“Fiquem em silêncio por alguns momentos…
Imaginem que amanhã um grupo ignorante e analfabeto entra no vosso escritório - onde tinham criado uma voz para as mulheres, uma rádio que espalha esperança - e o incendeia. Imaginem que [esse grupo] assassina impiedosamente os vossos colegas.
Amanhã, a vossa filha, que acabou de concluir o sexto ano, depara-se com as portas fechadas da escola. Alguém se coloca à sua frente e diz: Não tens o direito de ir à escola ou à universidade. Amanhã, ordenam-vos que não vão ao parque, nem sequer saiam de casa sozinhas. Dizem: Não tens o direito de escolher um cônjuge.
Apenas por seres mulher, nenhuma operadora de telecomunicações te venderá um cartão SIM, nenhuma editora permitirá que publiques os teus livros e a tua fotografia nem sequer será registada na tua certidão de nascimento.
Ali, se ergueres a tua voz, serás silenciada com prisão, com tortura, com violação.
A tua família permanecerá sem saber do teu destino, e o mundo apenas ficará a assistir.”
Nada disto é pura imaginação. Nasira viveu este cenário distópico, quando os Taliban assumiram o poder no Afeganistão, em 2021. Este relato, feito na primeira pessoa, ilustra a repressão e violência a que ela e a sua família foram sujeitas após os fundamentalistas islâmicos regressarem ao poder.
Jornalista, radialista e ativista pelos direitos humanos, Nasira viu-se impedida de continuar a exercer a sua profissão, a sua cidadania e a sua vida. Para escapar ao regime Taliban, fugiu para o Irão onde se encontra ainda hoje, sem documentação válida e com comunicações condicionadas. Corre o risco de ser deportada a qualquer momento, para um país onde as mulheres não têm direito sequer de falar em público e por isso pede desesperadamente o apoio de Portugal.
“Precisamos de apoio. Apelo ao governo português, aos ativistas dos direitos humanos, à sociedade civil e às mulheres influentes deste país para que prestem atenção à situação das mulheres afegãs e estejam ao nosso lado”, exclama. “Hoje, este apoio não é apenas um pedido, é uma necessidade para a sobrevivência, para a justiça, para a igualdade e para a proteção da dignidade humana.”
Mas afinal quem é Nasira? Qual a sua história e percurso? E por que razão procura apoio de Portugal?
A história de Nasira
“Sou Nasira [...], tenho 32 anos e venho de uma família tradicional Hazara (povo originário da zona central do Afeganistão)”, diz em entrevista ao Gerador. Embora nos tenha indicado o seu apelido, pediu que fosse mantido em segredo, para sua segurança. Prossegue: “Depois de terminar a escola, entrei na Universidade de Balkh. Enquanto prosseguia os meus estudos, comecei o meu primeiro trabalho como professora de alfabetização para mulheres idosas numa escola chamada Anafi, num programa apoiado pelo governo alemão”.
Após cerca de um ano a trabalhar na administração da Universidade de Balkh, concretizou o seu sonho e passou a integrar a equipa da Rádio Rabia Balkhi. Fundada em 2003, foi “a primeira estação de rádio feminina no norte do Afeganistão, um espaço seguro e inspirador onde as mulheres podiam expressar-se e desenvolver os seus talentos”, relata orgulhosa.
Na rádio fez um pouco de tudo: foi locutora, técnica, apresentadora de notícias, repórter e até diretora interina, a dada altura. Já nessa época enfrentava bastantes dificuldades para exercer a sua profissão. Era alvo de ameaças e críticas que surgiam em resultado do contexto “tradicional e conservador” da sociedade afegã, mas nada disso a fez desistir. “Nunca permiti que os olhares negativos ou as ameaças me desmotivassem.
Mesmo sendo duro e, por vezes, sentindo ansiedade, mantive-me firme e segui em frente”, assegura.
O terror Taliban
A 15 de agosto de 2021 a repressão e o terror regressaram ao Afeganistão. Com a retirada das tropas norte-americanas e da NATO do território, as forças Taliban levaram a cabo uma ofensiva e assumiram o poder. A violência e a repressão varreram o território.
“A Rádio Rabia Balkhi foi incendiada. Um dos meus colegas foi morto numa explosão, provocada por uma bomba no carro”, relata Nasira. “Nestes últimos quatro anos, cada momento foi um pesadelo: medo, tristeza, fuga, perseguição, preconceito, o risco de deportação forçada, desemprego, situação de sem-abrigo, falta de documentação legal, insegurança, ausência de liberdade, nenhum cartão SIM [para fazer chamadas] ou cartão bancário. Passei por tudo isto e ainda estou a passar.”
Nasira e a sua família conseguiram passar a fronteira e refugiar-se no Irão. “A minha mãe, os meus dois irmãos, a esposa de um deles, o seu filho pequeno, a minha avó e eu. Todos fugimos.” Foi-lhes concedido um visto de apenas três meses, que expirou há muito.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) cerca de 4,5 milhões de afegãos residem no Irão, embora outras organizações considerem que o número pode ser superior. A maioria procura segurança e emprego, mas enfrenta discriminação, rusgas policiais e repressão.
Nasira relata isso mesmo: “o Irão partilha uma fronteira com o Afeganistão, partilha a mesma língua e religião, mas hoje não me quer aqui”, explica a jornalista afegã. “As ruas e becos da cidade [onde vivo] estão repletas de polícias à nossa espera. A polícia está no metro, nos autocarros e nas estradas a tentar prender-nos. Ordenaram aos proprietários das casas para não nos arrendarem os espaços, caso contrário serão severamente multados. Procurámos por todo o lado por uma nova casa mas, onde quer que vamos, eles perguntam pela documentação [que não temos].”
