“O rever das casas e das causas/ o revolver das coisas/ que dormiam”[1]
“Vai e traz-me um cabelo”[2]
As linhas com que nos descosemos
“A Maria Velho da Costa foi Prémio Camões, recebeu o Prémio Carreira da Associação Portuguesa de Escritores, foi condecorada com ordem do Estado Português, e muitas das obras, se calhar, nem segundas edições tiveram. Como é que uma autora destas tem livros sem segunda edição? Ou As Mulheres do Meu País, da Maria Lamas; o livro está esgotadíssimo. Houve uma reedição há uns anos, mas já está esgotado. Como é que uma obra de tanto valor para a vida das mulheres está esgotada? As Novas Cartas Portuguesas durante muitos anos também estiveram esgotadas. Houve uma reedição em 2010 pela mão da Ana Luísa Amaral”, chama a atenção Joana Sales, coordenadora do Centro de Cultura e Intervenção Feminista, da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta.
Novas Cartas Portuguesas (1972), de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, marcam a sororidade na escrita feminina em Portugal. Sobre esta obra, tecida pelo desfiar do texto, o têxtil, para desafiar o que se inscreveu em quem não escreveu, Maria de Lourdes Pintasilgo, no “Prefácio (leitura longa e descuidada)”, ilumina: “Até 1971. Até às 3 Marias. Até que 3 mulheres portuguesas, escritoras, se põem a fazer um livro, inicia-se o processo que vai encontrar a sua expressão mais generalizada na simples referência aos nomes próprios de mulheres formando ‘coletivos’ que organizam reuniões de trabalho, escrevem livros, publicam revistas.”[3]
E, agora, que Penélopes quotidianas agem na História portuguesa? Como, juntas, lhe vão soltando os cabelos?
Na noite de 23 de maio, pouco antes de apagar as luzes ao deitar, chegou-nos a notícia da morte de Maria Velho da Costa, aos 82 anos, a um mês de completar 83. Uma vida preenchida pela entrega à escrita e aos feminismos, a reescrever conceitos e contextos, a abrir caminhos de liberdade. Num longo caminho pontuado, também, pela sua luta, foram e vão-se juntando outras mulheres que pretendem dar corpo ao conceito de sororidade. Juntas falam mais alto. Juntas iluminam sombras, convocam margens e reescrevem a História. Num lugar de escuta constante, pensam o agora para que o amanhã se teça em fios de justiça.
“Quando fui ao Festival Feminista à Editatona, num domingo de manhã às nove horas, foi uma sensação incrível. Criei o perfil de uma mulher que tinha lutado contra o Apartheid, foi professora catedrática, e não tinha página no mundo inteiro. Isto tocou-me. A possibilidade de tornar mais visível uma pessoa, de tornar a sua existência ou a sua vida mais disponível a outras pessoas, foi algo muito empoderador”, conta Ana Bragança. Nesse domingo de manhã, no Festival Feminista de Lisboa, em 2019, Tila Cappelletto organizava a segunda Editatona (maratona de edição na Wikipédia), sem imaginar que dali viria a surgir o grupo Wiki Editoras Lx.
Tila e Ana começaram a juntar-se para editar informalmente, porque além de gostarem de conversar e de estar juntas, reconheciam a urgência de ir ocupando os vazios da enciclopédia digital que serve de ferramenta a todxs xs que pesquisam na Internet. Mais tarde, juntou-se Rita Matos “porque havia ali qualquer coisa importante que era o facto de se estar a escrever sobre mulheres”. “A minha primeira página da Wikipédia foi a da Helena Lopes da Silva, o que para mim teve uma marca importante, por todo o papel que a Helena teve na sociedade portuguesa”, recorda Rita. Os encontros do grupo, que funcionavam informalmente até ao convite da organização Art+Feminism para organizar uma Editatona conjunta, serviam também como um espaço de partilha. Foi aí que se juntou Catarina Cabral, que acabou por ficar responsável pela comunicação das Wiki Editoras, e que relembra o impacto que a primeira página que criou teve em si e na mulher biografada: “A primeira edição que eu fiz foi a Raquel Lima, e fiquei mesmo emocionada quando a vi fazer um post no Facebook dela a dizer que acordou e uma amiga lhe disse: ‘como assim estás na Wikipédia?’, e ela não queria acreditar.”
Até à pandemia levar ao isolamento social, os encontros faziam-se na Penhasco, em Lisboa / Fotografia de Carolina Venâncio Curvelo
“É engraçado olhar para trás e perceber que havia sempre histórias que tinha vivido, que tinha passado ou que tinha acontecido connosco nos nossos locais de trabalho ou no meio em que nós circulávamos e que partilhávamos, o que fazia com que estes encontros não servissem só para escrever”, diz Rita. Porque o conteúdo da Wikipédia “é um reflexo da sociedade”, “a própria plataforma não vai ser representativa enquanto a sociedade não o for”. Segundo um estudo feito em 2010 pelo Instituto Maastricht de Pesquisa Económica e Social em Inovação e Tecnologia da Universidade das Nações Unidas (UNU-MERIT), apenas 12,7% dxs editorxs da Wikipédia se identificam como mulheres.
