Um aquecimento vocal em conjunto marca o início das reuniões do coro, cujas primeiras práticas, com as canções Desenrola o Teu Cabelo e Vai de Roda, transportam-nos, respetivamente, às Aldeias do Xisto e aos Açores. A ausência de partituras é mais um sinal de que estamos diante de algo completamente contrário ao que é considerado erudito e convencional.
Atuante nas áreas do turismo criativo, do serviço educativo e cultural e da intervenção pela arte, o seu ex-líbris, a associação Catrapum Catrapeia lançou a iniciativa no início de outubro. A ideia partiu da fundadora, Vânia Couto, ávida pela necessidade de trabalhar em coletivo, fosse no campo artístico ou não. Simultâneo a esse desejo, a música e professora, integrante de projetos como a Orquestra Geração e os Pensão Flor, passou a receber pedidos de ajuda de amigas e colegas que procuravam um coro que fugisse do estilo lírico. “Não havia nada do género na região Centro”, recorda, ao Gerador, o momento em que decidiu combinar as necessidades identificadas e desenhar o projeto.
Uma vez que o grupo surgiu de um sentimento de solidão e de desvinculação afetiva que “deriva do tempo de pandemia”, continua Vânia, a criação comunitária constitui uma componente essencial do trabalho, desenvolvido num raro espaço de partilha entre mulheres. E assim foi construído o seu conceito: cantar sobre o feminino, no sentido político, da luta pela igualdade, e do seu quotidiano, emoções, aspirações e problemáticas.


Em contraste com o cenário urbano em que está inserido, o Coro das Mulheres da Fábrica resgata o senso de comunidade através das tradicionais canções entoadas pelas trabalhadoras dos campos portugueses. No entanto, aposta igualmente num repertório composto pela world music contemporânea. “As preocupações da mulher argentina, por exemplo, são as mesmas da mulher portuguesa, seja no passado, no cancioneiro popular, ou nas [músicas] de agora, que estamos a tentar encontrar e criar”, assegura Vânia, que ocupa ainda o cargo de maestrina. A colaboração criativa também tem lugar no próprio arranjo musical, sempre aberto a sugestões que modernizem e enriqueçam a componente artística do coletivo.
Operárias da voz: o órgão de uma fábrica
Pensada para ser uma comunidade em primeiro lugar e, apenas depois, um grupo de cantoras, a iniciativa acolhe mulheres de todas as idades, nacionalidades e contextos, com ou sem formação musical prévia. Para a diretora, trata-se de mais uma semelhança com os cantes do meio rural, em que se ouvem coisas “lindíssimas e inimitáveis” precisamente porque os seus elementos não têm a prática do canto.
A composição heterogénea, na qual “cabe toda a gente”, é um ponto positivo, considera a psicóloga Vera Felício. Dos seus 55 anos, 25 foram dedicados ao Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC). “Já estive num coro de música clássica, mas a minha praia e onde eu me sinto bem é a música tradicional. Acho que me vou encontrar aqui”, relata-nos, no seu primeiro ensaio, garantindo que sente preenchida a lacuna deixada pela pausa das suas atuações.
Por outro lado, sem contar com as breves lições de piano que teve na infância, são os primeiros passos de Ana Jaleco na área. Bióloga de formação, a inscrição no Coro das Mulheres da Fábrica é um reflexo do privilégio de “escolher e experimentar outras coisas que também sou”, diz. “Acho muito giro estarmos aqui, um monte de mulheres, todas diferentes, a unir-nos pela voz e a fazermos coisas que não são assim tão fáceis”, acrescenta.
Já Matilde Simões, com um percurso pelo teatro, recorda ter algumas formações na música. Ainda que sem nenhuma ligação pessoal ao cancioneiro popular, a ideia de um coletivo exclusivamente feminino e do resgate da ancestralidade portuguesa chamou-lhe a atenção. “É cada vez mais importante haver espaços em que possamos ser exatamente nós mesmas. Isso é muito forte e poderoso para todas [as integrantes] e se expandirá para quem nos escutar a cantar”, afirma, esperançosa.


