As crises do capitalismo agudizam-se cada vez mais. Ao já grave problema da habitação, soma-se o aumento do custo de vida que torna difícil para uma boa parte da população o balanço entre as contas da renda, da alimentação, da eletricidade, do gás, entre outras. Tudo isto num cenário de crise climática acelerada que piora de ano para ano. A estas crises sociais e climáticas, os governos parecem responder com a mesma lógica: resgatar o lucro, e deixar afogar os pobres enquanto se lhes atiram migalhas.
No contexto da convocatória europeia para sair à rua pela habitação, debrucemos sobre a interligação entre a crise da habitação e a crise climática. Utilizando uma perspetiva de justiça climática, rapidamente compreendemos que a resolução de ambas passa pela mesma lógica: a gestão democrática e coletiva dos bens e serviços essenciais alicerçada numa ótica de serviço público e não do lucro para alguns, uma lógica oposta à das políticas atuais.
Comecemos pela ligação talvez mais óbvia: a pobreza energética. De acordo com um relatório de 2021 da European Anti Poverty Network, a pobreza energética pode ser descrita como a situação em que uma unidade doméstica não consegue aceder a serviços de energia essenciais a um preço acessível de modo a assegurar a energia necessária para uma vida decente em casa e para uma participação ativa na sociedade. A pobreza energética é, assim, um conceito “multidimensional” que pode ser medido através de vários indicadores como a percentagem dos rendimentos gasta nas contas de energia, o preço da eletricidade e do gás, as más condições das casas, um excesso de mortalidade no inverno, entre outras. A pobreza energética é, portanto, o resultado de uma combinação de vários fatores sociais, económicos e climáticos estruturais – e Portugal parece reuni-los a todos. Em termos absolutos, estima-se que este problema afete entre 1,8 a 3 milhões de portugueses, em graus diferentes. De acordo com a União Europeia, em 2021 cerca de 16,4% das unidades domésticas em Portugal não conseguiam manter a casa adequadamente quente.
Mais além das más condições de construção das casas, há que apontar o dedo às alucinantes subidas do preço da eletricidade, que curiosamente (ou não) se sincronizam com os anúncios de lucros recordes de várias empresas. Não é por acaso, e deve-se precisamente ao aumento propositado dos preços para uma maior margem de lucro que permita bloquear a transição justa e encurralar-nos nos seus monopólios de combustíveis fósseis geridos de forma privatizada e centralizada. Isto é, ao insano aumento das rendas em casas não só longe do centro da cidade mas também com condições muitas vezes deploráveis, soma-se o desconforto de ter de passar frio porque empresas como a Galp decidiram aproveitar uma rentável oportunidade de negócio com o estalar do conflito na Ucrânia.
Note-se, no entanto, que este não é de longe só um problema sazonal. A crise climática vai continuar a exacerbar fenómenos extremos, e as cheias de Lisboa foram apenas uma sneak peak do futuro em caos climático onde se afiguram também ondas de calor, temperaturas extremas, entre outras. E, em capitalismo, serão sempre os mais pobres a pagar o preço mais caro. A boa notícia é que, numa perspetiva de justiça climática e controlo público, a campanha Empregos para o Clima afirma que é possível cortar emissões de gases com efeito de estufa em Portugal ao mesmo tempo que melhoramos a qualidade das nossas casas e criamos emprego. De acordo com o relatório de 2021, os edifícios residenciais e comerciais em Portugal perfazem cerca de 7% das emissões totais anuais. Recuperar as casas de forma a melhorar as suas condições e eficiência energética criaria 35 mil novos empregos no setor público e reduziria a necessidade de consumo em 40% até 2030.
Numa medida mais imediata, é urgente o controlo dos preços e a democracia energética. As ocupações estudantis pelo fim aos combustíveis fósseis deste Abril, bem como a ação de resistência civil no porto de Sines organizada pela plataforma Parar o Gás, reivindicam eletricidade 100% renovável e acessível a todas as famílias até 2025. Colocar isto em prática permitiria não só o combate à crise climática, mas também à crise do custo de vida ao tornar a energia acessível a todas. Para além disto, permitiria uma maior soberania energética longe do monopólio destrutivo dos fósseis e abriria caminho para a construção da democracia energética no país, pontuada pela gestão pública e democrática do bem essencial da energia. E não venham dizer que não é possível: às 12h30 do dia 30 de março, o site da REN informava que 94% da produção nacional de eletricidade naquele dia provinha de fontes renováveis. Se não era claro, agora parece óbvio: o lobby dos combustíveis fósseis, em particular do gás, está a bloquear a transição energética e a aumentar os preços em prol do seu lucro.
Precisamos de casas confortáveis e acessíveis para viver para todas as pessoas, numa cidade que nos pertence e que está orientada para o serviço público, o lazer, a cultura, a natureza e a saúde. E, já agora, um planeta também. Lutemos por isso!
-Sobre Matilde Alvim-
Ativista no movimento pela justiça climática desde 2019, quando surgiu o movimento internacional Fridays for Future. Estudante de Antropologia nos tempos livres.