Também Débora Diniz, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília comenta as desigualdades na Wikipédia como reflexo da sociedade
Tila Cappelletto, que começou a editar em Madrid, em 2015, pela mão de Patrícia Horrillo, conta que os desafios são uma constante e partilha que ao fim de cada encontro de edição pensa “qual será a página a ser questionada agora?”. A menção em órgãos de comunicação social e em estudos publicados no Google Scholar são dois dos factores tidos em conta pela Wikipédia para aceitar um perfil pela sua relevância, o que imediatamente se relaciona com a (falta de) representatividade também nestes meios. “No caso da Luana Génot, ela tinha muita cobertura mediática, mas não era considerada muito relevante, porque parecia que só tinha cobertura mediática. No caso da Foteini Vlachou, que era a historiadora de arte grega que fez a carreira em Portugal e foi muito importante para a evolução dos estudos sobre arte de periferia, também foi questionada porque não tem grandes meios de comunicação a falar sobre ela. Claro, porque ela é uma académica. Tem poucas menções no Google Scholar, e daí não é considerada relevante”, partilha.
Ana Bragança explica o processo: “há uma certa hierarquia na Wikipédia. Há quem tenha de fazer revisão e quem tenha alertas cada vez que um artigo é criado em português. A Wikipédia de cada língua funciona de uma forma mais ou menos autónoma em termos desta patrulha e destas regras. É esta parte da comunidade que tem este papel de rever o que é novo ou é criado, que vai propor eliminar ou rever, ou que vai dizer que não tem notoriedade”.
https://www.facebook.com/WikiEditorasLx/photos/a.115648873362423/143104430616867/?type=3&theater
As Wiki Editoras recebem de braços abertos quem se quiser juntar ao grupo de edição, que se quer cada vez mais inclusivo
Para alargar o processo de escuta, as Wiki Editoras, que agora se reúnem formalmente duas vezes por mês para editar, vão começando a convocar membros de outros circuitos para uma curadoria partilhada. “Você pode chegar e falar sobre um conteúdo que você desconhece, porque não é do seu grupo social - sejam mulheres negras, mulheres ciganas ou pessoas que não são hetero-normativas. Mas se você fala do que tem que ver com outros grupos sociais, é muito provável que eles queiram falar sobre o assunto”, explica Tila ao frisar a importância destes lugares de escuta. “E falando nas camadas de opressão, eu penso sempre que as mulheres escrevendo são, em grande parte, privilegiadas. Quem tem tempo para dedicar ao conhecimento livre e acessível a todos? É lindo, mas nem todas o temos. É por isso que, mesmo que essas mulheres não possam editar, acredito que ajudar num artigo já é um ganho. É uma experiência transformadora”, continua.
Para quem olha e não se encontra, a necessidade de redesenhar a História torna-se, a certa altura, urgente. Como olhar o mar sem desconfiar da diversidade que existe assim que se mergulha, crer que a História tal qual nos é apresentada nos manuais escolares é uma versão completa, impede-nos de ter um outro olhar sobre o Mundo — e sobre nós.
Foi precisamente pelo peso da ausência dos manuais de História da Arte que Bárbara Fonseca, Inês Costa e Patrícia Mafra, designers e ilustradoras portuguesas a viver em Berlim, se juntaram para criar um arquivo visual dedicado a artistas mulheres e não-binárias. Se num primeiro momento a ideia de arquivo nos remete para estantes cheias de livros ou a desorganização organizada do Ephemera, Herchive troca-nos as voltas ao habitar um lugar tão próximo quanto o Instagram.
“A ideia de ser um arquivo digital também nos interessava explorar, não ter aquela ideia de estar a vasculhar na gaveta os papéis com um cheiro a mofo. Trazer para o ecrã”, explica Patrícia Mafra através de uma videochamada entre a Alemanha e Portugal. “E pensar como é que os arquivos podem funcionar numa época digital. A ideia que nós temos de um arquivo ou de algo histórico é, muitas vezes, do papel ou do museu, algo muito institucional. O Instagram acaba por democratizar um bocadinho o acesso dentro desse espírito de procura de informação e de partilha”, acrescenta Bárbara Fonseca.
Bárbara, Inês e Patrícia completam frases e ideias como se algo noutra dimensão as unisse. A história dos seus encontros começa na Escola Artística António Arroio, onde Patrícia e Inês “sofreram a História da Arte juntas” — como dizem entre risos — e, quando se mudaram para Berlim, conheceram Bárbara. No momento em que a ideia do Herchive surgiu, começaram por fazer uma lista de nomes a ilustrar e, quando questionaram a longevidade do projeto ao apresentar uma pessoa por semana, perceberam que já tinham “um grupo que dava para três anos ou mais de Herchive”. Para reunir por palavras a informação em pequenas biografias, juntou-se mais tarde Melisa Gray-Ward.
https://www.instagram.com/p/B5YCEoPlZHJ/
Cada trabalho visual é acompanhado por representações de obras dx artistx
Tal como acontece nas Wiki Editoras, o Herchive procura olhares externos que trazem, naturalmente, nomes de artistas de universos que poderiam estar mais distantes do grupo-base. Patrícia conta que quando alguém se junta para ilustrar, tem liberdade para escolher “alguém com quem se identifique”. “Tem graça porque, às vezes, acabam por escolher artistas que lhes são próximas e que não conhecemos, porque não temos tanto acesso à informação e assim temos algo a que não teríamos acesso, por exemplo, com o Google”.
