Inevitavelmente, este meu primeiro texto para o Gerador é uma pequena reflexão sobre o período que estamos a viver, e a ameaça do chamado Covid-19, que tanto nos tem feito pensar, agir e mudar rotinas.
Já muitos teóricos tentaram explicar esta nossa necessidade de ter narrativas universais de várias maneiras. Também em diversas disciplinas. Lembro-me de Carl Jung com a sua teoria do inconsciente colectivo, das minhas aulas de teoria da literatura na Universidade de Perpignan em que uma das minhas professoras trabalhava sobre a estrutura dos romances desde a antiga Grécia e afirmava que até hoje, são iguais os seus temas e a sua estrutura. A sua análise partia da leitura da primeira frase de cada romance. E dizia que a partir dela podíamos encontrar vestígios de heranças das narrativas estruturais da humanidade. A isto se chama também leitura distante, uma forma de leitura formal inventada pelo Professor Franco Moretti, professor na Universidade de Stanford, irmão do realizador Nanni Moretti.
Tenho pensado bastante sobre isto. Um destes dias li de que forma o imaginário social via as causas da gripe espanhola em 1918.
O artigo que li enaltecia três factores. O primeiro tinha a ver com a crença judaico-cristã do ocidente. Muitos pensavam que o apocalipse estava por vir. A guerra ou a peste seriam então uma punição divina pelos pecados cometidos, pela falta de religião, pela devassidão e pelo materialismo.
O segundo factor prende-se com a ideia de que a passagem de três cometas pela terra seriam responsáveis pela guerra, pela epidemia e pela fome.
E o terceiro era a ideia de que em plena primeira guerra a epidemia era uma contaminação do inimigo.
Ao olhar para estas três causas encontro narrativas muito semelhantes com a forma como temos visto hoje o problema que estamos a viver. Muitos amigos me têm dito que o mundo nunca mais será o mesmo. Que a sociedade como a conhecemos mudará para sempre. Que levámos o nosso modo de viver a um limite extremo e que por isso agora somos obrigados a parar. (Confesso que esta narrativa é aquela que tendo a elaborar mais quando penso nesta situação.) Ao mesmo tempo, outros amigos ou conhecidos dizem-me, em retrospectiva histórica, que a grande diferença entre outras epidemias e esta é que nunca o mundo teve tanto fluxo de pessoas e mercadorias entre continentes e que por isso esta é a maior causa da sua rápida expansão. E que também por isso “pagaremos as favas” da globalização. Há ainda outros amigos, mais adeptos da teoria da conspiração, que estão convictos que esta epidemia foi propositada por outros governos ou corporações, uma espécie de golpe neoliberal biopolítico.
Não sou ninguém para dizer qual destas narrativas é a mais verdadeira. Também não escrevo esta crónica para discutir a sua veracidade. O que me aconteceu foi ter reparado na semelhança entre o imaginário social durante a gripe espanhola e o nosso de hoje em relação à pandemia que vivemos.
A sensação que tenho é que somos sempre os mesmos humanos mesmo que o mundo mude à nossa volta. E que vivemos embrenhados nas nossas próprias narrativas, medos e profecias, das quais é difícil sair. E que mesmo nos momentos mais sombrios a nossa necessidade de manter as nossas narrativas e histórias persiste. E o que é mais surpreendente é que não as abandonaremos nunca, porque são elas que nos salvam.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Isabel Rodrigues Costa-
Trabalha em teatro, cinema, na área de produção de exposições e curadoria. É diplomada em teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo completado a sua formação na Universidade de Warwick (Inglaterra) e na UNIRIO (Brasil). É membro do grupo de teatro Os Possessos desde 2014. Na área de produção de exposições passou pelo Paço Imperial no Rio de Janeiro (Brasil), pela Galeria Luis Serpa Projectos (Lisboa) e pela galeria Primner. Em 2016 terminou o mestrado Eramus Mundus Crossways in Cultural Narratives, tendo passado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa, pela Universidade de Perpignan (França) e pela Universidade de Guelph (Canadá). Dedicou-se ao tema do arquivo na performance arte. Em 2017, iniciou a criação de projectos a solo. Apresenta a criação “Estufa-Fria-A Caminho de uma Nova Esfera de Relações” na Bienal de Jovens Criadores, e a primeira edição do Projeto Manifesta, um projecto produzido por Os Possessos. Em 2019, apresenta as criações “Maratona de Manifestos” e “Salão Para o Século XXI.”