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“A agricultura tem de ser uma ferramenta para mitigação da mudança climática. Não uma das causas”, defende a professora Maria José Roxo

Crítica ao modo como o solo tem sido ocupado e usado em Portugal, a professora catedrática Maria José Roxo realça que este, sendo um “grande reservatório de carbono”, pode contribuir para a mitigação das mudanças climáticas.

Fotografia de no one cares via Unsplash

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Ainda que desempenhe um “grande número” de funções vitais, o solo não tem sido ocupado de forma estratégica em Portugal. O aviso é deixado por Maria José Roxo, geógrafa e professora catedrática da Universidade NOVA de Lisboa, que defende que a agricultura intensiva deveria ser contida e fiscalizada. A, também, investigadora realça que este recurso pode mesmo contribuir para mitigar um dos grandes problemas que a humanidade tem pela frente: as mudanças climáticas.

No que diz respeito às práticas adotadas na agricultura, a especialista em desertificação considera que “foi um erro” os Governos terem eliminado os chamados regentes agrícolas, que aconselhavam os agricultores sobre o que plantar e que novas e melhores ferramentas poderiam usar. E alerta que continuam a predominar monoculturas, que não favorecem a biodiversidade. 

Em entrevista ao Gerador, a professora catedrática debruça-se também sobre a visão que as políticas comunitárias têm assumido em relação ao solo – recurso que tem sido o “parente pobre” das decisões europeias, diz –, sobre o fenómeno da seca em Portugal e sobre o modo como ocupamos as cidades, instigando a uma mudança séria.

Especializou-se na desertificação dos solos. Que importância tem o solo para o equilíbrio de todo o ambiente?

O solo é um recurso natural finito, que é facilmente destruído pelas atividades humanas (construção de infraestruturas, urbanização, agricultura), sendo muito difícil a sua regeneração ou formação. Por essa razão, não é renovável. A sua importância resulta das funções vitais que desempenha para o ambiente e para a sociedade. Pode-se atribuir ao solo um grande número de funções, entre as quais se destaca: fornecer nutrientes para o desenvolvimento das plantas, contribuir para o armazenamento e distribuição da água, ser o habitat de muitos seres vivos. Para os seres humanos, o solo é o suporte das suas atividades, crucial para a agricultura e, consequentemente, para a sua alimentação. Através da matéria orgânica, os solos são grandes reservatórios globais de carbono, que contribuem para a mitigação da mudança climática. 

Fotografia de Herder Lagrosse

Que avaliação faz, então, do uso dos solos que tem sido feito hoje em Portugal?

A ocupação e o uso do solo em Portugal continental não tem tido por base uma visão estratégica para o território, que deveria ter como objetivo potencializar as características geográficas, físicas e humanas de cada região. Um predomínio de monoculturas (culturas intensivas e superintensivas), em que incluo o eucalipto, não favorece a biodiversidade, e põe em causa o futuro, quando se pretende caminhar para um desenvolvimento sustentável. O mesmo se passa com a má gestão da floresta. Continua-se, por exemplo, a assistir à reflorestação das áreas ardidas com as mesmas espécies, havendo ainda outros casos em que a intervenção é mesmo nula.

Mencionou a agricultura intensiva. Nos últimos anos, este tornou-se um tema quente também politicamente. Os agricultores defendem que estas práticas não têm de ser sinónimas de insustentabilidade. Considera que assim é ou, num país com as características de Portugal, a intensidade deveria ser contrariada?

Como em tudo, temos agricultores que fazem agricultura intensiva, tendo por objetivo minimizar os efeitos nocivos [para o ambiente], mas existem muitos outros cuja meta é a maior produção possível, não tendo muito cuidado com a degradação dos recursos naturais como são o solo e a água. Não sou contra a agricultura intensiva, mas não se pode continuar a permitir a sua expansão, por duas razões: temos solos pobres e que facilmente são degradados, e os melhores solos já estão a sofrer processos acentuados de erosão neste momento; os recursos hídricos superficiais e subterrâneos são limitados e dependentes da ocorrência de chuvas, e os últimos anos têm sido pautados por secas sucessivas. Sou defensora de uma contenção da expansão da agricultura intensiva e, igualmente, de uma fiscalização mais eficaz para ver se são cumpridas as normas ambientais.

