Houve um apartheid português? Consagrado em 1926 pelo Estado Novo, o chamado regime do indigenato “cristalizava uma diferenciação fundamental entre a condição de cidadãos de pleno direito e aquela juridicamente diminuída da maioria dos habitantes africanos que não havia atingido ainda o estado necessário de ‘civilização’”, explicam, em artigo, os investigadores Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro.
O estatuto, que inicialmente abrangia os territórios de Angola e Moçambique, foi posteriormente atualizado e alargado à Guiné-Bissau. À categoria jurídico-social de indígena, sem direito à representatividade política, juntou-se, em 1928, o “dever moral de trabalhar”, estabelecido pelo Código de Trabalho Indígena. Autor do livro Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, José Pedro Monteiro foi convidado no podcast Falando de História, no qual esclareceu que o documento levou à criação de uma caderneta e do imposto indígena, ao controlo dos movimentos dos africanos e à obrigação de comprovação de trabalho por pelo menos seis meses do ano.
Ao Gerador, a antropóloga Maria Paula Meneses descreve o regime como uma estratégia para “transformar as pessoas que habitavam aqueles territórios em objetos de intervenção política sob a justificação de que eles estavam sempre com atos de violência, não respeitavam ninguém e não tinham instituições modernas”. “Sobretudo a partir do século XIX, temos a consolidação de um projeto político e epistémico que diz que tudo o que sai daqui [Europa] tem um valor universal e o resto, normalmente, é para destruir”, diz a pesquisadora.
As medidas vigoraram até o início da década de 1960, deixando marcas profundas, como desigualdades na educação e a separação de famílias devido ao trabalho forçado, como analisam Maria Paula Meneses e José Pedro Monteiro.
Entre as tribos e os assimilados
Com a intenção de não “envernizar” a realidade da vida nas periferias de Maputo – chamada de Lourenço Marques de 1782 até 1976 – durante a presença portuguesa em Moçambique, Celso Mussane faz questão de provar, nas suas memórias, que os subúrbios da capital “nunca foram paraísos, como a nova geração dos licenciados, mestres e doutores pensa”. Nuno Domingos, sociólogo e responsável pela organização e apresentação de Memórias de um Caçador de Lixo, complementa a ideia de que a narrativa presente nos relatos biográficos de políticos, intelectuais, artistas e desportistas moçambicanos corre o risco de “fixar uma representação muito incompleta deste passado, convertido em património nacional, e hoje igualmente explorado por uma nascente atividade turística”, lê-se na publicação (Lisboa, Outro Modo, 2022).
O tribalismo instaurado pela administração colonial é uma das primeiras críticas tecidas pelo pastor. Na opinião da investigadora Maria Paula Meneses, olhar para todas as estruturas africanas políticas como se fossem estruturas étnicas é uma “perversidade” do regime do indigenato que comprova o alto nível de desestruturação causada pelos portugueses. “Só havia uma forma de acarinhar os negros, dando valor e bons incentivos aos que passavam e davam informações sobre os seus irmãos e colegas de serviço”, relembra Mussane.
Se muitos falam que a cidade era limpa durante o colonialismo, Celso Mussane pergunta pelas vozes de quem limpava as suas ruas. Quando criança, foi caçador de lixo na lixeira da avenida Craveiro Lopes, onde “os brancos depositavam tudo, e poluíam o ambiente dos negros”. Além de colegas que “desapareceram à vista dos gestores de serviço”, o seu testemunho não deixa esquecer os “homens humildes” que eram obrigados a carregar os baldes de excrementos das casas das zonas periféricas, visto que as casas de banho convencionais estavam reservadas para as residências urbanas.
Para possibilitar alguma ascensão social e emancipação política, os então indígenas poderiam pedir pelo Estatuto do Assimilado, o que, explica-nos Maria Paula Meneses, consistia num processo burocrático no qual deveriam demonstrar, “política e ideologicamente, em termos de conhecimento e performatividade na vida do dia a dia, que funcionavam como um português”. “É pela negativa que nós conseguimos, através do regime do indigenato, perceber o que é um português – alguém que é monógamo, cristão, batizado, trabalha, tem educação e, no caso do homem, fez um serviço militar obrigatório”, afirma.
