festival de grandes massas, com marcas associadas, ou com palcos enormes. O Andanças promove a comunicação entre todos, é o resultado da interação entre quem faz e quem recebe, neste caso, o artista e o participante”, explica Marta Guerreiro. O festival constitui, deste modo, uma pequena utopia num mundo em que a maior parte das trocas é reduzida a uma questão monetária. Assim, um dos grandes pilares do evento, financiado unicamente pela bilheteira e por apoios em espécies dos poderes públicos locais, é o voluntariado. Acredita-se na genuinidade que transborda de fazer algo por gosto e no poder de investir tempo na construção de um projeto coletivo que possa contribuir para o bem comum.

Oficina © Juliano Mattos

O músico e professor de dança galego, Sérgio Cobos, participa no Andanças desde 1998 e sempre veio trabalhar porque, desde cedo, soube que o centro da sua vida era a dança. “Eu e os meus companheiros investimos o nosso cachet no festival, não tocamos de borla, investimos para que este espírito não morra. Somos o ‘pior’ da natureza, a erva brava sempre sai e nós queremos sair. Eu vejo que o Andanças tem uma vontade de continuar a ser um sonho na vida das pessoas. Chegamos cá os que queremos, estamos porque queremos, fazemos o que podemos e continuamos”, explica. Além disso, refere que a Pé de Xumbo inclui os artistas programados no Andanças em outros projetos e atividades que promove ao longo do ano e que, baseadas noutro modelo e filosofia, lhes oferecem remuneração monetária.

Por todos os espaços da aldeia ouve-se música, acordeões, violinos, gaitas de foles, berimbaus... No espaço de receção aos artistas, não conseguimos distinguir os músicos profissionais dos participantes no festival, por vezes multiplicam-se vozes. “Ó meu amor, se me queres amar, labuta / Nada na vida se alcança sem dar sentido e amor à luta”, ouve-se no momento em que conhecemos Lia Capão, voluntária no Andanças. A relação da jovem de 19 anos com as danças tradicionais começou cedo, há uns anos. “Eu conheci este tipo de danças com 12 anos. O meu irmão tinha um café há pouco tempo, em Leiria, e apareceu lá um grupo de dançarinos ao pé do café. O meu pai juntou-se, eu juntei-me com ele e, a partir daí, nunca mais deixámos isto”, conta.

Sobre a sua participação no Andanças, explica que a decisão de ingressar enquanto voluntária partiu de uma questão financeira, “porque não conseguia comprar o bilhete”. “Para além disso, alegra-me saber que estou a contribuir para a realização do festival, que tem valores nos quais eu acredito e quero defender, nomeadamente a questão da sustentabilidade ambiental”, acrescenta. Reconhece, também, algumas falhas no recinto, por exemplo, a falta de sombreamento em algumas partes do campismo. A organização parece ciente do problema, projetando medidas estruturais enquanto colmata as dificuldades quotidianas com soluções rápidas. A cada dia que passa, observam-se melhorias nos diferentes espaços, tais como a instalação de aspersores de água na zona das tasquinhas. “Eu, pessoalmente, penso que deveríamos ter aqui um grande projeto de reflorestação. Se ficarmos aqui para o futuro, pensarmos em reflorestar as áreas que vamos usar, nomeadamente o campismo, que é uma zona difícil de ter sombras”, sonha Nelito.

A par e passo se constrói o Andanças

A par e passo e pés descalços vai caminhando o Andanças, firmando as suas ideias, não no campo da abstração, mas sim no domínio da experiência e do sentir. De manhã aprende-se e à noite baila-se, ao longo dos dias que se vão sucedendo com a naturalidade de um movimento mais orgânico do que mecânico, em que as ruas de Campinho vão adquirindo uma dimensão de familiaridade, bem como os rostos com que nos vamos cruzando. Este ano, as oficinas de dança aconteceram apenas da parte da manhã e após as 18H00, de forma a evitar as horas de maior calor. Nos palcos Seara, Feira e Quintal, trocam-se pares como quem troca sorrisos, anda-se à roda com sentido e dá-se o corpo coletivo à música.

No sábado, pelas 10h30, Sérgio e Mercedes dinamizam uma oficina de Bailes Mandados, onde abordam, entre outras variações, as valsas mandadas portuguesas, uma dança tradicional da zona da serra de Grândola, que combina a valsa, enquanto dança a par, com princípios de organização coletiva da contradança, em que se valorizam as deslocações e o movimento do grupo. Para Sérgio Cobos, “as danças tradicionais tratam de harmonizar a existência de um coletivo humano, que funciona, também, através da música”. Trata-se de ir às raízes e de resgatar práticas sociais que se foram diluindo com o tempo investido de urbanização, modernização e individualização da sociedade. As danças populares serviam um propósito, o do encontro através do movimento, criando espaços de lazer e comunhão onde se geriam as relações interpessoais e até os conflitos. Em Campinho, sopram ventos quentes que transportam uma herança que o Andanças tenta preservar. “O lugar [das danças tradicionais] é eterno, mas só vive através da memória e de projetos que a tentam manter viva, como o Andanças”, salienta o professor de dança.

Baile © Juliano Mattos

Aqui, corpos individuais constituem organismos coletivos, de mãos dadas o encontro com o Outro é naturalizado. Na noite de sábado, um apagão no palco Seara faz com que o grupo italiano Lo Stivale Che Balla prolongue o seu concerto. No campo de jogos, um grupo de pessoas começa a dançar a pares, de um jeito espontâneo que, aqui, parece brotar sem esforço de todos os cantos. Rapidamente, alguém da organização ilumina o cenário com focos de luz laranja que vai buscar a outros pontos do recinto, num movimento orgânico de coconstrução. O céu negro permite que milhares de estrelas brilhem em todo o seu esplendor – o essencial surge quando não turvamos a visão com artifícios. Cá em baixo, passando o baile autogerado envolto numa aura cor de pôr-do-sol, um outro grupo de pessoas forma uma roda e bate os pés de forma ritmada, ao som de um batuque ao qual se vão acrescentando vozes e risos. A energia do Andanças é esta: a música e a dança são uma maravilhosa linguagem humana que só precisa de vontade para espalhar a sua mensagem de união.

Apesar das dificuldades, altos e baixos, a perseverança é imagem de marca de um festival que, agora, cria raízes no território que o viu nascer. O momento é o de fincar pé, mostrar que o impossível é possível, que as ideias aparentemente utópicas e inalcançáveis podem ser atingidas através da auto-organização. No final dos quatro dias de festival, as portas de Campinho vão-se abrindo, os habitantes, ao início apreensivos, dizem-nos para voltarmos. Numa conversa acompanhada por um copo de vinho, o músico Sérgio Cobos esforça-se por sintetizar o espírito do Andanças com um brilho nos olhos: “Andanças é como a própria natureza, é vida. Vir este ano para cá depois da pandemia, depois de a Pé de Xumbo ter feito 20 anos em Évora, é o símbolo da vida, a vida tem de ser, tem de continuar e continua.” A organização fala com esperança do futuro, está na hora de pôr em prática as lições aprendidas nesta edição que foi como uma experimentação, um ato de lavrar e nutrir o solo onde, com cuidado, vai crescendo uma árvore da vida.

O festival Andanças é um projeto financiado pelo Alentejo 2020, Portugal 2020, União Europeia Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional e que conta com o apoio da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz. 
Texto de Catarina Silva

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