Quando marcámos encontro com o Dario Oliveira, diretor do Porto/Post/Doc, o Rivoli já se preparava e começava a contagem decrescente para a abertura do festival do cinema do real. Com uma banda sonora que podia perfeitamente ser de um filme em que se enquadrasse Sufjan Stevens, Chet Baker ou Nick Cave, o Café Rivoli serviu de ponto de encontro e de cenário a uma conversa que se podia prolongar no tempo e desdobrar-se em múltiplos subtemas.
Sentado numa mesa de café, Dario ultimava os detalhes que faltavam para a 6.ª edição de um festival que conquistou um lugar no Porto e no panorama da circulação do cinema documental português, e que orgulhosamente assumia mais tarde estar “comprometido com a liberdade e com a resistência”. Se, em 2014, o comunicado de imprensa do Porto/Post/Doc partilhava a possibilidade de “fazer um novo festival de cinema no Porto” e marcava a homenagem a Manoel de Oliveira pelo seu 106.º aniversário, em 2019 o destaque a Oliveira surge numa entrevista pré-festival com tanta naturalidade quanto a importância do cineasta para a história do cinema português.
Da naturalidade com que o país devia olhar para o cinema de Pedro Costa ou Miguel Gomes como retratos da contemporaneidade aos apoios financeiros atribuídos ao cinema, a conversa começou formalmente pelo ponto de partida mais óbvio, o filme de abertura, e acabou em aberto. Porque, afinal de contas, em qualquer que seja a narrativa, “nunca se conta a história toda”.
Gerador (G.) — Esta edição vai ser aberta com o Words of Love, um documentário sobre o Leonard Cohen e a Marianne Ihlen. Como é que se escolhe um filme para marcar a abertura de um festival?
Dario Oliveira (D.O.) — Eu acho que o filme de abertura de festival, a que damos uma particular atenção, parte do mesmo princípio que as outras sessões. Acima de tudo, procuro que os filmes dialoguem uns com os outros. Por exemplo, Words of Love está em diálogo com um filme que se chama Condor do Kevin Jerome Everson, um cineasta experimental, e é sobre um eclipse, sobre luz. Estes dois filmes aparecem aqui, como muitos outros ao longo da programação, em diálogo um com o outro – esse é o primeiro grande critério. Depois há outros que têm a ver com um conhecimento da história do cinema, mas acima de tudo com uma vontade de surpreender as pessoas, projetar um pouco aquilo que achamos que é o cinema. Há uma produção cada vez mais rica em termos mundiais, e é isso que eu quero que esse festival faça transparecer: a diversidade e o nível de abordagem artístico, estático e por isso político, de intervenção, de resistência. Todos esses conceitos estão presentes nos filmes que apresentamos, sejam eles mais recentes ou revisitações.
Este ano há um caso particular, o De Quelques Évenem. Sans Signification do Mostafa Derkaoui, que é um filme ressuscitado. Quando nós visitamos a história do cinema neste festival, fazemo-lo de diversas formas. Uma delas é trazemos cineastas bastante ignorados ou esquecidos — e nunca com um tom de celebração, de entregar um troféu de carreira, daí não fazermos retrospetivas, mas termos focos. Lembro-me do Audrius Stonys, que estou a tentar trazer cá a Portugal há quatro anos, mas que só agora houve uma conjuntura favorável a termos um lugar para esta carta-branca que lhe demos para escolher filmes de cineastas do seu país, sobre as questões da identidade, e os filmes dele que encaixam aqui perfeitamente. Outro foco é a Ute Aurand, que é uma cineasta alemã com uma produção muito peculiar, com um cinema muito da intimidade, e também está aqui desta forma – não com um tom de fim de carreira ou de prémio, mas porque interessa amplificar o reconhecimento que estes cineastas vão tendo além do núcleo da cinefilia ou dos festivais. Juntar todas estas peças tem algo de matemático, mas também de artístico, e tudo tem de fazer sentido.
