Muito se tem dito, a propósito de recentes e infames casos, sobre as insidiosas formas pelas quais, em contexto académico (ensino e investigação), se propagam práticas de abuso, em geral cumulativo (físico e psicológico; “material” e simbólico, pessoal e institucional). Todavia, talvez não se tenha refletido o suficiente sobre as condições epistemológicas (de produção, disseminação e recepção do conhecimento) que lhes subjazem e que se desenvolvem em situações sociais concretas (Universidades, laboratórios, centros de pesquisa).
Desde logo, sobre a fabricação e imposição de monoculturas paradigmáticas: aquelas que só indicam um caminho para resolução do puzzle científico e que socializam intensa e abusivamente os investigadores (em particular os mais desmunidos em capital científico) através de práticas ritualizadas de produção de crença nas verdades salvíficas da liturgia teórica. Não se devem citar autores dissonantes, ler livros arquivados no index ou explorar vias que testem a validade das profecias anunciadas. Neste modelo, só há ciência pela repetição e pela mimetização, sempre inferior e aquém, do brilhantismo do chefe. Há quem lhe chame “fazer escola” ou “fazer corpo”. Prefiro chamar-lhe, já o disse, monocultura ou cultura intensiva de uma só espécie.
Nada tenho contra as afinidades intelectuais, nem contra a aproximação de pessoas que comungam conceitos e modos de pesquisar, desde que isso aconteça num ambiente onde a partilha é estimulada e a dissensão admitida. Se, pelo contrário, a aprendizagem intensiva e verticalizada se transforma numa espécie de projeto socializador total, sem distinção entre o pessoal e o institucional, o público e o privado, a profissão e a intimidade (para aumentar a produtividade da crença, cultivada em todos os contextos e momentos possíveis, sem pousio), cria-se o húmus pútrido da sincronização abusiva, tornada rotina, espécie de mecanismo de tipo semiconsciente que se aplica em todas as decisões e procedimentos, como algo adquirido e quase automático (é também assim que se produz o “consentimento”, por falta ou adormecimento de disposições reflexivas).
Portanto, a ciência lida mal com os capo regimes. Ela deve ser acumulada, trabalhada, coletivamente construída, mas sempre sob a batuta da dúvida e do questionamento colaborativos. Uma verdade, em ciência, não é uma opinião, porque tem bases num método calcorreado por múltiplos agentes e processos, mas também não é um absoluto. É um erro à espera de vez, para citar de memória Virgílio Ferreira, uma razão polémica, para referir agora Bachelard.
A dominação carismática é nociva à ciência. Não induz a crítica à autoridade. Ritualiza-se para não incomodar. Conforma-se antecipadamente. Distribui benesses e recompensas pelos apaniguados e fabrica “inimigos externos” para se consolidar. Alimenta-se da contradição performativa: digo-te como deves ser progressista e emancipado se, e só se, me obedeceres. Exige fusão, adesão imediata, economia de argumentos. Ou se está com o capo ou contra ele. Ou se ama, ou se odeia. Ou se incarna, ou se expulsa.
É por isso que é preciso praticar ciência com quem nos antecede, mas também contra e para além. Ciência é movimento perpétuo, não um chorrilho de slogans ou palavras-chave encantatoriamente suspensas da mestria do chefe, que revela aos obedientes iniciados, depois de expurgado do dissenso, as ligações certas e as chaves interpretativas.
É tão estúpida essa dominação, tão condenada ao esquecimento…Ao invés, que melhor homenagem se pode fazer a um grande cientista, senão agradecer-lhe por ter sido incompleto e imperfeito, seguindo-lhe os passos para prolongá-lo criticamente ou refutá-lo a partir das brechas e das pistas que ele próprio insinuou? Fazer ciência é (re)começar modestamente de alicerces antigos para edificar uma casa nova, que sempre se desmonta e reergue – em conjunto.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto, Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.