Os ecos dos vazios sentem-se de projecto para projecto, em jeito de reveberação constante. Talvez esteja mesmo tudo entrançado.
“Uma preocupação nossa é não ter apenas artistas que tiveram um caminho académico, ou que vieram de meios mais privilegiados. E não é fácil encontrar tanta informação sobre elas. Nós já tivemos artistas que acabamos por incluir no arquivo porque alguém fez um paper ou uma tese sobre elas, e é assim que vamos buscar informação”, explica Inês.
Ainda que Herchive seja um projecto a três, o objetivo é “criar uma comunidade” e “dar visibilidade não só às pessoas ilustradas, mas às artistas que ilustram e que estão neste momento no ativo”. Maria Keil ilustrada por Margarida Mouta, Tamara de Lempicka (Maria Gorska) por Elena Resko, Belkis Ayón por Marta Duarte Dias, Delia Derbyshire por Bárbara Fonseca, Norma Merrick Sklarek por Patrícia Mafra, Rosa Ramalho por Inês Costa. Por aí fora.
https://www.instagram.com/p/B9owA8aJqSr/
No Dia Internacional da Mulher, as ilustradoras partilharam alguns números e informações sobre representatividade na arte
O arquivo em constante construção já resultou num livro e numa exposição. Neste estilo camaleónico, vai respondendo aos desafios que vão sendo lançados e, dentro da indefinição do que poderá trazer o futuro, a definição é sempre a mesma: reescrever estes nomes na História criando um arquivo alternativo, na esperança de que as quotas de diversidade nos museus passem a ser “mais do que uma check list” e os livros de História da Arte reconsiderem as narrativas ainda incompletas.
Dar ferramentas para tecer a igualdade
Tal como num processo de tecelagem, é no entrelaçar de fios que foram ficando pelo caminho que a educação para os feminismos começa. Dando a ver que todos esses fios formarão algo em conjunto, e que, apesar das especificidades de cada um, todos cabem na teia e na trama.
Portuguesas com M Grande é um livro infantil que vive nas estantes analógicas e digitais das livrarias desde o final de 2018. Surgiu quando Lúcia Vicente, também autora da colecção Sarita Rebelde e de Feminismo de A a Ser, ficou grávida e percebeu que não se revia na literatura infantil disponível. Decidiu escrever um livro sem pretensão de o publicar, apenas para ler à sua filha quando nascesse, mas quando Histórias de Adormecer para Raparigas Rebeldes, livro de Elena Favilli, foi publicado, pensou que, afinal, já não ia ser preciso. Mas logo viu que estava enganada.
“Surgiu o Histórias de Adormecer para Raparigas Rebeldes e eu fiquei muito feliz, mas quando o fui folhear apercebi-me de que, em 100 mulheres, nenhuma era portuguesa. Para mim foi um bocadinho um choque, porque ainda que nós não tenhamos mulheres extremamente pioneiras dentro da História das Mulheres por uma série de circunstâncias, temos pelo menos uma: a Carolina Beatriz Ângelo, que foi a primeira mulher da Europa Ocidental a votar. Tendo em conta que nós temos o movimento sufragista, temos a primeira mulher na Europa a votar, porque é que ninguém fala nela?!”, questionou. Chegou a uma lista final de 42 mulheres portuguesas — não fosse 2018 o ano em que se marcavam 42 anos desde que as mulheres tiveram direito ao voto, em Portugal.
Portuguesas com M Grande reúne "mulheres, lutadoras, corajosas, independentes e livres"
Lúcia é licenciada em História, com uma vertente em História Cultural das Mentalidades, pela Universidade Nova de Lisboa. Na altura o curso não tinha uma cadeira de História das Mulheres e conta que era “uma luta constante” para convocar temas feministas para os trabalhos, inclusive por “a academia ser muito fechada”. “Ao longo de todo o curso, fui descobrindo várias portuguesas e ficaram sempre no meu imaginário. E quando surgiu o livro [Portuguesas com M Grande] foi impressionante, porque isto é um novelo de lã; começas a puxar, vais puxando e cada vez descobres mais, e mais, e mais. E pensas “meu Deus, onde é que estas mulheres andaram todas e porque é que ninguém fala sobre elas em lado nenhum?”.