Para a abertura deixa-se um filme de grande espetro de público, que é este Words of Love, a descoberta de uma série de documentos em película do arquivo pessoal do Nick Bromfield — ele próprio privou com o Leonard e com a Marianne nesta época em que todos eram muitos jovens, numa ilha grega onde se encontraram todos e passaram um tempo de descoberta, de felicidade e de experiências. Esses documentos que, na altura, foram feitos sem nenhuma intenção acabaram por ser parte integrante do filme que faz agora a dois velhos amigos recentemente falecidos. Words of Love é isto, além da história de amor, mais óbvia, da musa do Cohen, que foi a Marianne e que até foi namorada de ambos. Estas histórias todas só acontecem porque há esta rede, porque há a vida. Depois há a nossa vontade de querer ilustrar a nossa temática das questões identitárias de uma forma mais ou menos abrangente, que tem que ser uma seleção rigorosíssima para se chegar a esta line-up de 12 filmes da secção identidades.
G. — O Dario fala nas identidades e em tudo o que pode caber lá dentro. Numa entrevista ao JPN, disse que o nome “Porto/Post/Doc” fala por si e que representa tudo o que vai além do documental. O que é que vai além do documental?
D.O. — Neste momento e talvez desde há cerca de 15 anos para cá, o cinema documental voltou a ter uma dinâmica enorme graças a vários fenómenos, e um deles é o da democratização das ferramentas digitais – das câmaras até aos sistemas de difusão. E o documental, que até há uns 15 anos era apanágio de uma divisão muito ortodoxa do cinema, dos cineastas políticos ou dos cineastas comprometidos ideologicamente, hoje em dia é um espetro muito maior, e a difusão de festivais um pouco por todo o mundo é só um sintoma. Mas acima de tudo, o pós-doc aparece aqui porque nesta década e meia, e cada vez mais, se misturam géneros. Declaradamente, o pós-doc é o cinema do real — mas quando falamos do real não falamos só da realidade, falamos do storytelling, da forma de contar, e a realidade pode ser imaginada, vivida ou sonhada; tudo isto cabe no cinema do real. Eu julgo que o que não cabe no pós-doc e no cinema do real – se é que não cabe – é o cinema de entretenimento puro e duro dos super-heróis, que acaba por ser um subproduto de Hollywood, do cinema contemporâneo, que ainda vende, mas não sei por quanto tempo. E aliás, o público destes festivais que têm o documentário como ponto de partida e de chegada é uma prova de que as pessoas estão à procura destas interfaces e desta proximidade com a produção mundial que acaba por ter dificultada a sua difusão porque são objetos de arte que não estão comprometidos com distribuidoras nacionais muito fortes, tirando alguns casos de sucesso como os filmes que retratam celebridades ou os documentários do Michael Moore, que são politicamente incorretos (e muitas vezes mais coisas incorretas), há muitos casos de sucesso – ou pelos temas ou pela forma como são abordadas. Mas este sucesso do documentário passa por aí: assumir que o documentário e o cinema com atores estão muito próximos, e estes híbridos estão no pós-doc. Esta nova forma de fazer cinema, que não é tão nova assim – tem a idade do próprio cinema –, hoje em dia é assumida com muito mais abertura e sem nenhum preconceito de linguagem, e isso é ótimo.
G. – Este ano têm novamente o Fórum do Real, dividido em três partes. Sente que existe uma massa crítica no país, relativamente ao cinema?
D.O. – Sim, mas há que recuperá-la junto dos mais novos. A iliteracia hoje em dia passa muito mais por uma iliteracia audiovisual e do cinema do que relativamente aos livros. Isto acontece porque os jovens veem cada vez mais imagens em detrimento do tempo de leitura e da atenção dada à leitura, e isso tem de ser combatido com outras imagens e com a educação pelas imagens. A história do cinema é a melhor escola para combater a iliteracia. Existe em Portugal um projeto excelente com défice de divulgação, que é o Plano Nacional de Cinema, que existe dentro do Ministério de Educação e carece de uma amplificação. O Plano Nacional de Leitura é plenamente assumido pelos agrupamentos e o Plano Nacional de Cinema ainda é uma novidade para muitas escolas em muitos lugares do país, e existe para cumprir essa falta de oferta de cinema que existe em muitos sítios de Portugal. Há muito poucas salas de cinema no interior do país e é o interior que interessa desenvolver; Porto e Lisboa já têm muitos festivais de cinema e muitas salas, têm é pouca oferta de cinema comercial. O Porto deve ter entre 90 a 100 salas comerciais, mas tem cerca de 20 a 30 filmes a circular. Há a mesma oferta a circular em todos os multiplex, mas o que aconteceu aqui aconteceu na Europa toda (se tirarmos o excelente exemplo da França, onde o cinema faz parte do currículo de ensino oficial).
