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Opinião de Paulo Pires do Vale

Desaprender

Na sua procura de relação directa com a vida, Alberto Caeiro encontra um enorme obstáculo….

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Na sua procura de relação directa com a vida, Alberto Caeiro encontra um enorme obstáculo. Descreve assim essa dificuldade:

“o essencial é saber ver,
saber ver sem estar a pensar,
(...)
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender.

Fernando Pessoa, consciente de trazermos a alma vestida pela cultura, pela educação, pelas expectativas de outros, pelos preconceitos, a moral, a linguagem, pelo sistema simbólico em que nos encontramos, sabe que o seu programa é uma luta, uma aprendizagem de desaprender. Não é espontâneo nem rápido. Nunca está terminado. É preciso continuamente purificar o olhar, os sentidos, presos ao que já conhecem ou pensam conhecer. Desaprender os códigos impostos e aceites, que tantas vezes não deixam aceder aos sentimentos próprios mais verdadeiros. Amontoamos experiências, mas, muitas vezes, como quem mobila uma casa e nela já não se pode mexer. Seria preferível podermos afirmar com Montaigne: “prefiro forjar a minha alma a mobilá-la”.

Uma outra nota pedagógica que Pessoa nos oferece é esta: é preciso destruir a casa pré-fabricada para ajudar cada um a construir, a forjar, a sua casa. Esse deve ser o papel do educador: não impor uma casa, mas possibilitar a sua construção, dar instrumentos e, acima de tudo, oferecer a argamassa, o cimento que una todos os blocos. Impomos demasiadas vezes casas pré-feitas – modelos standard – e poucos instrumentos para auto-construção. Alberto Caeiro reflecte-o:

“O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
(...)
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.”

Transportamos connosco uma cegueira a que Caeiro chama, abusivamente (dirá o filósofo!), “filosofia”, o pensamento que manipula os sentidos e que não deixa sentir, ou esconde esse sentir, por não ser conforme ao imposto ou desejado. Habituamo-nos a essa máscara que a socialização do sentir nos dá, e ela fica tão presa que já não se consegue sequer tirar para ver a face verdadeira que se esconde por detrás. “Quando quis tirar a máscara,/ estava pegada à cara” – escreve Álvaro de Campos. Já não é apenas o pensamento. Na verdade, o próprio sentir é já-dado. Um sentir manipulado e antecipado.

Mas, sem ingenuidades, haverá possibilidade de fugir a este dado? A humanidade constrói-se inevitavelmente na mediação da linguagem, da moral, da estética, da tradição, do sentido dado. E tendo consciência disso, a educação, e os educadores, têm um papel fundamental:

- por um lado, um trabalho preventivo, não embrulhando ou escondendo o que o educando sente ou pensa, dar-lhe espaço/tempo para que o sinta e o enfrente;

- por outro lado, ajudar a desaprender quem necessita de ser desembrulhado. Mas, antes de mais, isso é algo que os próprios pais e educadores têm de fazer em relação a si mesmos, sobre si mesmos, antes de o propor a outros. Facilmente o educador repete modelos, reprodu-los inconscientemente. Diz o que não quer ou não devia, tem reacções imponderadas, inconscientes e, nessas situações, revela o que apreendeu e está enraizado – mesmo que o negue cognitivamente. Trazemos a alma vestida por outros, convencidos que o vestido é nosso. É tomando consciência desta fragilidade – e assumindo-a como sua – que a autenticidade do educador se poderá revelar e promover, então, uma educação que permite a autonomia.

Facilmente vivemos de “alegrias e tristezas catalogados” – como lhes chamou Clarice Lispector, e “não nos entregamos a nós mesmos, com receio da vida larga que se pode abrir”. Como viver as paixões, o amor, o desejo, o medo, o sentimento numa sociedade tão mimética? Como educar a afectividade e os sentimentos sem os forçar à máscara? Como aceder ao nosso sentir mais autêntico?

Na senda de Arno Gruen, proponho que “autónomo” é alguém que se conhece e acede ao seu sentir mais profundo. Aceder à sua intimidade, aos seus sentimentos, sem os excessivos constrangimentos socialmente impostos, indo para alem do “já-sentido”, é a autonomia que a educação deve proporcionar. E as artes podem ter aí um papel determinante.

*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Paulo Pires do Vale-

Filósofo, professor universitário, ensaísta e curador. É Comissário do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, desde Fevereiro de 2019.

Texto de Paulo Pires do Vale
Fotografia de Tomás Cunha Ferreira

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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