Numa das minhas primeiras semanas enquanto assessora política na Assembleia da República, um agente da PSP disse-me, “aproveita enquanto podes.” Era abril de 2021, eu tinha 22 anos. Lembro-me que estava no 3.º piso do Palácio de São Bento, junto às portas de acesso às galerias da Sala das Sessões. Lembro-me que era quarta-feira, tarde de Plenário. Lembro-me apenas vagamente da nossa conversa, uma série de perguntas mais ou menos inofensivas, em tom jocoso (“há quanto tempo é que cá estás, afinal?” ou “és nova para isto, não?”), uma série de respostas evasivas e preenchidas de credulidade. Lembro-me da semi-gargalhada após o comentário, tão transparente e pontiaguda. E lembro-me da minha reação: nada. Um profundo silêncio coberto por uma vergonha espessa e sem fim.
Do que tinha vergonha? Talvez apenas da minha existência, tão pública e observável, num espaço que, em abstrato, representa a participação popular em democracia, mas que a mim sempre me pareceu o palco do capital, da branquitude, do poder: tudo o que não tinha e não era. Aquela interação veio confirmar o que eu já sabia sobre mim própria e que tentava, em vão, contrariar: porque era uma mulher jovem, racializada, muçulmana, acostumada a trabalhar precariamente, politizada mas apartidária, o meu lugar não era ali. Se lá estava, era por acaso. O cruzar de uma fronteira por tempo determinado, até ser forçada a regressar à minha condição base, ao papel de objeto de análise, de espetadora. Inerte, silenciosa e nas margens.
Quando fui almoçar ao refeitório pela primeira vez, ainda sem um cartão que me identificasse como parte de um gabinete parlamentar, clarifiquei, apressada e desajeitadamente, a minha identidade e de onde vinha, pedi desculpa vezes e vezes por tudo e por nada. Por não ter comigo o cartão, por me demorar a explicar, por atrasar a fila, por ocupar espaço e tempo. A meio do meu discurso inadequadamente longo, o funcionário da cantina interrompeu-me, “a gente sabe quem é, menina”. A sua voz era atenciosa e paciente, mas lá estava a vergonha novamente, no substrato, a tingir até conversas leves e em bom-humor. Inquietava-me que fosse possível que as pessoas em meu redor soubessem quem era, porque, nesse caso, conseguiam ver-me. Que eu era uma impostora parecia-me uma evidência partilhada.
Mesmo de dentro do mundo político, sentia que ele se fechava para mim. E raramente celebrei o nosso trabalho, raramente senti prazer em percorrer os jardins de flores frescas e quietude, ou os corredores imponentes do Palácio, onde bastava descer um lanço de escadas e virar uma esquina para me encontrar perante o meu quadro favorito de Malangatana, todo ele pinceladas vermelhas de um mundo pós-colonial que ainda não existe. Raramente aproveitei.
Não será original o sentimento de não-pertença na esfera política. Habitará no mundo interior de vários jovens Portugueses, ainda que a esmagadora maioria vote, pelo menos para ter mão no futuro. Mas a intervenção jovem expande-se – ou deveria expandir-se – para além do voto. Há coisas a dizer. Há uma vontade quase indomável de as dizer, de moldar com as próprias mãos, de expandir os limites estáticos das estruturas e organizar um novo mundo, coletivamente. E se parece existir consenso relativamente à necessidade de representatividade da juventude na política, nos órgãos de soberania, nos espaços de comentário, os esforços que surgem para colmatar essa ausência são, no mínimo, insuficientes, palatáveis, um contorno sem essência. Falham aos jovens trabalhadores, aos jovens pobres, aos jovens não-brancos e migrantes, aos jovens de identidades não normativas: aqueles para quem fazer política não é um caminho viável ou, na verdade, concebível, aqueles que, quando evocam o conceito de “juventude”, não imaginam um corpo homogéneo, um monolítico. Aqueles a larga distância do privilégio.
Subsistirá sempre um grau de alienação, de desamparo, de ausência de reconhecimento, se a representatividade que nos é oferecida for inócua. Se se acomodar às estruturas e às instituições que sistematicamente fazem lembrar: “aproveita enquanto podes, o teu lugar não é aqui”.
-Sobre Miriam Sabjaly-
Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).