Este combate é a grande luta e o grande desafio que têm os festivais, os programadores, os curadores: fazerem com que a massa crítica seja recuperada. Este é um trabalho continuado que demora uma geração a fazer, mas cabe-nos a nós fazê-lo. Eu não gosto de fazer comparações, mas a título de exemplo, a Grécia tem centenas de salas na capital (Atenas) que programam maioritariamente cinema europeu. E em Lisboa e no Porto, quantas há? Tem de haver aqui uma relação com as comunidades, com o poder local, de deixarem de competir uns com os outros e terem projetos próprios. Enquanto a opinião pública olhar para o dinheiro que é investido no cinema e na formação como subsídios, e não olharem assim para os apoios dados ao têxtil, à agricultura e a todos os outros ramos da sociedade — porque aí não são subsídios, são apoios —, está tudo mal. Esta é uma conversa demagógica que não devia existir. Primeiro porque o dinheiro investido no cinema vem dos impostos da publicidade ou televisão e toda a gente devia saber isto, depois porque não há aqui subsidiodependentes. Subsidiodependentes para mim são muitos empresários que ganham muito dinheiro e têm apoios do governo português e de Bruxelas, e está tudo bem. Mas para a cultura tem de existir e essa política, é uma política de sucesso. Não há muitos países para além de Portugal, com a população que existe no país, com o investimento em educação que há e com as universidades que existem, que tenha tanto reconhecimento internacional dado pelo cinema português. Não estou a falar do [João] César Monteiro e do [Manoel de] Oliveira, nem do Pedro Costa e Miguel Gomes. Estou a falar de muitos cineastas e do percurso invejável que o cinema português tem no mundo inteiro. Os portugueses têm alguma resistência a olharem-se ao espelho através do cinema, o que é uma pena. Claro que o cinema português tem fragilidades, mas tem uma capacidade de nos representar a nível internacional só igualável à literatura e à arquitetura. É uma pena nós não aceitarmos isto em paz com a nossa própria identidade nacional.
De Quelques Évenem. Sans Signification passou no Rivoli nos dias 27 e 29 de novembro
G. – Mas agora temos um novo secretário de estado para o cinema e para o audiovisual...
D.O. – Para mim ainda é um mistério, estou à espera que ele se ponha em ação. Para já, para mim, é só um cargo novo. Se existe mais um representante governamental que tem um trabalho a fazer, eu estou curioso de ver o que ele vai fazer. Se faz falta? Faz, porque é todo um domínio do audiovisual que está nas mãos erradas. Está nas mãos de grupos económicos que só têm um objetivo e que é preciso disciplinar, regulamentar, criar novas regras para eles. Se tudo for bem feito, será excelente. Estou expectante.
G. – Referiu o Pedro Costa e este reconhecimento do cinema internacionalmente. Acha que os portugueses precisam desse reconhecimento internacional?