Um ano depois da entrada de Lúcia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, em 1999, surgiu uma publicação semestral com o objetivo de enquadrar a(s) realidade(s) das mulheres em Portugal, Faces de Eva. Isabel Henriques de Jesus, codiretora, explica que esta era, e continua a ser, “uma forma de intervenção”. Num conjunto de textos que vão de “artigos académicos, com um cariz mais científico” a “rubricas” que “se destinam a um público em geral, com interesses em saber quem são as mulheres, o que têm feito, como se têm destacado”, a Faces de Eva pretende “dar visibilidade às mulheres”, para pensar como “chegar a objetivos comuns que são societais, civilizacionais”. Contudo, a própria revista aponta, através dos seus autores ausentes, ou do reduzido número dos presentes do sexo masculino, que essa chegada está longe ou que, afinal, a meta não é comum. Vejamos o gráfico sobre a participação de homens e a pertença de homens e de mulheres, nos artigos publicados:
Situemos estes dados na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, a cujo Centro Interdiscipinar de Ciências Sociais pertence esta revista, com estudo de Ana Cabrera Desigualdades de género em ambiente universitário: Um estudo de caso sobre a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, publicado em 2019.
De acordo com o estudo de Ana Cabrera, a NOVA FCSH é, atualmente, uma faculdade “maioritariamente feminina”, tanto em professorxs como alunxs. Ressalta o facto de a “maioria dos ingressos na carreira” ser “de mulheres, que entram como assistentes, com uma taxa de crescimento muito rápida e superior à dos homens, o que vislumbraria uma carreira de grande expectativa”, mas “(...) não alcança os lugares de topo correspondentes”.
Cerca de vinte anos depois de Lúcia ter começado a licenciatura, já existe um mestrado em Estudos sobre as Mulheres e um doutoramento em Estudos de Género na faculdade em que se licenciou. Mudaram-se tempos e programas, mas continua a ser exigida uma mudança social, que a própria faculdade, como o gráfico supracitado do documento denuncia, deve começar a ser tida em conta o mais cedo possível. Também é por isso que escreve para crianças.
Entre as 42 Portuguesas com M Grande, Lúcia procurou “um equilíbrio entre mulheres conhecidas e outras menos conhecidas”. “Por isso é que temos, por exemplo, a Celeste Mousar, que foi uma das primeiras mulheres polícia. Porque estas revoluções que acontecem, têm de acontecer a nível local. O facto de a Emmeline Pankhurst em Inglaterra, na mesma altura, estar a lutar, não implica que em Portugal se estivesse a lutar da mesma forma. E por isso é que há uma entrada no livro sobre as mulheres anónimas.”
Tanto Portuguesas com M Grande como a colecção Sarita Rebelde são para crianças, independentemente do sexo com que nasceram. “Acho que se está a fazer um trabalho muito bom ao educar as raparigas para enfrentar um mundo feminista, mas que nos estamos a esquecer um bocadinho dos rapazes. Claro que é muito importante este foco na educação das raparigas, para que elas tenham ferramentas para se defender, identificar e desconstruir, mas também é importante dar ferramentas aos rapazes para que eles percebam que também podem ser feministas. E quão importante é um homem ser feminista. Isto é tudo uma série de consequências”, sublinha a autora.
Enquanto em Portuguesas com M Grande dá a conhecer mulheres que a nível local, nacional ou internacional mudaram vidas, em Sarita Rebelde vira do avesso as histórias que colocam a personagem principal numa aventura pontuada por estereótipos. “A Anita nos anos 50 e 60 foi usada para formatar a maneira como as mulheres se deviam comportar — literalmente. Tu lês uma Anita, e percebes que é o espelho máximo de como o patriarcado pode influenciar na educação ou na visão que uma rapariga tem dela própria. Tem 7 ou 8 anos e cuida do irmão de 5, consegue lavar a casa toda, cozinhar, arrumar, porque aquilo é o que se espera dela quando está sozinha em casa. Portanto, a Sarita Rebelde surge em oposição a isso, para desconstruir aquilo que eu acho que deve ser desconstruído”.
Lúcia Vicente confessa que “é muito difícil combater e dar uma educação para a igualdade quando se dá um passo à frente e dez atrás todos os dias”. “Eu vou plantando sementes, seja na minha filha, seja nos colegas e nas crianças com as quais eu falo quando visito as escolas ou as bibliotecas. Se houver uma destas crianças que mude a sua maneira de pensar, já fico feliz”, partilha entre sorrisos.