O irmão de Nasira, a esposa e dois filhos foram deportados à força e vivem agora “numa das cidades mais inseguras do Afeganistão, escondidos e a lutar para sobreviver”, segundo relata. “Eu continuo aqui, com o meu irmão mais novo e a minha mãe doente, uma mulher exausta por anos de sofrimento. Uma das suas pernas está partida; a outra está deslocada. Há quase cinquenta dias que está confinada à cama, sem conseguir mover-se.”
Por agora, mantêm-se numa casa cujo contrato de arrendamento caducou. O senhorio permitiu que ali continuassem a residir durante algum tempo, mas a qualquer altura podem ser expulsos, sem qualquer alternativa. A polícia iraniana começou, também, a fazer rusgas nas habitações, para identificar situações de permanência ilegal no país. Nasira vive com medo que a sua casa seja a próxima da lista.
“Estou completamente enclausurada em casa. Quando saio, se uma pessoa desconhecida se aproxima de mim, o meu corpo inteiro congela, com medo de que seja a polícia. Tento até falar iraniano por um momento para não ser reconhecida, mas é evidente pelo meu rosto que sou uma Hazara afegã”, relata.
“Procurámos refúgio num país que não nos queria, e desde esse dia até hoje, as nossas vidas ficaram suspensas.”
Portugal: a luz ao fundo do túnel
Desesperada e sem alternativas, Nasira pede ajuda a Portugal, para sair da situação de deportação iminente em que se encontra. “A razão mais fundamental para o meu pedido de asilo em Portugal é alcançar segurança e liberdade face à ameaça e à violência do grupo Taliban. Os Taliban não toleram a liberdade de expressão e têm recorrido a diversos métodos - incluindo assassinatos, detenções, violações e imposição de restrições sociais e culturais - para impedir a presença e o progresso das mulheres na sociedade afegã”, explica ao Gerador.
“Apelo ao governo português, aos ativistas dos direitos humanos, à sociedade civil e às mulheres influentes deste país que prestem atenção à situação das mulheres afegãs e estejam ao nosso lado. Hoje, este apoio não é apenas um pedido; é uma necessidade para a sobrevivência, para a justiça, para a igualdade e para a proteção da dignidade humana.”
Sensível à urgência deste pedido, Marta Crawford colocou mãos à obra para ajudar. Desde 2021 que a sexóloga e ativista pelos direitos das mulheres criou uma rede informal de ajuda, com voluntários na Alemanha, Espanha, Austrália e Reino Unido, para apoiar as mulheres afegãs vítimas dos talibã a escapar à opressão, e trazer tantas quanto possível para a Europa. “Não consegui ficar indiferente ao que estava a acontecer”, explica ao Gerador.
A rede foi bem-sucedida por diversas vezes, conseguindo ajudar muitas mulheres e suas famílias. Sabendo disto, Nasira pediu ajuda a Marta Crawford, que imediatamente contactou as entidades competentes para dar início ao processo: Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), embaixadas, AIMA.
O JRS - Serviço Jesuíta aos Refugiados, comprometeu-se a gerir o acolhimento e integração de Nasira em Portugal, requisito necessário para que a AIMA dê início ao processo. “A coordenação formal e legal é feita pela AIMA, mas será o JRS quem acolherá e acompanhará a família quando chegar a Portugal, e o plano prevê 12 meses de acompanhamento completo, garantindo: alojamento seguro e digno para a família; ensino da língua portuguesa e acompanhamento educativo; apoio psicossocial e psicológico para lidar com o trauma; formação profissional e integração no mercado de trabalho; apoio contínuo até a família atingir autonomia e estabilidade”, afirma Marta Crawford.
“A equipa está pronta. O que falta são os recursos financeiros. Sem recursos financeiros, o JRS não se pode comprometer com a AIMA e, por sua vez, a AIMA não avança com processo para o MNE, que é responsável por emitir os vistos através da embaixada em Teerão”, diz Marta. É, assim, necessária uma verba de 100 mil euros, antes de tudo o resto.
Na plataforma GoFundMe, Marta Crawford lançou uma campanha de crowdfunding para tentar financiar todo o processo. Até agora, a campanha conta com menos de 20 mil euros angariados. Apesar de a plataforma sinalizar que o objetivo está cumprido a 80%, a verdade é que, por ser um valor grande, o objetivo final é “partido” em metas intermédias, para que os apoiantes não desistam de ajudar. Assim, o objetivo final, de 100 mil euros, é ainda um horizonte longínquo. “Encontramo-nos num impasse e por isso esta campanha quer mobilizar a sociedade civil para que possamos salvar esta família”, explica Marta, na página do crowdfunding. A história da Nasira é a história de todas as mulheres que ousaram falar quando o mundo queria que se calassem. Salvá-la é salvar uma voz que os Talibãs tentaram silenciar. É dar-lhe a oportunidade de viver, de criar e de contribuir para Portugal com o seu talento e coragem.”
Assim, a ativista faz agora o apelo para que sociedade civil se mobilize e ajude Nasira, uma de tantas mulheres afegãs a quem a existência foi negada em prol do extremismo religioso e patriarcal.
Também Nasira faz o apelo: “as mulheres afegãs, com esperanças vacilantes, continuam à procura de uma luz que não se apague na escuridão dos Talibãs. Em nome da humanidade e com respeito por todas as leis internacionais, pedimos ao povo e ao governo de Portugal que nos apoiem, para que as vozes das mulheres silenciadas do Afeganistão possam voltar a ser ouvidas e a esperança de viver permaneça viva nos seus corações”.
A campanha Urgente! Ajudem a salvar Nasira e a Sua Família dos Talibãs está ativa neste link, através do qual pode contribuir para esta causa.