D.O. – Não é bem uma questão de precisar dos portugueses ou dos autores portugueses, tem a ver com a circulação das obras. De facto, é nos festivais que se descobrem muitos filmes. Os festivais de primeira classe são muito importantes para a descoberta destes novos filmes dos cineastas portugueses lá fora, sim. Não é por uma questão de ego ou de reconhecimento para nós, a importância é para os filmes. Nós estaremos sempre muito próximos da obra e os filmes são todos distribuídos cá, é uma questão de haver disponibilidade, vontade e acima de tudo curiosidade para os ver e os aceitar como retratos da contemporaneidade da nossa época. Os filmes do Manoel de Oliveira já o eram, ainda que deveras comprometidos com aquilo que ele era enquanto autor — muito comprometido com a literatura, com a religião, com questões sociais. Era o Manoel de Oliveira, a obra está aí. Se eram os melhores retratos da nossa época, não interessa, eram aqueles que ele quis fazer, e o artista tem de poder trabalhar em liberdade. Esse trabalho de liberdade que têm estes autores portugueses é facilmente reconhecido internacionalmente. Fico contente que os filmes tenham esse reconhecimento porque são de uma grande qualidade, uma capacidade de nos representar enquanto cultura. Eu não acredito na tradição congelada. Nós não somos só o Fernando Pessoa nem a Amália, não podemos ser. Nós somos o Pedro Costa, assim como somos todos os músicos, pintores, designers, arquitetos.
É paradigmático que nesta cidade o estatuto de grande respeito nos vários quadrantes da sociedade portuense esteja nos arquitetos, só porque há dois arquitetos que ganham um Pritzker — o Siza Vieira e o Souto Moura. Mas também há cineastas nesta cidade e há uma história ligada ao cinema no norte de Portugal. O cinema acaba por ser aqui o parente pobre. As pessoas acham que está tudo bem se continuarem a ver cinema em casa sozinhas, e eu acho que não. O cinema pode ser visto em casa, mas deve sobretudo ser visto na partilha de uma sala escura, num contexto como existe no Trindade, no Passos Manuel e nos próprios festivais. Este é um dos mais concorridos e ainda bem, é sinal que as pessoas saem de casa no inverno para ir ao cinema.
G. – Mas mesmo as próprias plataformas de streaming agora têm alternativas, como é o caso do Filmin.
D.O. – E é ótimo que existam! Na semana do Porto/Post/Doc (PPD) quem não é do Porto e tem curiosidade de ver um filme premiado ou que faça parte da programação tem a possibilidade de ver no Filmin, porque eles são nossos parceiros. Com um investimento de poucos euros podem ver o filme em Évora ou em Torre de Moncorvo. É para isso que serve o digital, para amplificar esta difusão das obras que nós fazemos em contexto de festival, que é um local de descoberta.
G. – E até dentro dessas possíveis descobertas, é notório que há uma forte geração de novos cineastas a surgir, que acaba por se refletir nos prémios de Cinema Novo do PPD. Acha que há uma tendência para os cineastas começarem pelo documental?
D.O. – Não sei, esses fenómenos geracionais às vezes são líquidos. Eu não acredito que os cineastas fiquem a fazer o mesmo tipo de filmes toda a vida, e ainda bem. O Manoel de Oliveira é um exemplo. Fez uma obra-prima experimental espetacular, que foi o Douro Faina Fluvial, passou pelo neorrealismo com o Aniki Bobó, teve alturas em que por falta de dinheiro fez documentários maravilhosos e encomendas para empresas, e depois voltou em força a fazer um cinema livre de códigos, e fez ficções até ao fim da sua vida. Eu acredito que esta nova geração, que até tem provas dadas, prémios, reconhecimento, distribuição assegurada internacionalmente com documentários, vai continuar a fazer cinema; se é documentário ou não, já não sei. Acredito que as coisas estão em constante movimento e este paradigma do que era o cinema e do que vai ser, está em mutação e completamente em aberto.