Virar do avesso. Rebentar pelas costuras
Contemporaneamente, também há movimentos que, utilizando a expressão de Walter Benjamin, procuram “escovar a história a contrapelo”, acreditando que a verdadeira sororidade passa tanto pela reunião de intelectuais nos grandes centros urbanos, como no encontro com xs outrxs nas periferias. Qualquer pessoa é chamada ao movimento, porque, na verdade, é para a plenitude do ser humano, da sua forma de estar no mundo, de se viver, que se trata. É neste sentido que podemos olhar o trabalho do projeto Feminismos Sobre Rodas que, inspirado pela viagem de Maria Lamas, procurou pelas mulheres do seu país, num roteiro pelas costuras, de vilas e aldeias, não para impor a sua agenda, que reconhece situada, mas para as conhecer e para que se conhecessem entre si, criando momentos em que a vida fosse posta em comum e, desta forma, “reconstituir uma rede de solidariedade”, e para o coletivo PELE, particularmente o projecto Enxoval - Tempo e Espaço de Resistência. Este último propõe uma abordagem multiterritorial, transdisciplinar e intergeracional sobre a igualdade de género através das práticas artísticas, cruzando grupos comunitários do Porto e Amarante ao longo de três anos (2019/2021).” Neste âmbito, encontra-se a iniciativa ARCA Amarante, destinada ao Grupo Sénior Marão, constituído por mulheres das freguesias de Olo e Vila Chã do Marão, integrado no CLAP - Centro Local de Animação e Promoção Rural, e pelo Grupo Comunitário Intergeracional, e a ARCA Porto, cuja ação é desenvolvida com o Grupo Jovens e com o Grupo Mulheres da zona oriental.
Embora se tenha vindo a desvanecer, grande parte de nós, mulheres, ainda recebeu, ou recebe, a cada aniversário, os lençóis e a toalha bordada, os naperons ou o serviço de mesa. Talvez, este gesto de gerações de mulheres perante aquelas que se iriam “tornar”, tenha começado no berço. Estes objetos carregam em si a expectativa, ou mesmo o destino, do lugar da mulher na casa, que era inseparável do casamento, por sua vez da maternidade. Contudo, a transformação não passa por ignorá-los, nem desprezá-los, mas de dialogar com e a partir de, abri-los. A questão que se levanta não está em si mesmos, nem na herança ou na dádiva, mas noutro poder simbólico, naturalizado, que se lhes acrescenta, pois tantas vezes rodeiam a subjetividade, cercando-a e tornando-a num lugar rígido e opressor. Maria João Mota, cofundadora do coletivo PELE, recorda as camisas de dormir e os lençóis da noite de núpcias, bem como os espera-maridos (xailes usados para esperar o marido), trazidos por algumas senhoras de Amarante. Destaca, ainda, um caso particular. Na arca de uma participante, estava uma foice. “Quando se casou, o marido deu-lhe um rebanho de ovelhas. Ela, no dia seguinte à noite de núpcias, teve de acordar bem cedo e ir segar erva para lhe dar.”
"Enxoval, um bordado a muitas mãos" / Fotografia de Carlos Porfírio
Com o Enxoval, a PELE procurou que fossem as mulheres a rodear o que as rodeia, possibilitando uma revisitação de si. “As ARCAS, tradicionalmente usadas para acumular e conservar este espólio, abrem-se agora enquanto espaços de Ação, Reflexão e Criação Artística, propondo-se a construção coletiva, entre mulheres e homens, rapazes e raparigas, de um outro Enxoval.” No âmbito deste projeto, surge “Enxoval, um bordado a muitas mãos”, “uma instalação-performance que convida a criar um bordado comunitário, costurado a várias mãos. Para que as histórias das mulheres que nos inspiram fiquem inscritas na memória coletiva e nos motivem para a criação de uma sociedade de Direitos Iguais.” O bordado é acompanhado por um estendal, onde também estão os objetos que extravasam a arca e representam o seu empoderamento, como “luvas de boxe”, “livros” ou “o postal de Maria de Lourdes Pintasilgo”. A senhora que o levou “não esperava que uma mulher se pudesse candidatar a Presidente da República.”
Novos enxovais. /Fotografia de Carlos Porfírio
Também as linhas serviram as línguas nas rodas de tricot. Brincando com as “más línguas” associadas a esta atividade, o Feminismos Sobre Rodas convidou mulheres dos vários territórios por onde itinerou (Lousada, Barcelos, Amarante, Ovar, Viana do Castelo, Lamego, Resende, Miranda do Douro e Vimioso) a tricotar uma manta com as malhas das suas histórias, que se foram unindo, de mão em mão, umas às outras. Os pontos repetiam-se na violência e na desigualdade no trabalho. “Todas têm a perceção de que há desigualdade. Nas transmontanas, essa percepção tem mais que ver com as tarefas na agricultura. Por exemplo, numa conversa , uma senhora dizia: ‘o nosso trabalho é muito mais pesado. Na apanha da azeitona, enquanto eles andam a vergastar as oliveiras, quem verga a mola para apanhar as azeitonas do chão somos nós, mulheres’. Todo o trabalho agrícola é duro, mas o mais pesado está sobre elas e elas têm esta percepção muito clara, muito clara”, cita Marta Calejo, membro do Feminismos Sobre Rodas.
