Durante os dias 4 a 9 de agosto a aldeia de Valezim, em Seia, foi palco do Ocupar a Velga! Esta que foi a quarta edição do festival promovido pela Produção d'Fusão propunha-se a explorar e a “criar perspetivas”, num espaço habitado pelo “silêncio da mudança”.
O cartaz incluiu artes performativas, documentários, música, sessões de leitura e oficinas artísticas, ambientais e de combate à desinformação, numa proposta diversificada, desenhada para estimular o pensamento e a reflexão.
O GERADOR esteve no festival, e falou com os fundadores, Patrícia Soares e Filipe Metelo, sobre ideias do passado e ambições de futuro para a arte no interior.


-Como teve origem esta iniciativa? E porquê fazê-la em Valezim?
Patrícia Soares - Eu e o Felipe começámos a trabalhar juntos e criamos a Produção d'Fusão, que é uma associação cultural que trabalha com artistas. Quisemos, de alguma forma, criar esta associação num espaço ou num território onde a fruição cultural não estivesse tão trabalhada. Na verdade, estávamos na dúvida entre o Algarve e esta região. Eu sou natural do Algarve, e ele [Filipe] é desta região e acabámos por vir aqui parar.
Filipe Metelo - Sim. Nós trabalhamos também como produtores, com outros artistas, e várias vezes deparávamo-nos com salas com muito pouco público, independentemente da qualidade do espetáculo. E começámos a pensar o que é que nós podíamos fazer para contribuir para essa necessidade de mostrar às pessoas que as artes também são para elas. É uma coisa que nós sentimos: que há muita gente que, sem saber e sem querer, assume só que as artes não são para elas, que “aquilo não é para mim”, “a produção cultural não é para mim”. E portanto, o [festival] Ocupar a Velga! vem um bocadinho dessa ideia, de tentar fazer alguma coisa para mostrar às pessoas que sim, [a cultura] é para elas, que sim, também lhes interessa, que há coisas que não gostam mas depois começam a perceber o que é que gostam.
Depois [surge também] dessa vontade de ocupar um território. Eu sou daqui, nós trabalhamos aqui, a Patrícia passa cá muito tempo também e nós gostamos muito desta ideia de ocupar um território, de estar onde as pessoas estão.
-Quando falam dessa ideia, de que as pessoas acham que a arte não é para elas, é no sentido que a consideram elitista?
Filipe Metelo - Eu não sei se é bem a ideia que é elitista ou se é mais… como dizer…pura ingenuidade.
-Mas há uma ideia de auto-exclusão.
Filipe Metelo - Há uma ideia de auto-exclusão e uma meia preguiça latente, também.
Patrícia Soares -Sim, acho que é uma não integração nas rotinas diárias, uma não priorização e uma não consciência da importância [que a cultura tem]. E muitas vezes o que nós sentíamos, enquanto produtores que iam fazer espetáculos numa série de cidades por esse país fora, é que, realmente, as pessoas não se relacionam [com isto], não sentem a necessidade daquilo pertencer à sua vida. Então acho que esta é nossa tentativa: democratizar através da colocação dos objetos artísticos na rua, no espaço público, quase como se fosse um embate impossível de contornar. [A ideia é] as pessoas encontrarem propostas artísticas e acabarem por perceber se gostam ou se não gostam.
-No fundo é levar a arte às pessoas e não as pessoas aos espaços, certo?
Filipe Metelo - Exatamente. Até porque nós temos verificado que elas efetivamente se interessam e hoje [5 de agosto, segundo dia do festival] a sessão de combate à desinformação foi a prova disso, não é? Há um genuíno interesse e há genuína vontade. E às vezes este afastamento que se cria dos centros culturais - que também é físico mas não só -, é esta falta de rotinas, esta falta de criar conexões. E é um trabalho que nós tentamos fazer.
Obviamente, quando se coloca uma coisa destas numa aldeia pequena, uma parte da aldeia já está desperta pelo puro interesse e orgulho, não é? Mas há depois o outro trabalho de continuar a captar essa curiosidade, de manter uma linha estratégica que os faça pensar, porque os problemas da aldeia não são os mesmos da cidade. Os problemas de Portugal, enquanto nação, são diferentes dos problemas locais e portanto é um bocadinho nesse sentido [que trabalhamos].