G. – E tem havido espaço para responder a estes jovens cineastas – tanto a nível de programação como de apoios?
D.O. – A questão dos apoios é muito sensível e muito mal resolvida do ponto de vista do vox pop. Se for o apoio dado para o futebol tudo bem, se for o apoio dado num concurso a um jovem cineasta que precisa de dinheiro para produzir e terminar um filme, não está bem. Eu lamento dizer que não está bem é pensar assim. Eu acho que é sempre muito pouco o dinheiro que existe para investir em cinema em Portugal e os filmes que existem são feitos com muito pouco dinheiro e graças a muitas equipas que recebem mal, que trabalham uns meses num projeto e depois ficam desempregadas até ao próximo trabalho. Ninguém pensa nestas pessoas. Quando se fala que é mal gasto o dinheiro que se dá em apoios para o cinema, nunca se fala sobre aquele cineasta ter feito um filme com esse dinheiro e que provavelmente daqui a um ano pode estar desempregado, porque nada é garantido. São as pessoas que estão com empregos estabelecidos, segurança social, médico de família e que têm situações estáveis que veem estes apoios com maus olhos. Isto são questões identitárias muito mal resolvidas, de não entender os parcos apoios que existem para as artes. E mesmo assim existem alguns – o ICA, a DGArtes, a Gulbenkian e alguns projetos inovadores, como por exemplo o Cultura em Expansão, que ajudou à produção de alguns filmes através do pelouro da cultura da Câmara Municipal do Porto. Mas tudo isto é muito pouco.
Eu vejo neste momento, ou pelo menos nos últimos dez anos, um investimento em estruturas ligadas à tradição e recuperação de património, e muito pouco apoio à criação de património imaterial. Há muita desconfiança do que é imaterial, e isto só prova que há muito a fazer. E acima de tudo, voltando um pouco atrás, o serviço educativo e o trabalho com os mais novos é o mais importante a fazer, para que a nova geração olhe para o cinema com desejo, curiosidade e com respeito – pelas obras e por quem se faz –, e perceba por que se faz. E entenda que um filme do Miguel Gomes, do Pedro Costa ou do Manoel de Oliveira é feito com muito menos dinheiro do que seria sendo feito em França, em Espanha, em Itália, na Grécia ou em Inglaterra. Em Portugal fazem-se coisas muito bem-feitas sem olhar àquilo que se vai ganhar, porque há vontade de fazer em liberdade. Somos um país democrático mas com uma herança de preconceito enorme.
Cães que Ladram ao Pássaros, o mais recente filme de Leonor Teles, foi feito no contexto do Cultura em Expansão
G. – Ainda em torno dessa noção de identidade do país e pegando no que disse sobre os apoios, há quem diga que existe uma certa relação clientelar em Portugal e que os apoios são sempre para os mesmos.
D.O. – Eu acho que isso é uma profunda injustiça. Os apoios são dados ao espectador, aos indivíduos, não são dados às instituições nem aos realizadores. Quem usufrui não é o realizador, nem o produtor, nem a equipa técnica. Quem usufrui é quem está no final, que é o público. Ninguém questiona o dinheiro que as Câmaras Municipais gastam em pedras para as calçadas, nem nas fortunas que se gastam nas autoestradas que ligam Portugal – fortunas colossais feitas à custa de empresas de construção destinadas a fazer edifícios públicos. Mas toda a gente tem opinião sobre os tostões gastos na produção de cinema, é uma coisa inexplicável, mas muito lusitana. Eu acho que os apoios não são dados sempre aos mesmos, há um rigoroso regulamento por parte do ICA para atribuição de apoios. Se há falhas na lei? Há, sim senhora. E há um poder extremamente mal atribuído às televisões privadas. Uma coisa são produções para a televisão, que existem com um único objetivo: fazer dinheiro. Outra coisa é o ministério da cultura dar apoio a produção autoral de cinema. Não tem nada a ver. As televisões têm poder a mais e o dinheiro não é sempre para os mesmos, senão não havia cineastas novos a surgir. Não podemos é esperar que apareça um César Monteiro de 6 em 6 meses.
Esse é um falso problema. O regulamento tem falhas, mas não existe nenhum que seja perfeito. Há um grande trabalho a fazer e espero que o Nuno Artur Silva esteja atento e veja isso como uma prioridade, resolver essas questões dúbias. O que existe foi feito a partir de modelos que existem e funcionam em muitos países, mas isto tem a ver com a realidade de cada país. E depois existem as empresas, mas vivemos num país em que estas olham com muita desconfiança para o serviço público, para a partilha, para a generosidade. Esta falta de respeito pela cultura tem a ver com uma herança que quase 50 anos depois do 25 de abril ainda se nota. As pessoas ainda vão ao Rock in Rio porque acham que é a melhor coisa que lhes acontece na primavera, mas não vão ao cinema – e é pena. Posso dizer que discordo com organizações como o Rock in Rio ou o Web Summit que vivem de grandes parcerias institucionais com o nosso governo e que mexem com uma forma de trabalho que me deixa muito desconfortável com esta noção que se passa de ideias de evolução, mas que na verdade são ideias de dependência. Enquanto acontecia o Web Summit em Lisboa aconteceu o Fórum do Futuro no Porto, que é uma prova de que se pode mexer com as pessoas com um projeto humanista, de catalisar e contribuir para a mudança de uma forma mais sustentada, mais económica e muito mais válida em termos de artistas.