Não sou contra a agricultura intensiva, mas não se pode continuar a permitir a sua expansão.

Maria José Roxo

Mas tem sido feito o suficiente para contrariar essa intensidade? Ou é uma questão em que as prioridades económicas ainda se põem à frente das prioridades ambientais?

Não tem sido feito o suficiente. É uma verdade que quem dita as mudanças de uso do solo são os mercados e as políticas agrícolas. O que falta, muitas vezes, é uma análise custo-benefício, e nesta deveriam entrar os custos ambientais, em termos de perda de biodiversidade, degradação dos recursos solo e água. É uma equação complexa, mas o que se vê no território faz pensar que algo tem de mudar e começar a ser aplicada uma boa dose de bom senso. A mudança climática e a perda de biodiversidade vão contribuir para que seja necessária a implementação de ações e medidas mais adaptadas à realidade que se está a viver. A frequência de ocorrência de fenómenos climáticos extremos (secas e inundações) vão ajudar a que se encare a mudança climática com outra urgência.

Sobre essa consciencialização, numa entrevista recente dizia que as pessoas que vivem no meio urbano têm vivido um distanciamento em relação à capacidade produtiva da natureza. Que consequências tem esse distanciamento?

Continuo a pensar que há esse distanciamento. Um exemplo concreto é a questão climática. Se chove durante dias consecutivos na cidade é usual começar a ouvir “não deixa de chover” e “que tempo mais horrível”, quando, na realidade, essa chuva é fundamental para o mundo rural e mesmo para as cidades, e muito mais em períodos de seca. A facilidade com que se tem acesso a alimentos numa cidade, o que é bom, resulta, por outro lado, num alheamento em relação às condições de produção ou ao impacto que essa produção tem no ambiente.

Ainda sobre essa relação entre o humano e a natureza, as escolas fazem o suficiente para que haja consciência ambiental desde cedo ou podemos melhorar? De que modo?

Não fazem, apesar de se ter evoluído muito. Falta uma visão de sistema. Não posso falar em água, sem primeiro falar no solo ou de vegetação. Tem de haver uma consciencialização ambiental, baseada numa abordagem sistémica. A natureza é um sistema com peças que têm relações, onde há troca de matéria e energia, e este tende para um equilíbrio que é dinâmico. Um exemplo concreto, investiu-se imenso na reciclagem dos plásticos, com resultados, mas que estão aquém do esperado. O importante teria sido apostar de igual modo na redução. Agora é que se estão a implementar essas medidas, apesar de se saber faz tempo as consequências ambientais.

Todos os anos, a seca tem sido um tema em Portugal. Que lhe parecem as medidas que vão sendo anunciadas? Estamos a colocar “pensos rápidos” no problema?

As secas vão ser um cenário futuro, já identificado, em função da mudança climática. A incerteza da ocorrência de chuvas vai ser cada vez maior. As medidas apontadas são paliativos. São necessárias medidas estruturais, bem pensadas e complementares umas das outras. É necessária uma nova forma de pensar. Apostar no armazenamento da água da chuva, utilizar as águas residuais recicladas, reparar e reconstruir sistemas de distribuição (urbanos e de irrigação), entre muitas outras ações, com base num princípio fundamental: o princípio da precaução.

Os agricultores, por exemplo, têm formação suficiente para fazer o uso mais correto dos solos ou ainda falhamos enquanto país também a esse nível?

Há uma evolução positiva, até porque os jovens agricultores têm outra preparação e as associações e cooperativas têm trabalhado nesse sentido, mas existe muito a fazer. Foi um erro os Governos terem terminado com os regentes agrícolas (extensão rural), que aconselhavam os agricultores a tomar decisões sobre o que plantar nas suas terras, ou a elucidar sobre novas e melhores práticas agrícolas.

Por outro lado, que relevância tem a tecnologia para a resolução desse problema que é a adaptação das práticas agrícolas aos desafios ambientais?