Este trânsito, aqui materializado, é desenhado ao longo de uma reflexão comunitária, em que, por vezes, a desconstrução e o confronto que se gera, surgem como um despertador. “Uma senhora estava a contar os conselhos que o pai lhe deu antes de casar, nomeadamente que o marido mandava mais do que a mulher, e que foi por isso que não teve problemas nenhuns no casamento. Aproveitámos e lançámos a questão ao grupo: acham que deve ser assim? Notava-se que havia ali um processo. ‘Pois, não devia ser assim...’ ‘A minha filha já não acata as coisas que eu acatava’. Vamos assistindo a esses debates internos. Também aconteceram situações engraçadas, em que elas estavam a cantar músicas que sempre cantavam e, de repente, nós apontávamos para uma que era incoerente, ou um ditado que supunha uma desigualdade de género. Elas ficavam a pensar”, nota Inês Lapa, que, com Maria João, partilha a direção artística do Enxoval. “Uma das músicas dizia: ‘ó rosa tu não consintas que o cravo te ponha a mão. Uma rosa desfolhada já não tem aceitação’”, lembra a última.
A repetição de discursos que, de tão normalizados, nunca confrontados, também se ouviu nas arcas das escolas, de jovens do 2º e 3º ciclo, junto dos quais a PELE também intervém, com a ARCA Porto. “Uma vez, uma das mais aguerridas, curiosamente, estava a dizer que uma rapariga estava com uma saia curta e estava mesmo a pedi-las. E, na altura, foi um ‘parou tudo. Porque estava mesmo a pedi-las?’ Toca a desmontar estas coisas todas. Passado um tempo, ela veio e disse ao grupo: ‘estive a pensar naquilo que disse e que não faz sentido nenhum’. No outro dia, tive exatamente a mesma questão com um dos miúdos, que disse que ia, no carnaval, mascarar-se de prostituta, a trabalhadora do sexo. ‘E como é?’ ‘Com uns calções muito curtos’. ‘Estás a ver o que estás a dizer?’ ‘Ahhhh pois…’”, conta Maria João.
No contexto urbano, este trabalho, que passa pela criação artística, estende-se a outro tipo de ações, com uma dimensão política e pública mais acentuada e direta. Ainda para estes jovens, foi criada uma oficina de cartazes, com vista a serem utilizados na manifestação do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, os quais integraram o estendal, que se tem vindo a acumular. “Para todos, era a primeira vez que participavam numa ação política, numa manifestação, e são todos jovens que moram no centro da cidade. Foi super difícil pensarem nas frases, mas lá cada um fez o seu cartaz. Fomos para a rua e foi absolutamente catártico. Eles estavam absolutamente loucos a gritar. Uma delas, que não foi autorizada, mas viu pela televisão, disse-nos uma coisa incrível: ‘Nunca imaginei ver homens a gritar pelos direitos das mulheres’. Depois, dissemos: ‘vocês não podem ir para a rua gritar aquelas coisas todas e não assumir o compromisso daquilo que se grita. Vocês agora têm testemunhas do que foram dizer para a rua.’ Alguns deles continuaram a participar noutros movimentos e manifestações. Neste ano foi o contrário, já vinham com umas ideias definidas. Uma delas, que é uma miúda muito jovem e bastante tímida, quis falar da sua menstruação e fez um cartaz com um penso higiénico pintado de vermelho e a dizer ‘orgulha-te’”, partilha Maria João.
A relação com a menstruação não é situada nem datada. “As histórias das senhoras de Amarante, de quando tiveram a sua primeira menstruação e lidaram com isso, não era diferente da de uma menina de 12 anos, agora.” Alguns nós permanecem, outros refazem-se. “Temos de ter sempre cuidado. Muito facilmente voltamos para trás”, chama a atenção Isabel Henriques de Jesus. Maria João tem assistido a isso no que toca à relação das e dos jovens com a questão do assédio sexual, trabalhado em “#NãoéNão”, um teatro fórum que explora esta problemática, a partir das histórias reais partilhadas pelo grupo, com idades entre os 12 e os 18 anos. “Quando começámos a fazer, com o teatro fórum, um trabalho sobre violência no namoro, em que havia uma cena em que o namorado controlava o telemóvel e a saia que a namorada vestia, isso era logo apontado como um problema e, ao longo do tempo, foi sendo normalizado.”
As fragilidades socioeconómicas são um impedimento à libertação, na medida em que o desemprego, o emprego precário, os baixos níveis de escolaridade, a maternidade jovem, a monoparentalidade, são problemas que se potenciam mutuamente, formando uma rede que impede o movimento, que é difícil furar. “Nestes contextos de maior pobreza e de exclusão social, a consciência dos teus direitos e daquilo que és enquanto mulher é absolutamente reduzida. E, quando trabalhamos com comunidades mais específicas, isso ainda é mais complexo, nomeadamente mulheres das comunidades ciganas. (...) É muito difícil, porque estamos a propor um espaço de participação focada no feminino, e a verdade é que estas mulheres, desde crianças, têm uma perceção da sua participação absolutamente limitada e complexa. Muito pouco mudou. Basta tu saíres das bolhas onde te moves que a realidade não é essa, de todo.” Tratam-se de “zonas de vulnerabilidade, onde se acumulam mais coisas, se tem menos poder, menos participação no espaço íntimo e muito menos no espaço público”, explica Maria João, a partir da experiência da PELE em bairros sociais da zona oriental do Porto.