Isto tem a ver com a nossa herança salazarista bolorenta e de falta de educação para as artes. Hoje ainda há muito a fazer nas escolas, ainda não chegamos lá. Estamos muito atrasados em relação à educação para a arte e pela arte. As pessoas querem todas ver o mesmo. É muito estranho num país como Portugal, onde há tantos artistas, as estrelas serem políticos, jogadores de futebol e estrelas de novelas.
G. – E há um cinema documental pré e pós-25 de Abril?
D.O. – Sem dúvida. O 25 de Abril é um tema não só para documentaristas nacionais, como também para internacionais, houve quem viesse filmar a revolução. Há uma coleção de filmes incríveis de cineastas americanos e franceses que vieram por aí a baixo filmar a revolução, e isso é maravilhoso. Mas esse tema daria outra entrevista! O cinema de propaganda pode ser bom em termos de passagem de informação e pode ser mau – e já deu várias vezes na história recente da humanidade exemplos de que pode ser extremamente mau para formar, enganar e manipular opiniões e populismos vários. O cinema documental do pós-25 de abril também foi comprometido com ideologias, mas cada vez está mais liberto delas. E acho que já não há tanto esta questão portuguesa apenas. Estou a lembrar-me d’Os Lisboetas do Sérgio Tréfaut, de outros filmes que tratam da diáspora, que falam de refugiados e da nossa capacidade de estar presentes em muitos lugares, nomeadamente através da língua. Acho que o cinema documental português está numa fase de grande afirmação e de grande reformulação do que pode ser. E, de facto, um cinema comprometido com o regime existiu e Salazar tinha uma consciência do poder das imagens.
G. – Mas não havia uma Leni Riefenstahl a trabalhar para o regime.
D.O. – Não, Leni Riefenstahl só houve uma e era uma excelente cineasta a ajudar a causa errada. Mas os filmes dela ainda hoje são muito poderosos e perigosos. Não é à toa que não podem ser vistos em festivais que tenham salas com mais de 100 espectadores, para evitar aglutinações de extrema-direita ou manifestações extremistas. Há muitos cineastas comprometidos com a propaganda das ideias, mas a propaganda pode ser uma coisa boa. Eu acho que é um nome que está bastante mal utilizado por causa da conotação negativa do fascismo e dos movimentos de extremistas e do poder que tem o cinema para tal, mas também há cinema de propaganda muito bom.
G. – Há cinema mais humanista que se insira nessa ideia de propaganda e que tenha ecos positivos? Pergunto isto porque uma pessoa me contou que a partir do momento em que viu Os Lisboetas do Tréfaut nunca mais olhou para esses lisboetas da mesma forma.
D.O. – Aprende-se muito a ver filmes, porque nós estamos totalmente disponíveis para receber o que nos está a ser mostrado e dito. Mostrar o mal pode ser uma boa forma de lutar contra o mal, mas tudo isto passa por uma consciência de quem escolhe mostrar ou não mostrar. Eu tenho essa preocupação permanente quando escolho os filmes que quero passar no festival, há autores que não entram aqui porque eu sei que estão comprometidos com questões que eu abomino. Há dois excelentes filmes sobre o Steve Bannon, que para mim simboliza o perigo iminente dos regimes totalitaristas porque tem ajudado uma série de populistas a alcançar o poder em países que estão perfeitamente comprometidos com esta sede do capitalismo sobreviver, mas eu não quero mostrar filmes sobre ele. Um deles até é do meu documentarista preferido, que é o Errol Morris, mas eu nunca mostraria no PPD porque não quero dar 90 minutos de antena a alguém como o Steve Bannon. O que estou a dizer é que o documentário que fala sobre o Steve Bannon, feito pelo Errol Morris, baseado numa entrevista que ele lhe fez em Veneza, também tem um contexto. No grande festival de Veneza, quando o filme foi apresentado, ele esteve no quarto do hotel a ter reuniões com a extrema-direita italiana. O perigo espreita e eu não quero que entre neste festival.