O nome do grupo, apesar de também identificar o local de encontro, faz referência ao movimento de operárias que, no século XIX, revindicava melhores condições de trabalho nas fábricas. Por essa razão, as participantes do coro referem-se a si mesmas como operárias da voz. “Sentimo-nos mais unidas ainda [ao usar o termo]. Somos como o órgão de uma fábrica. A maior parte delas não sabe cantar, então estamos aqui a trabalhar a voz”, explica Vânia.
O coro (im)perfeito
Comunhão, emoção, descontração e entusiasmo são algumas das palavras usadas para descrever os ensaios. “Apesar de ser muito difícil dirigir um coro, porque é uma coisa que eu estou a aprender a fazer, fico muito feliz de ter aquele momento com as minhas mulheres. Para mim, é um espaço em que estou a cuidar de mim própria também”, confessa a maestrina. É um consenso, para as Mulheres da Fábrica, que muito do rápido avanço do grupo se deve a essa entrega, assim como à energia e ao profissionalismo da direção musical de Vânia e Neli Beloti – “as pessoas cativam-se por isso e acabam por dar o seu melhor”, acredita a operária Patrícia Almeida.
Hoje professora universitária na área veterinária, Neli aceitou o convite da Catrapum e está de volta àquela que é a sua primeira formação. Com experiência na liderança de coros, é a responsável pelo aquecimento inicial das vozes e pela classificação vocal individual. “Já temos uma composição de vozes muito boa”, garante, atribuindo a responsabilidade da evolução ao coletivo: “Elas êm uma facilidade grande, aprendem rápido e são afinadas, então o trabalho evolui com rapidez.”


Porque se trata de uma maioria de pessoas que não domina a técnica, há uma escolha de não usar partituras ou explicar harmonias. As reuniões decorrem de forma orgânica, opina Vânia, sempre na perspetiva de passar do comunitário para o profissional. Tal diferencial não está isento de desafios e a fundadora do projeto conta que o coletivo tem de se dedicar mais tempo que os coros convencionais, mas a dinâmica escolhida assegura a sua originalidade e inclusão. “Não pretendemos fazer um grande show, com tudo afinado e perfeito. Existem muitos coros cujo objetivo é esse, mas o nosso é cantar a música tradicional popular de acordo com aquilo que sabemos fazer”, afirma.
Essa liberdade foi o que atraiu, na opinião da associação promotora, o alto número de inscrições na iniciativa. Encerradas desde o início do mês de novembro, existe a possibilidade de abrirem mais vagas em janeiro de 2023, mas as operárias deixam o aviso de que é importante ter compromisso e empenho. “É preciso que elas se dediquem e estudem para além do ensaio”, alerta Neli, visto que o Coro das Mulheres da Fábrica já tem a sua primeira atuação agendada – no Convento São Francisco, em Coimbra, a 1 de junho.


As expetativas são altas, e a estreia está a ser vista como um grande estímulo para a eficácia do trabalho. Ao convívio e à celebração da mulher nas músicas de todo o mundo junta-se o objetivo de criar uma presença performática em palco, como um coro cénico. Ainda que o coletivo não tenha começado a trabalhar em números específicos, a ideia de Vânia é clara: desenvolver uma apresentação que aproveite a potencialidade de cada mulher. “O corpo, a palavra, os sons, vídeo e luz serão utilizados para a construção da linguagem que vai existir no espetáculo. Vai haver momentos em que o coro se vai movimentar de uma forma artística e interligar as várias canções”, idealiza.
Apesar da alegria em ser reconhecido no circuito local, o Coro das Mulheres da Fábrica já se considera um sucesso desde o primeiro encontro, há pouco mais de dois meses. Para o futuro, fica o desejo de exaltar o património cultural português e originar canções que marquem as próximas gerações.