Caminhava eu para o ponto final deste texto, quando a notícia do desaparecimento da actriz e performer travesti, Keyla Brasil*, me começou a pesar sobre o espírito e os pensamentos, contaminados por um exercício que, nos últimos dias, não pude deixar de fazer. Mas, já lá vamos!
Começo pelo princípio.
Ao visualizar as imagens do protesto de Keyla, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, durante a apresentação da peça "Tudo sobre a minha mãe" – acusada de “transfake” – em momento algum me centrei no tanto que tem feito correr tinta nos jornais, e jorrar ódio nas redes sociais.
Naquele instante em que a travesti brasileira avançou para o palco, o meu foco não esteve:
- No público que investiu tempo e dinheiro para assistir ao espectáculo e saiu defraudado;
- No elenco que estava em palco e não pôde prosseguir com a actuação;
- No talento de quem se submeteu ao casting;
- Na forma e limites dos protestos;
- Na liberdade criativa dos autores;
- Nos vícios e virtudes da representação;
- No que o teatro é, no que não é, no que pode ser;
- Na reacção do São Luiz ao ocorrido;
- Nas condições precárias de trabalho dos profissionais da cultura.
Naqueles minutos de intervenção, fixei-me na violência que empurrou Keyla para aquele palco. Vi um corpo a manifestar traumas silenciados, lutas invisibilizadas, e tantas e tantas expressões de desumanização que tudo o resto me pareceu acessório. Não vi uma pessoa a disputar protagonismo, ou um papel numa peça de teatro, mas sim alguém a defender a própria vida.
E foi aí que me detive.
Contou-nos Keyla que, na semana anterior ao protesto, teve um revólver apontado à cara. “Eu ia sendo morta. Sabe por que eu ia ser morta?”.
A resposta revelou mais uma marca da sua condição de actriz e performer travesti: à falta de trabalho no teatro, área em que se formou, a brasileira estava a trabalhar como prostituta.
Longe de ser caso único, Keyla deixou o apelo: “Eu queria pedir para a produção dessa casa, para as produtoras que financiam, e para a produção artística de Portugal: sejam nossos aliados. Não contratem somente mulheres, homens. Contratem travestis pelo menos para subir ao palco, para contar a nossa história e as nossas narrativas, porque isso pode custar as nossas vidas”.
327 assassinatos de pessoas trans e de género diverso em todo o mundo
Ouço cada palavra, e embrenho-me naquele exercício que menciono no início do texto: sei que a transfobia é real, sei que mata, lembro-me do hediondo assassinato de Gisberta Salce – em 2006, no Porto –, e procuro combater silenciamentos e apagamentos estruturais com a minha pesquisa.
Encontro os nomes de Sabrina Houston e Cristina Blackstar, migrantes, negras e trans esfaqueadas até a morte nas suas próprias casas, no ano passado.
Ambas são referidas no último relatório do projecto Trans Murder Monitoring (Monitorização de Assassinatos de Pessoas Trans), que contabilizou, entre 1 de Outubro de 2021 e 30 de Setembro de 2022, 327 assassinatos de pessoas trans e de género diverso em todo o mundo, por violência de motivação transfóbica.
Os números estão, contudo, longe de traduzir a realidade, alerta o documento: “A maioria dos casos permanece por denunciar, e, mesmo quando são denunciados, atraem pouca atenção”.
É caso para reflectir: se nem essas mortes convocam a nossa humanidade para uma urgente mudança, o que o poderá fazer?
Keyla Brasil avançou com uma resposta.
“Faço parte de um movimento cultural e político que vem desde os anos 1970 no Brasil. Elas iniciaram a luta, foram assassinadas, mas insistiram na causa para que hoje nós conseguíssemos uma abertura. Cabe a nós, que estamos vivas, resistir em memória de quem morreu”, defendeu a actriz, em entrevista ao portal O Globo.
À mesma publicação, Keyla expressou a vontade de “existir todos os dias, sem ser considerada uma aberração”, e destacou o impacto da sua acção no São Luiz.
“Hoje, o movimento de inclusão social e cultural em Portugal tem um rosto. Este corpo violado e maltratado é o símbolo da revolução, porque as pessoas estão questionando os papéis sociais dentro e fora do palco”. Pela vida!
*À hora de fecho deste texto, Keyla Brasil estava incontactável há mais de 48 horas
-Sobre a Paula Cardoso-
Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.