O Porto/Post/Doc é um festival de resistência às ideias totalitaristas, é um festival artístico, comprometido com a liberdade e com a resistência, não é com o mal. Isso não quer dizer que eu fale sobre os temas, mas dar voz a algumas pessoas, nem pensar. E de facto pode aprender-se muito com o cinema; eu aprendi imenso a ver os documentários do National Geographic quando era pequeno, mais do que a ir ao Jardim Zoológico. A mim ver os animais enjaulados sempre me deixou triste, mas o poder instituído é muito forte. Eu prefiro ver um filme em que documentaristas foram à savana filmar, do que ver ali ao lado os animais presos. E tudo isto passa pelo cinema.
O David Attenborough é um senhor nessa tarefa da preservação dos direitos dos animais e da nossa própria qualidade de vida. Pouca gente o ouve. As pessoas passam muito mais tempo a ouvir pessoas como o Trump, o Bolsonaro ou o Salvini são front-liners de um grupo enorme de interesses políticos e económicos de pessoas de quem nem sabemos o nome e que não dão a cara.
G. – Daí também a importância da preservação da memória. Neste PPD há duas pérolas na programação filmadas pelo Paulo Rocha, que apresentam em parceria com a Cinemateca. Acha que faz falta uma Cinemateca no Porto?
D.O. – Não faz falta nenhuma uma cinemateca no Porto, isso é um falso problema. Portugal tem um arquivo com excelentes condições, que é o ANIM (Arquivo Nacional de Imagens em Movimento), onde estão preservadas as cópias originais do filme do nosso património cinematográfico. No ano passado mostrámos a obra do António Reis e da Margarida Cordeiro, este ano mostramos a do Paulo Rocha. Nós não precisamos de uma cinemateca no Porto, precisamos de uma programação da Cinemateca no Porto. O arquivo pode estar em Lisboa, não tem que estar aqui. Uma Cinemateca, enquanto tal, não é uma exibição do património cinematográfico português e internacional, é um arquivo. E o arquivo está muito bem onde está. Espanha é um país muito maior do que Portugal e tem cinematecas regionais, arquivos regionais, mas é uma estrutura muito mais pesada em termos de ministério da cultura e que é impossível reproduzir num território como Portugal. E Coimbra, Viana e Bragança não precisam de uma cinemateca? O Porto precisa é de uma programação de Cinemateca e o arquivo deve ser libertado para ser mostrado em cidades como o Porto, mas não só. Não interessa só estar a mostrar os filmes se não houver todo um projeto aliado no Plano Nacional de Cinema – que já existe – de trabalhar os públicos jovens, de criar condições de acesso através do cinema. Mas espero que o Cinema Batalha tenha programação da Cinemateca Portuguesa, claro que sim.
A Ilha de Moraes é um regresso de Paulo Rocha ao universo de Wenceslau de Moraes
G. – A vossa programação acaba por pôr lado a lado filmes de cineastas que já são considerados clássicos na história do cinema, como o próprio Paulo Rocha ou o Bergman, com outros feitos muito recentemente, como acontece com Um Punk Chamado Ribas do Paulo Miguel Antunes.