É também aqui que a dimensão artística da abordagem permite a aproximação e não a imposição. Na verdade, é a escuta de si e dos outros, a perceção de que se é escutado, logo, que se tem voz, um lugar de fala, a nascente do seu próprio reconhecimento. Por isso, a PELE procura, em qualquer projeto de intervenção, que o fio seja lançado pela comunidade, pois, só assim, pode ir ao encontro e caminhar com esta, nas suas especificidades e necessidades. Caso contrário, seria um grupo de pessoas ficcionado e os esforços cairiam no vazio. “Os processos de criação começam com uma pergunta aos grupos, normalmente é: ‘o que vocês querem dizer?’”
Pelo facto de muitas destas pessoas habitarem numa profunda precariedade que as expõe, a PELE esforça-se para preservar a sua identidade, para as cuidar. “Então, sempre tentando que estes espaços de partilha sejam o mais seguros possível, não utilizando, na maior parte das vezes, a primeira pessoa, tentamos encontrar outros dispositivos que nos permitam trabalhar as histórias, como forma de reescrita de narrativas. Aí a arte é um espaço fundamental, porque nos permite essa reescrita de narrativas, assumir outros lugares, imaginar outros futuros e presentes, e permite-nos concretizá-los, obviamente em coletivo, apresentar isso e sermos também vistas de formas que normalmente não o somos, permite-nos desmontar ideias pré-construídas. Usamos sempre mecanismos que nos protegem. Permite-nos contar histórias a partir de objetos que sejam próximos, íntimos, seja de uma fotografia, um desenho, do corpo. Trabalhamos com o corpo mais numa primeira fase para depois passarmos às palavras.” Estes lugares podem ser ventres, não só porque convocam a força coletiva, onde as narrativas se entrançam, rompem a solidão dos fios, sem os perder, mas também porque são geradores, pois a criação diz-nos sempre que podemos mudar um estado de coisas, na medida em que apareceu algo que não existia. Torna-nos autores. O objeto criado devolve a nossa condição de sujeitos. O desejo da PELE é que esta experiência seja transferida para a vida, transbordando-a, dilatando-a, parindo-a, embora reconheçam que “as artes não são uma varinha de condão que muda a realidade, sobretudo quando falamos de comunidades e grupos que acumulam muitas vulnerabilidades”, nota Maria João.
Porém, apesar das dormências, há algo que Maria João, Inês e Marta observaram nos diversos fios com os quais se envolveram. “Existe a normalização da opressão, mas não existe uma pacificação. Basta abrires o espaço e acenderes o gatilho, que está tudo lá. A vontade de mudança e o inconformismo perante isso, existe. Não está pacificado, seja com as senhoras do Marão, seja com o grupo de jovens do Porto”, diz Maria João. Referindo-se à consciência das mulheres transmontanas sobre a desigualdade no trabalho, que o próprio corpo curvado denuncia, Marta Calejo reconhece: “elas têm esta percepção muito clara. Depois podem ter ou não a capacidade de reivindicação.”
Reparemos que todos estes testemunhos não nos falam do silêncio, mas da vida calada. “Se queres que elas falem da forma como sentem as opressões nos seus contextos, a presença de um homem, do seu marido, por exemplo, pode dificultar essa partilha. Em Trás-os-Montes, isso não foi possível, elas apareceram levadas pelos seus maridos e o que acabou por acontecer foi que não falaram. Eles é que falaram. Elas pouco falaram, se é que falaram. Elas tinham falado connosco antes, de manhã. Cruzávamo-nos nos campos e nas ruas. Eles negavam, diziam ‘não, a sociedade já está toda igual, ‘as mulheres já podem fazer o que querem’, ‘já mandam mais que nós’.”
Por isso, há que ter cuidado com o contexto, que é sempre outro texto. As fronteiras geográficas falam-nos de outras, que nos gestos, desencadeados por estes encontros se revelaram. “Basta sairmos dos centros urbanos e, se calhar, de um grupo muito restrito com o qual nos relacionamos que, possivelmente, são ativistas e feministas, para percebermos que muito pouco mudou relativamente à percepção que as mulheres têm de si próprias e dos seus direitos”, nota Maria João. “O Feminismos Sobre Rodas permitiu chegar à dona de casa, que não sai da sua casa para um coletivo. Nas rodas tivemos donas de casa que nunca se tinham envolvido em nada na vida. Estas conversas foram a primeira vez em que foram chamadas para pensar na sua condição, neste caso de mulheres.”
