Na minha infância e adolescência, o Brasil inspirava – em mim e à minha volta – sonhos de viagens idílicas que poucos podiam transformar em planos. Lembro-me de como esse fascínio era alimentado pelas novelas, tão eficazes em lançar estilos de vestir, quanto de ouvir e falar.
Foi sobretudo a partir das novelas que me tornei fã de MPB, e que me habituei a identificar algumas variações no uso da língua portuguesa. Ônibus, geladeira, descarga, isopor, trilha sonora, ou café da manhã tornaram-se tão entendíveis quanto autocarro, frigorífico, autoclismo, esferovite, banda sonora e pequeno-almoço.
O universo Brasil levou-me, por exemplo, a pedir à minha mãe que me comprasse uma saia rodada ao estilo celebrizado pela lambada. Cresci com o privilégio de ter esse e outros caprichos satisfeitos, como a compra de cassetes – mais tarde CDs – com os grandes sucessos das novelas.
Pelo caminho, cantarolava, entre brincadeiras infantis, todas as músicas dos genéricos, a que juntava algumas expressões popularizadas por personagens emblemáticos.
Em “Vale Tudo”, por exemplo, a jornalista Solange fez-me repetir até à náusea a palavra “chérie”; enquanto “Roque Santeiro” me viciou no “Tô certo ou tô errado?”, do Sinhozinho Malta. Noveleira assumida, sempre quis saber mais sobre os actores, o que, antes da era dos motores de busca, envolveu leituras mensais das revistas “Capricho” e “Carícia”.
Acredito que, também por isso, décadas depois não preciso de uma pesquisa para saber que a jornalista Solange era na realidade Lídia Brondi (pouco depois retirada das novelas para se dedicar à Psicologia), e que Lima Duarte interpretava o Sinhozinho Malta.
Ao mesmo tempo que consumia novelas, investia parte substancial da minha mesada nos deliciosos gibis (BD) da Turma da Mônica, com os quais conheci não apenas a Mônica, como também a Magali, o Cebolinha, o Floquinho, o Cascão, a Tina, o Rolo, o Chico Bento, entre outros.
A minha proximidade com o Brasil construiu-se também a partir do futebol, que, por palavras, seguia a partir da coluna de Duda Guennes n’ “A Bola”, intitulada “Meu Brasil Brasileiro”.
Tudo isso foi acontecendo desde a minha infância, sem que alguma vez tenha sentido algum impacto negativo sobre a minha aprendizagem.
Pelo contrário, expandi conhecimentos.
Abrir e fechar fronteiras
Custa-me, por isso, ler notícias que associam a exposição das crianças a conteúdos brasileiros a um eventual atraso no desenvolvimento de competências linguísticas, dedução que não consigo desassociar da ideia de um “português superior” em contraponto a um “português inferior”.
De onde vem o entendimento de que há Brasil em excesso na infância em Portugal? Do acesso virtual a YouTubers brasileiros, ou da presença crescente de pessoas brasileiras no país? O problema está na língua, ou no convívio quotidiano com os seus falantes, indutor de tiques lusotropicalistas?
Nos últimos dias, vários episódios de xenofobia plantaram em mim esses e outros questionamentos, devolvendo-me a essa notícia sobre o alegado dano do “brasileiro” sobre a fala das crianças portuguesas.
Um dos casos de ‘choque linguístico’ que testemunhei aconteceu numa sala de aula, onde o clima de tensão entre alunos portugueses e brasileiros se revelou tão acirrado quanto normalizado. Inclusivamente junto de professores, que me pareceram mais preparados para validar discursos xenófobos do que para os identificar, condenar e desmontar.
Como se não houvesse da parte de quem acolhe o dever de reflectir sobre o que isso significa na prática. Como se fosse aceitável ouvir alunos defender algo do tipo: “Portugal para os portugueses, e só no português de Camões”. Como se as sociedades não fossem organismos vivos, expostos a novos agentes e permeáveis a transformações.
Sabemos que o são e, diante da crescente presença de alunos brasileiros nas escolas portuguesas, muitos dos quais a chegar em idades já avançadas do seu processo de escolarização, temos o dever de fazer mais e melhor.
Comecemos por reconhecer que as pessoas brasileiras falam uma variante de português, em vez de sugerirmos – e até afirmarmos – que “não sabem falar português”.
Reflictamos sobre a urgência de humanização das nossas políticas, nomeadamente de inclusão. Porque encaminhar alunos brasileiros para aulas de “Português língua não materna” não deveria sequer ser opção. Mas garantem-me que está a acontecer. Num abrir que se revela um fechar de fronteiras.
-Sobre a Paula Cardoso-
Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.