D.O. – Há filmes que estão aqui porque ilustram bem esta ideia de identidade, de questões de género e períodos muito particulares na história social da nova Europa. Estes filmes convivem com outros muito recentes, como acontece Um Punk Chamado Ribas, que é um retrato de uma época e de uma vida cultural urbana de Lisboa muito particular. Mas há dois filmes que gostava de trazer para esta reflexão. Um deles é um filme marroquino de 1974 que nós, programadores, ressuscitámos e que já tinha mencionado há pouco, De Quelques Évenem. Sans Signification do Mostafa Derkaoui, que entra na competição como um desafio que fazemos ao próprio regulamento. Este filme foi feito em 74 mas nunca foi visto porque desapareceu, foi censurado. O cineasta teve uma carreira muito atribulada e foi descoberta uma cópia, foi recuperada e há uns 5 anos foi digitalizado na Catalunha. Este filme foi apresentado na Berlinale em março passado, depois passou num festival em Marselha e passa agora no Porto. É uma viagem no tempo incrível e precisa dos festivais para ser descoberto. O outro é um filme palestiniano, Off Frame Aka Revolution Until Victory do Mohanad Yaqubi, que também tem uma história muito particular e está no programa de identidades por isso mesmo. O Yaqubi está num processo de redescobrir imagens documentais da Palestina e das várias atrocidades cometidas pelos israelitas ao longo das várias invasões dos palestinianos ao longo dos anos. Os israelitas conseguiram eliminar grande parte do arquivo de imagens da Palestina, mas ao longo das décadas houve filmes que foram enviados para festivais em todo o mundo e muitos desses filmes, por causa das invasões, acabaram por ser devolvidas. As imagens que estão neste filme mostram coisas que nós nunca vimos, e de um país que foi completamente aniquilado, sobraram as imagens. Este poder das imagens restitui uma realidade que neste momento desapareceu – não existem aquelas esquinas, não existem aquelas cidades, mas existem no planeta cinema. Aquilo que é mostrado é uma pequena percentagem do que há para ver. As televisões têm todas muitas imagens da Palestina e são profundamente violentas e negativas, mostram atrocidades e invasões. A opinião pública está dividida. O que vemos neste filme é outra coisa: é o país antes de ser invadido, como ele era – como era a luz, como as pessoas se mexiam.
Também temos dois filmes com personagens femininas, reais; um que conta uma crise existencial de uma cantora de ópera excecional, que é um filme que se chama Sol Negro, da Laura Huertas Millán, e o outro, Gulyabani de Gürcan Keltek, que conta uma história de uma jovem com poderes muito particulares e que foi acusada de ser bruxa, mas que foi utilizada pelo governo turco a seu favor para fazer espionagem – foi drogada, violada, presa e acusada de crimes. Estas duas histórias estão na mesma sessão exatamente porque comunicam entre si e porque são dois retratos de duas pessoas nada comuns, mas ainda assim duas mulheres com todas as fragilidades que qualquer ser humano pode ter.
G. – Framing reality é um dos vossos motes. Acha que de facto o cinema documental tem o poder de enquadrar a realidade?
D.O. – Tem. Este framing reality é mais uma definição do que é o próprio cinema, que é escolher o que se mostra. O título deste filme sobre a Palestina é Off Frame porque acaba por ser uma reflexão algo poética do que está fora e não se vê, mas que está lá e nós conseguimos imaginar. Mas o framing reality é mesmo o ponto de vista do autor, e isso é o que deve ser o cinema; nunca contar a história toda, mas um ponto de vista sobre a realidade. E é isso que faz a fotografia, o cinema, a escolha de um autor relativamente a uma determinada narrativa. Este framing está presente em todas as expressões artísticas e isto é tão antigo quanto a passagem das histórias de forma oral nas sociedades primitivas.
Desde o nosso encontro com Dario Oliveira, o Café Rivoli já passou outras bandas sonoras que certamente serviriam a outros filmes, acolheu públicos e DJ sets, e os auditórios do Teatro Municipal do Porto já contaram histórias que não conseguíamos prever à distância. Ute Aurand, Ben Rivers, Christiana Perschon, outros cineastas e pensadores, o público mais novo e mais velho, e uma equipa inteira que trabalhou para que tudo desse certo construíram a narrativa do Porto/Post/Doc 2019 que certamente terá ecos nos que dela fizeram parte.
O Porto/Post/Doc termina no domingo, dia 1 de dezembro, com sessões no Rivoli, no Passos Manuel e no Planetário. Podes consultar os filmes que ainda tens oportunidade de ver nestes dias, aqui.