A tecnologia é uma moeda com duas caras. O desenvolvimento tecnológico pode ser fundamental para minimizar os impactos da utilização dos solos agrícolas. Por exemplo, máquinas que fazem sementeira direta, não havendo necessidade de lavrar o solo e diminuindo muito a ação erosiva das gotas da chuva no solo a nu. Mas, ao mesmo tempo, possibilita a existência de maquinaria agrícola muito mais potente, que, embora reduza o tempo de trabalho, tem graves consequências, por exemplo, na degradação dos solos. Contudo, vai haver necessidade de cada vez mais de se evoluir para métodos de base tecnológica, que incorporem o conhecimento científico, com o objetivo de salvaguardar recursos naturais vitais. A agricultura tem de ser uma ferramenta para mitigação da mudança climática, e não uma das causas.

Portugal está suficientemente atento, na sua visão, à desertificação?

A desertificação é um estado de total degradação dos ecossistemas, que conduz à perda de biodiversidade e de produtividade dos solos. A conjugação da mudança climática com a desertificação está a ser considerada como uma das maiores crises que a humanidade terá que enfrentar no futuro. Está em causa a segurança alimentar de milhões de seres humanos no Planeta. Em relação a Portugal, o interesse pelo fenómeno da desertificação tem momentos. Considero que não estamos a dar a atenção que necessita. Espero que com a nova diretiva europeia sobre solos se discuta mais esta questão e se implementem as medidas que constam no Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação.

Falou da nova diretiva europeia. A nível comunitário, estão a ser tomados os caminhos corretos para a proteção dos solos?

A nível europeu, foi cometido um erro crasso. Não houve visão sistémica. Agora surgem uma série de documentos, mas pecam por tardios. As políticas agrícolas também foram muito úteis na defesa da conservação do solo. Lamentavelmente, o recurso solo foi sempre o parente pobre nas políticas europeias. 

Lamentavelmente, o recurso solo foi sempre o parente pobre nas políticas europeias.

Maria José Roxo

Já falamos da seca, mas há ainda outro problema com o qual Portugal se debate amiúde: as cheias. São um sinal de que estamos a errar na gestão dos solos, nomeadamente nas cidades? Porquê?

As cheias/inundações, resultantes de quantitativos elevados de chuva em pouco tempo, tal como as secas, são fenómenos característicos do clima mediterrâneo. No entanto, tem-se assistido a um aumento destes fenómenos, sobretudo por falta de planeamento e ordenamento do território. Considero que a impermeabilização dos solos (urbanização e infraestruturas) e a ocupação indevida das margens dos rios, assim como a desflorestação (incêndios) e o corte sucessivo dos matos contribuem, decisivamente, para a intensificação destes fenómenos.

Mas já disse que um sistema de tubagens em Lisboa seria somente um paliativo para as cheias. Que medidas estruturais deveriam, então, ser tomadas?

Disse e continuo a pensar dessa forma. A ideia seria complementar com a criação de mais áreas verdes, que tenham o efeito de esponja, renaturalizar os setores montantes de cursos de água, armazenar a maior quantidade de água em bacias de retenção, podendo estes locais ser utilizados, por exemplo, para lazer.

Estamos no verão, e o calor torna-se, em vários momentos, um problema para o país. Os cientistas perspetivam que as próximas décadas serão marcadas por ondas de calor mais intensas, sobretudo nas cidades. Estamos a fazer esforços suficientes para nos adaptarmos às mudanças climáticas e aos extremos que aí vêm?

Não estamos. É preciso mudar a forma como se habita e se vive nas cidades. É urgente mais áreas verdes para amenizar as temperaturas e permitir maior infiltração da água da chuva. Menos edifícios com fachadas em que predomina o vidro, menos poluição atmosférica, entre muitas outras ações e medidas. Crucial: mudar mentalidades. A palavra-chave é reduzir, nomeadamente os consumos de água, energia e bens supérfluos. Sobretudo, educar para uma existência com base na adaptação e no respeito pela natureza.

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