Algo se destaca em todas as experiências, a importância de se contar para não ser contada, descontada. Cada uma vem com a sua história, e é com ela que se diz, com o que tem. As circunstâncias das Três Marias, por exemplo, permitiram-lhes a escrita literária e erudita e as destas mulheres, o discurso oral, o do sopro e do hálito. Cada corpo acrescenta um ponto. Mas muitos não sabem. Por isso, quando as escutamos, estamos a reconhecer-lhes a presença e a dizer-lhes que nenhuma vida está na sombra de outras. Foi neste sentido que se deslocou a bicicleta de Carolina Mesquita. “Escreve-se muito sobre a história dos heróis. As pessoas comuns são muito vistas como um todo. Sempre gostei de ouvir as mulheres mais velhas e sempre achei que era um segmento da população um bocadinho deixado, não só pela idade, mas também por serem mulheres”, conta Carolina, que durante dois meses pedalou, sem planos, pelas aldeias do Alto Minho e de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Dona Deolina, em Rio de Onor. / Fotografia de Carolina Mesquita
Geralmente, quando chegava às aldeias, dirigia-se ao café para perguntar qual era a senhora mais velha e que tivesse histórias interessantes para contar, uma forma de recolher algumas referências. “Em toda a viagem eu não queria nada. A única coisa era estar aberta ao que as pessoas me quisessem contar e mostrar. Sabia as pessoas com quem me queria encontrar. Mas, a partir dali, era ouvir.” Carolina entrou no interior dos seus quotidianos. Numa das viagens por uma casa, “uma senhora foi, literalmente ,desde a cave ao armário. Tinha histórias sobre tudo, desde quando tinha vestido aquela peça de roupa a onde tinha apanhado aquela abóbora.” Sentou-se à mesa, partilhou os lanches e os passeios, viu as fotografias de família e escutou, escutou, escutou. “Não estão habituadas a esse olhar, a essa escuta.” Carolina registou As Matriarcas numa conta de Instagram e, mais tarde, num livro, em que os sons se confundem com as imagens: “Surge-me sempre os olhos e a cara delas. Havia ali um momento mesmo de viragem, que eu percebia. Como se me conhecessem há muito tempo…”
Carolina apresentando o livro "As Matriarcas" a Zaia. / Fotografia da cortesia de Carolina Mesquita
Este encontro intergeracional nem sempre acontece formalmente em grupos organizados e a transformação acontecendo em quem o trava encontro como em quem colhe os seus frutos. No caso da UMAR, a “associação que é quase uma instituição”, como diz a coordenadora do Centro de Cultura e Intervenção Feminista (CCIF), Joana Sales, “a partilha entre companheiras de diferentes gerações” é constante. “Aprendemos muito umas com as outras; as mais novas com as mais velhas, e as mais velhas também com as mais novas. Noto que as mais velhas tentam estar abertas também a novas perspetivas e questões que vão surgindo com as mais novas, porque a sociedade também muda. Embora ainda haja muitas lutas que são as mesmas - como o sexismo da sociedade - e permanecem apesar das evoluções, também há outros contextos que não haviam na sociedade dos anos 70, 80 ou 90”, partilha.
Sendo o CCIF “um lugar de fala”, privilegia testemunhos na primeira pessoa e um diálogo constante entre o(s) tempo(s). Pela proximidade à cultura e às suas intervenientes, este braço da UMAR olha ao microscópio as questões de género dentro de um setor que “ainda não as reconhece”. A associação fundada em 1976 e que, entre a liberdade e os medos do pós-25 de Abril, tinha mais de duas mil mulheres associadas funciona, ainda hoje, numa lógica de voluntariado. Joana conta que só conseguiram “a partir de 2016 um financiamento a partir da Secretaria de Estado para a igualdade de género, mas de 2011 a 2016 foi tudo feito exclusivamente em voluntariado”. “Ainda hoje muito do trabalho é feito em voluntariado e não temos recursos por aí além.”
Ainda que com poucos recursos esta associação-mãe continua a encontrar na união entre as mulheres a força para ter alternativas e dar e ouvir respostas. Tendo em mente que “há mulheres portuguesas de todas as cores, de várias origens”, a UMAR “tem tentado refletir e convocar essa diversidade” que, segundo Joana Sales, também tem sido muito desconstruída “pelos Estudos de Género e Pós-Coloniais”. “É um trabalho muito longo, que não começou agora com estes coletivos mais recentes, mas em que cada um vai dando o seu contributo e a coisa vai-se desenvolvendo. Da mesma forma que a Grada Kilomba disse que há dez anos não era possível a publicação do seu livro porque Portugal não estava preparado, na altura, para aquilo, no ano passado sentiu que já estava. Às vezes as coisas demoram muito mais tempo do que aquilo que queremos, mas creio que, por um lado, temos avançado bem, apesar das políticas da cultura em Portugal e da ascensão da extrema direita pelo Mundo.” Existe um receio constante do retrocesso.
Para tatear as linhas com que nos cosemos, são precisas mais linhas e línguas. Procurámos escutar o que as contemporâneas têm tecido. Mas o texto é em trânsito. Continuaremos a receber as cartas, que são sempre novas, mesmo de quem partiu. Que nenhuma se perca. Damos, assim, início a uma rubrica, a uma manta de retalhos. Continuaremos.
[1] Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa. - 1ª ed. anotada (9 ª ed. do texto), “Eis-nos”, Novas Cartas Portuguesas, Lisboa : Dom Quixote, 2010, p.30
[2] “Senhora”, Op. cit. p.18
[3] Maria de Lourdes Pintasilgo, «Prefácio (leitura longa e descuidada)», Op.cit., p. XXXII