O relato de Celso Mussane, porém, mostra que ainda se tratava de uma classe subalterna, com limitações naquilo que poderia ser a estrutura das suas casas, nunca feitas com materiais superiores à madeira e ao zinco e sem permissão para fazer um quintal ao redor, para facilitar a vigilância das autoridades. “Para ter sustentabilidade familiar no tempo de Salazar, uma boa solução era ser assimilado, depois da quarta classe”, escreve o pastor.
Educação colonial: a base para a manutenção das desigualdades
O sistema de educação colonial estava dividido em dois subsistemas: o ensino oficial, para os filhos dos colonos ou assimilados, e o ensino rudimentar, para os nativos. Maria Paula Meneses fala-nos de mais uma estratégia para “legitimar a posição portuguesa”: “Enquanto qualquer um fazia quatro anos [de escola], um indígena demorava oito anos, o que significava que, quando ele acabava a quarta classe, por muito bom aluno que fosse, já tinha mais de 12 anos e não podia ingressar no ensino secundário diurno.”
“Íamos na explicação do professor Vasco, o mais respeitado explicador da Mafalala, que ajudava a comunidade estudantil dos não assimilados”, recorda Celso Mussane. Em Memórias de um Caçador de Lixo, o autor também conta que levou nove anos para chegar à terceira classe, uma vez que o seu pai estava ligado à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a sua família mudava de casa constantemente para fugir da PIDE. “Graças aos bons filhos e filhas desta pátria que deram as suas vidas na luta de libertação, hoje sei ler e escrever”, assegura.
A revogação do Estatuto do Indígena, em 1961, segundo a observação do pesquisador José Pedro Monteiro, traz poucas alterações para o cenário de discriminações. No episódio do podcast Falando de História em que foi entrevistado, menciona a manutenção de uma subordinação a uma organização político-administrativa comandada pelas autoridades tradicionais, prevalecendo o direito costumeiro, baseado na oralidade, ao direito escrito. O número de eleitores em Portugal, que aumenta “de forma muito limitada”, refere, após a abolição do regime, é mais um indicativo, na sua opinião, do baixo impacto que a mudança teve.
Por outro lado, Maria Paula Meneses discorda que o eleitorado seja um bom indicador de análise, dada a falta de interesse dos africanos no sistema político português. “Os próprios portugueses participavam pouquíssimo”, esclarece ao levantar a questão que “temos de perguntar aos países [colonizados] o que eles achavam que era mais importante fazer-se: ter enfermeiros, médicos, advogados, professores universitários, de escolas primárias, etc., ou ir para as eleições?” No caso moçambicano, a antropóloga expõe ainda o facto de a presença portuguesa ter deixado apenas um professor catedrático na Universidade Eduardo Mondlane para retratar a herança do sistema de educação colonial, quadro transformado apenas depois da independência do país.
A dinâmica por detrás do Estatuto do Indigenato mantém-se igualmente, opina a investigadora, na atual produção académica portuguesa. “Portugal acha que é preciso ir colaborar com os países africanos, mas nunca faz colaborações de um para um, é sempre o deslocamento científico total das equipas portuguesas”, considera, acrescentando que a documentação moçambicana, quando consultada, transforma-se em referências raramente fundamentais para o corpo analítico.
“A intervenção [colonial] é tão profunda ainda nos dias de hoje que faz com que nós não conheçamos o que foram as histórias dos outros territórios”, conclui Maria Paula Meneses. Pela mesma razão, Celso Mussane regista como os moçambicanos e moçambicanas resistiram aos colonialistas nas zonas rurais. “A Bíblia diz: ‘Perdoar sempre’. Mas não, não podemos esquecer o tempo que passou”, defende o pastor.