Como sempre, nos dias quentes, levei a minha filha ao parque pelo final da tarde. De repente, um bruaá alvoroçado espantou toda a gente adulta (toda a gente excepto as crianças, que nunca se esquecem das suas prioridades lúdicas). Um bando de adolescentes negros irrompeu em desenfreada correria pelo jardim. Eram dez, eram quinze, eram mais de vinte. Num instante conquistaram o parque. Gritavam e não os entendia. O meu inconsciente racista brotou em toda a sua potência e temi o pior: um assalto, um arrastão, possíveis raptos.
Segundos depois, assustei-me comigo mesmo e aproximei-me. Dirigi-lhes a palavra e então percebi: eram jovens angolanos que estavam em Portugal ao abrigo de um protocolo de cooperação que lhes proporcionava formação técnico-profissional. Cansados de um dia duro, entre paredes e disciplinas, soltavam-se agora na largueza do parque.
Em Angola brincavam na rua, não conheciam parques infantis cheios de equipamentos especialmente concebidos para as crianças. Divertiam-se em cada um deles, misturados já com as brincadeiras das crianças portuguesas, bem mais novas, que os acolheram com espontânea alegria. Depressa fizeram do parque um lugar seu; depressa o transformaram num espaço aberto, amplo, sem grades, como a rua ou a estrada cujas exatas fronteiras se desconhecem. Já não era um parque, contido, murado, interstício nas muralhas da cidade-para-as-crianças. Era o mundo todo naqueles minutos de suspensão. Era um espaço de esperança.
Subiam às árvores com uma agilidade que as crianças portuguesas desconheciam, admiravam e logo tentaram imitar, para desespero de alguns dos familiares presentes. Metamorfoses de pássaros negros numa tarde cálida de início de Verão.
Uma alegria irrequieta, generosa e sem mácula abraçava aqueles adolescentes e as crianças. Uma inocência que os adultos não quiseram ou souberam habitar.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto, Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.