Iniciado na década de 1980, a construção e implementação do princípio da paridade tem sido um percurso “muito longo” que “ainda não terminou”, frisa Ana Coucello. Em entrevista à Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres (PpDM), a ativista, que tem sido uma das principais impulsionadoras da luta pela democracia paritária, rotulou a Lei da Paridade, aprovada em 2006, como um primeiro passo “muito débil” e “muito tímido” em direção à paridade de género na política portuguesa.
A antiga presidente da direção da PpDM destaca mesmo a necessidade de incluir o princípio da paridade na Constituição da República. Apesar de reconhecer que a lei constitucional portuguesa estabelece a promoção da igualdade entre mulheres e homens como uma tarefa fundamental do Estado, Ana Coucello acredita não ser suficiente. “Temos de introduzir na Constituição da República o princípio da paridade, sem o qual não há democracia. Uma democracia em que as mulheres não estão [representadas] é uma democracia pobre. E, além de ser uma democracia pobre, é um atentado à dignidade humana das mulheres.”
Nesse sentido, é com preocupação que olha para a diminuição do número de mulheres eleitas deputadas para a Assembleia da República (AR) nas últimas eleições legislativas. Nas eleições de 10 de março foram eleitas 76 mulheres, número que representa uma diminuição de nove deputadas face à composição da AR saída do ato eleitoral anterior. “É gravíssimo por inúmeras razões: é uma questão de direitos, [e] é uma questão de justiça. Isto quer dizer que a garantia dos direitos políticos para os homens é muito mais forte do que a garantia dos direitos políticos para as mulheres.”
Ao mesmo tempo, a ativista destaca a influência desta descida na qualidade das decisões políticas tomadas. “Quando apenas uma parte da comunidade — menos de metade da comunidade — tem uma voz preponderante ao nível da decisão, esta não tem qualidade, ou raramente consegue atingir a qualidade necessária.”
Apesar dos progressos registados ao nível da democracia paritária nas últimas décadas, Ana Coucello frisa ainda que nenhuma conquista está garantida. “Há tentativas de voltar atrás, nada está garantido para ninguém. Nós vemos isso hoje com a volatilidade do mundo atual. Tudo isso é extremamente desgastante: acho que é preciso uma força redobrada para manter viva a chama desta luta.”
A ativista lamenta que os partidos políticos não invistam em campanhas para promover a participação política das mulheres. “Nos 50 anos de democracia nunca houve nenhum partido que tivesse promovido qualquer tipo de ação para chamar as mulheres. Fizeram campanhas para a juventude e criaram as juventudes partidárias […], mas nunca houve uma campanha para promover a participação política das mulheres.”
Ana Coucello foi a mais recente convidada do projeto De Viva Voz III, promovido pela PpDM, em parceria com a Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, o Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta e o Centro Filosofia e Género da Sociedade Portuguesa de Filosofia.
A origem do conceito “paridade” e as suas múltiplas “resistências”
O conceito era novo no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 do século passado. Tudo começou no Conselho da Europa: a cidadã francesa, Claudette Apprill, então secretária do antigo Comité Consultivo para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens, terá sido a criadora do conceito. Segundo Ana Coucello, foi numa conversa com a feminista portuguesa, Regina Tavares da Silva, que presidia nessa altura o comité, que o conceito foi mencionado pela primeira vez.
“Numa conversa entre as duas, a Claudette Apprill disse que estava sempre a pensar na questão da igualdade, e no facto de algumas mulheres não gostarem do conceito, porque parecia que queriam ser iguais aos homens. E, obviamente, o modelo masculino é um modelo ultrapassado, as mulheres não têm nada que ver com esse modelo, querem ser elas próprias a decidir o modelo que lhes interessa. E ela tinha pensado: por que não o conceito de paridade?”, conta.
A ativista explica que, desde então, feministas como Regina Tavares da Silva começaram a desafiar as organizações não-governamentais a assumirem o conceito como um conceito válido para a luta pela igualdade. Mas as “resistências” foram múltiplas: desde um “discurso paternalista, que era muito comum, [e] ao qual algumas mulheres sucumbiam” até à “grande oposição, muitas vezes mascarada, outras vezes não”, o caminho até ao reconhecimento do conceito encontrou múltiplos obstáculos. “Há uma resistência que parte, naturalmente, dos responsáveis políticos, que são homens — a esmagadora maioria — e que, obviamente, sabem que para uma mulher exercer o poder é preciso que haja um homem que saia desse lugar de poder.”
Ainda assim, com o tempo, a paridade deixou de ser “uma coisa esdrúxula e estranha”, e passou a fazer parte do léxico quando se fala sobre questões relacionadas com igualdade. De acordo com Ana Coucello, organizações como a Aliança para a Democracia Paritária, que cofundou em 1993, e iniciativas como o primeiro encontro nacional de mulheres autarcas, no mesmo ano, e o Parlamento Paritário, em 1994, contribuíram para a disseminação e vulgarização do termo.
“Reuni umas centenas de mulheres com responsabilidades autárquicas, em Lisboa, depois de um trabalho terrível para as encontrar. Ninguém tinha dados do sexo das eleitas locais. Julgo que não chegámos a ter o número exato e a identificar todas as mulheres nas autarquias, mas foi um trabalho que demonstrou até que ponto as mulheres são invisíveis”, recorda.
A entrevista a Ana Coucello, no âmbito do projeto De Viva Voz III, foi publicada no dia 13 de agosto no site da PpDM. Entre os objetivos, as criadoras destacam a intenção de “ouvir as mulheres que investigam, falam e atuam em prol dos direitos humanos das mulheres […] sobre os atuais problemas que afetam as mulheres, e os novos e velhos obstáculos à sua igualdade social face aos homens (…).”
O projeto dá continuidade às edições De Viva Voz I e II: por uma ação feminista transformadora e decorre até junho de 2025.