A necessidade de um sistema de proteção laboral dos trabalhadores dos espetáculos adaptado às circunstâncias e contexto do funcionamento do setor cultural em Portugal tem sido um dos aspetos mais debatidos desde que os impactos profundos da crise de 2010 se fizeram sentir em Portugal.
Embora a tentativa de regulamentar um sistema de prestação laboral definido por características e princípios singulares de funcionamento, é certo que a precariedade que grassa em Portugal neste setor não lhe é exclusiva, estendendo-se vastamente a outros domínios de atividade.
Específico será certamente o recurso a formas laborais precárias em consequência da grande mobilidade de relações de emprego existentes, decorrente de um setor constituído maioritariamente por profissionais liberais por um lado, e por pequenas e médias organizações, por outro, designadas geralmente como “terceiro setor” ou “Setor Profissional de Iniciativa não Governamental”, submetidas elas próprias a uma “dinâmica de projeto” impondo métricas distintas, inclusivamente, em termos de contratação de equipas e recursos.
Embora desde o início a regulamentação conhecida para este domínio de atividade (Decreto 13.564, de 6 de Maio de 1927) assentasse sobretudo no conceito de artista (dramáticos, líricos ou variedades), a complexidade das relações laborais no contexto cultural sempre se colocaram com maior acuidade ao nível da produção artística pressupondo na sua realização a existência de um coletivo; em suma as artes cénicas e o cinema.
É, portanto, nestas realizações performativas que se revelam as relações laborais mais complexas ditadas, sobretudo pela fugacidade e singularidade inerente em cada projeto realizado, quer em termos de alocação dos recursos necessários, quer em termos da garantia e persistência desses mesmos recursos para o alcance do resultado global.
A recente crise sanitária em que nos vimos mergulhados nos últimos meses veio de forma ainda mais aguda e profunda colocar a tónica na ausência de uma regulamentação, que cabe efetivamente ao estado definir, revelando de forma ainda mais eloquente, não penas uma precaridade relacionada com os, ainda, reduzidos recursos materiais e seu investimento (em função das reais necessidades do setor), reforçada porém, neste caso, por uma ausência de enquadramento legislativo regulamentador que considere, como referimos, um contexto de especificidades e singularidades.
Não obstante, é importante sublinhar uma outra consequência decorrente da paralisação abrupta de atividade deixando subitamente sem possibilidades de subsistência centenas e centenas de profissionais; diz ela respeito a uma rotação de perspetiva, em meu entender, da maior importância, entre a construção de um “estatuto do artista” e um “estatuto do profissional de cultura”. Assim sendo, a situação de grande instabilidade veio, se não revelar, pelo menos reforçar muitíssimo, aos olhos da opinião pública, que as atividades artísticas e culturais relevam sobretudo de um princípio coletivista ao qual qualquer enquadramento legislativo terá de dar voz e existência.
Ainda na mesma perspetiva da sua construção e, com toda a evidência, perante o carácter lacunar e disperso da legislação existente, será necessário ressalvar ainda que tal processo possa ser desenvolvido em relação direta com o meio e os seus “atores”, por um lado, tendo, por outro, a consciência de que se está a agir sobre uma realidade que conheceu uma transformação e um desenvolvimento de quase três décadas, em que a capacidade de resposta a necessidades conjunturais prevaleceu sobre uma planificação e uma reflexão de cariz mais estratégico. O mesmo será dizer que, neste domínio, como em tantos outros, fomos mais reativos do que pró-ativos.
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.