A 16 de janeiro de 1916, António Gramsci, comunista, resistente antifascista e grande pensador italiano, escreveu um texto no jornal Avanti! intitulado “Eu odeio o dia de Ano Novo”. Neste, que facilmente se torna um favorito óbvio de todos aqueles que se aborrecem perante os rituais das datas que nos exigem certos balanços ou reflexões, Gramsci explica que detesta a transformação da passagem do tempo e do espírito humano num produto comerciável que impõe quebras e continuidades. Assim, rejeitando esta obrigatoriedade de celebrar um momento imposto por um calendário, Gramsci sublinha: “quero que cada manhã seja um Ano Novo para mim. Cada dia quero lidar comigo mesmo e todos os dias me quero renovar”.
No momento em que escrevo este artigo, entramos na segunda semana do ano de 2023. Movidos pela renovação do calendário, somos impelidos a resumos e balanços sobre o ano volvido e a projeções e desejos para o que agora começa. Aqui ficam algumas.
Em Portugal, à semelhança de tantos outros sítios do mundo, 2022 não foi um ano fácil para quem estuda e quem vive do seu trabalho. A inflação veio roubar salários e pensões e, face à inação do Governo, que rejeita fazer alguma coisa de esquerda, veio igualmente empobrecer e dificultar as vidas. Ao mesmo tempo, as gerações mais jovens viram passar mais um ano em que as rendas nas suas cidades se agravaram, ficando um pouco mais longe da sua independência e do futuro que querem construir. Privilégios para nómadas digitais, residentes não habituais e vistos gold e, enquanto isso, quem trabalha e estuda está sujeito a rendas médias de dois mil euros (muitas vezes mais altas até do que em cidades como Paris), a quartos a quatrocentos euros por mês e a aceitar situações de insalubridade ou de ausência de privacidade.
Olhemos então, brevemente, para fora das nossas fronteiras. O ano de 2022 ficou marcado pelo aproximar de pontos de não retorno climático e pela multiplicação de fenómenos climáticos extremos por todo o mundo. Testemunhamos dezenas de eventos meteorológicos extremos, assistimos a um terço do Paquistão ficar inundado como resultado de terríveis cheias e vivemos o verão mais quente na Europa em quinhentos anos. Ao mesmo tempo, a COP 27, realizada no Egipto, foi mais um exemplo acabado de greenwashing de grandes empresas poluidoras, de governos com políticas desastrosas para o clima e, sobretudo, de um sistema que nos conduz, como diz António Guterres, por uma “autoestrada para o inferno”.
Em 2023, queremos o futuro de volta. Queremos deixar de estar presos no presente eterno que vive ao ritmo das bolsas de valor, dos cartões de crédito, das rendas que não conseguimos pagar e do desespero no fim do mês. Todos os dias nos queremos renovar e melhorar, num esforço coletivo que nos leva pelo caminho de uma vida melhor. O progresso de que precisamos não se consubstancia num carro que muda de cor sozinho ou num telefone que resiste à água. O progresso que emana da nossa responsabilidade coletiva de transformação da sociedade é aquele que garante dignidade e direitos fundamentais a todas as pessoas do mundo. Talvez essa responsabilidade coletiva seja aquela com que Gramsci queria acordar todos os dias, capaz de nos renovar a nós mesmos e ao mundo que nos rodeia todos os dias e não apenas nas datas nas quais se procura encerrar toda a vontade de mudança. E se, olhando à nossa volta, é frequente que nos deixemos cair no pessimismo de quem vê um mundo de injustiças sociais, de destruição climática e de regimes de privilégio, saibamos, tal como Gramsci, completar o pessimismo do intelecto com o otimismo da vontade.
-Sobre Leonor Rosas-
Estudou Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH. Está a fazer um mestrado em Antropologia sobre colonialismo, memória e espaço público na FCSH. É deputada na AM de Lisboa pelo Bloco de Esquerda. Ativista estudantil e feminista.