Como assim? A Chimamanda vem a Portugal? Quando? Fazer o quê?
Num entra e sai de mensagens de WhatsApp, apercebo-me, tardiamente, da vinda de Chimamanda Ngozi Adichie a Lisboa.
“Vai estar na FLAD no dia 14 de Maio, às 18h30, para uma conversa com os leitores e a jornalista do Público Isabel Lucas”.
Confirmo a notícia a partir dessa mensagem, publicada nas redes sociais da Fundação Luso-Americana - Para o Desenvolvimento – ou simplesmente FLAD –, mas continuo incrédula.
Como assim? A Chimamanda vem a Portugal, e, tendo em conta a sua identidade, obra e pensamento, ninguém achou importante envolver, na programação, mulheres negras e/ou colectivos negros?
“Um dos grandes objectivos desta iniciativa é permitir o contacto e a conversa entre o público e os autores, pelo que no final de cada sessão todas as intervenções/perguntas são bem-vindas”, contorciona a FLAD, revelando uma confrangedora incapacidade de compreender a crítica de embranquecimento do programa que lhe foi dirigida.
“As instituições continuam a repetir as mesmas falhas”, lamenta Melissa Rodrigues, programadora de Discurso no TBA – Teatro do Bairro Alto em Lisboa, secundando um comentário publicado pela artista e poeta Gisela Casimiro, que passo a reproduzir: “Fico muito contente com a vinda de Adichie, mas gostaria que também estivesse à conversa com pessoas negras que não apenas as do público”.
Tanto Melissa como Gisela, mulheres, negras, feministas, e tanto mais, poderiam ser as anfitriãs da conversa com Chimamanda, possibilidade que a FLAD não revela, contudo, qualquer abertura para acolher.
Pelo contrário, a Fundação explica que a autora do best-seller “Americanah” viajará a seu convite, no âmbito da iniciativa “Meet the Author”, formato iniciado em 2022, e que conta, desde o primeiro momento, com Isabel Lucas na condução.
Os anfitriões do costume
Bem lidas as coisas, é caso para escrever que a FLAD parou no tempo.
Felizmente não foi na época do tráfico transatlântico de seres humanos, “engenho” português que condenou pessoas negras à desumanização, explorando-as como se fossem mercadorias.
Infelizmente, também não foi em 2022 que a FLAD parou: embora tenha sido esse o ano de estreia do “Meet the Author”, as lutas pela igualdade racial são muito anteriores a essa data.
Aliás, bastaria conhecer um pouco do pensamento e da obra de Chimamanda para perceber que a sua assinatura é indissociável desse combate.
Na realidade, talvez esteja aí o problema: apesar dos estrondosos alertas da escritora nigeriana sobre “O perigo da História única”, a FLAD não consegue sair do ‘guião do humano universal’. Que é como quem diz, aquele em que se diz que todas as histórias importam, mas no qual só se reconhece a algumas pessoas – por norma, brancas – o direito de as contar e escrever.
Não nos iludamos: Chimamanda está no palco porque se tornou um fenómeno incontornável, Isabel Lucas porque tem acessos que, em 2025 – e com todos os méritos que lhe possam ser atribuídos –, continuam reservados aos anfitriões de sempre.
É também sobre isso que nos fala a escritora nigeriana, nos livros, palestras, e incontáveis presenças online. Numa entrevista de 2022, por exemplo, durante uma viagem ao Brasil, Chimamanda partilhou o seu choque racial: “Lembro-me de ter ficado impressionada com a ausência de pessoas negras. Então perguntei ao meu redor: ‘Onde estão os negros?’”.
Talvez a pergunta se volte a impor em breve, com a vinda a Portugal, e devolva a mesma certeza evidenciada no Brasil. “Acho que isso é algo que deveria mudar, porque se vivemos numa democracia, a ideia de democracia é que todos devem ser representados”. Sempre, e em todos os lugares.