-Qual tem sido essa linha estratégica para vocês, neste território em concreto?
Patrícia Soares - Eu acho que, no início, nós tentamos trazer propostas que, de alguma forma, fossem despertando um certo sentido de estranheza, mas com algum… eu não quero dizer cuidado, mas ao mesmo tempo com…
Filipe Metelo - …Sim…[eram propostas] que tocavam linhas e pontos que, para nós, eram importantes, quer sobre diversidade, quer sobre ambiente…Ou seja, eram temas que nós queríamos passar sem haver esta ideia muito massuda de “aqui está”.
Então [a ideia passa por] procurar os temas que nos interessam, aliados a propostas artísticas que, primeiro, possam encaixar em rua - porque nem todos têm essa possibilidade e alguns formatos são muito técnicos e portanto precisam de uma sala de espetáculos -, mas também fazer um bocadinho essa ponte para que, por exemplo, uma oficina de desinformação, como é o caso desta, que se calhar é algo que não está no dia-a-dia de toda a comunidade, mas está no dia a dia de parte da comunidade constantemente.
É uma comunidade que vive muito nas redes sociais, que está objetivamente muito vulnerável a essa quantidade de desinformação, mesmo que os problemas da origem da desinformação não tenham nada a ver com os problemas que são da comunidade. Por exemplo: a imigração, que é o foco de debate nas grandes cidades, não é um problema nas aldeias, onde ela é necessária e inexistente, mas é um assunto que gera desinformação e conversa de café mesmo que esse problema não as afete. Ou seja, nós tentamos cruzar isso com outros momentos que podem ser mais...eu não diria de entretenimento, mas mais...
Patrícia Soares -Lúdicos.
Filipe Metelo -Lúdicos. E que possam chegar a mais pessoas.
-Sendo esta a quarta edição, já notam alguma diferença no que respeita à participação da população nas atividades do programa?
Patrícia Soares -Sim, e eu acho que em diferentes aspectos porque, como o Felipe estava a dizer, quando nós fizemos a primeira edição, houve toda uma excitação, [gerada] à volta de uma curiosidade latente e uma disponibilidade. Ao mesmo tempo [havia] uma energia que não se sabia muito bem como é que se unia àquilo que nós estávamos a propor e é uma energia de alguém que, se calhar, não vai ver espetáculos. Ao longo das edições, sentimos que houve um acalmar nessa curiosidade. Continuamos a ser bem-vindos, as pessoas continuam a ouvir e a querer...
Filipe Metelo - Mas já vêm ao que lhes interessa, não é? Já vêm menos por curiosidade e mais porque querem ver algo.
Patrícia Soares - Sim. E ao mesmo tempo, vêm com um comportamento muito mais atento. Porque como, de alguma forma, já fizeram uma seleção daquilo que estão a propor-se a ir ver, já estão mais disponíveis, depois, para efetivamente estar, desfrutar, reter e questionar.
-Quais são os desafios específicos que enfrentam para fazer um evento deste tipo aqui, em Valezim?
Filipe Metelo - Desafios logísticos são imensos. Primeiro, porque organizamos uma coisa no verão, que é substancialmente pequena quando comparada com os [grandes] festivais de verão, que levam muita técnica, muito material. E depois, o facto de estarmos numa aldeia pequena faz com que facilmente esgotemos toda a capacidade de alojamento. Por outro lado, isso tem aberto portas para começar a estender braços às aldeias vizinhas, a trazer pessoas das aldeias vizinhas. Eu diria que os [problemas] logísticos passam muito por aí.
Às vezes é difícil encontrar propostas daquilo que nós queremos e gostamos muito, mas que possam encaixar na rua, porque essa adaptação fica-nos muito cara e, portanto, torna-se incomportável. Esse também é um jogo de programação que vamos fazendo. Depois trabalhamos muito ativamente com os nossos parceiros, com quem nos apoia, fazemos por passar toda a informação da forma mais transparente possível, para que eles que confiem em nós também.
Patrícia Soares - Eu acho que é interessante dizer que, financeiramente, o projeto nasceu numa altura pós-Covid-19, em que houve o [programa governamental] Garantir Cultura. Ou seja, foi uma proposta que pôde nascer testando-se ela própria, porque aquele programa do governo deu oportunidades, sem haver necessidade de ter parceiros, de ter as ideias muito bem desenvolvidas… Com todas as questões que isso possa levantar, a verdade é que existiram vários projetos - entre eles o Ocupar a Velga! - que nasceram de um teste, de uma oportunidade que foi importantíssima. Isto porque na primeira edição, estivemos a apalpar terreno, a tentar fazer e perceber o que é que fazia sentido. Isso permitiu partir para uma segunda edição já com um sentido muito mais claro [do que queríamos fazer], e angariar novos apoios que, felizmente, desde essa segunda edição, têm sempre sido mais fortalecidos, tanto a nível local - como a junta de freguesia, a Câmara [Municipal de Seia]-, mas também a nível nacional, da Direção-Geral das Artes, da Fundação La Caixa, ou seja, este tipo de evento, podia ter sido de outra forma, mas existiu com esta possibilidade, de fazer este teste, que de alguma forma tornou mais fácil dizer “olha, já fizemos [isto antes]”.


-Há mais objetivos que gostariam de ver concretizados e ainda não vos foi possível fazê-lo?
Filipe Metelo - [risos] Não sei se lhe chamaria objetivos, mas ainda temos muitos sonhos pela frente. Temos muitos projetos que queremos trazer, disciplinas que queremos trazer, mas por questões de segurança, ou por questões de tamanho, ou por várias questões que surgem sempre, ainda não foi possível. Temos a ambição de conseguir que o festival feche a aldeia [ao trânsito], algo que ainda não acontece.
Patrícia Soares - Sim, e de alguma forma, que o festival seja mesmo uma referência que motive as pessoas a vir a Valezim porque há o Ocupar a Velga!, mas acho que são sonhos com os seus tempos de crescimento e de alcance. Um dos sonhos que nós temos, na verdade, é que o Ocupar a Velga! não fique restrito a este período. Claro que isto é um festival, tem um período muito concreto…
Filipe Metelo - Mas que crie uma cadência, na própria comunidade, de vontade…
Patrícia Soares - …de relação com outros eventos, promovidos por nós, ou não. Não precisa de ser necessariamente só na nossa perspectiva. Mas realmente haja uma criação de relação com a cultura, com a arte, com o pensamento que se estenda ao longo do ano. E que também, por outro lado, que artistas, o setor cultural, possa perceber que há uma aqui aldeia que está...


Filipe Metelo - Que há várias, na verdade, porque este não é caso único.
Mas mesmo o que hoje está aqui a acontecer: há 20 crianças aqui na rua, a jogar às escondidas. Portanto, estão a ocupar metade das ruas da aldeia a jogar às escondidas.
-Algo que não é comum.
Filipe Metelo - Não é comum. Esta ideia da ocupação do espaço público, que nós não reivindicamos, mas reivindicamos - obviamente, sempre com respeito mútuo. Mas que é ótimo é ver a aldeia e as ruas com vida, em vez de estarem cheias de trânsito, mas sem ninguém.