No corpo de trabalho de Tânia Carvalho encontram-se coreografias, desenhos, vídeos e música. Apesar de o trabalho enquanto coreógrafa ser o que mais tem levado o seu nome à imprensa e aos palcos, Tânia sente que coreografar é algo que faz, que entra profundamente na sua vida, mas que não a define. Na verdade, nenhuma das coisas que tem feito a define — “somos muito mais do que aquilo que fazemos”, diz-nos numa entrevista a dias de inaugurar “Toledo”, uma exposição de desenhos seus no Convento de São Francisco, em Coimbra.
Esta é, pelo menos, a terceira vez que Tânia Carvalho expõe “Toledo”, um conjunto de desenhos que, como a própria conta, lhe lembram tolices e transportam o corpo para os limites do papel, que questionam os limites do palco. Executar as coreografias desenhadas por Tânia em “Toledo” não seria humanamente possível, mas é por isso mesmo que estes “bonecos”, corpos estáticos, comunicam entre si apenas na bidimensionalidade.
Até ao dia 29 de novembro é possível vê-los e mergulhar numa parte considerável, mas ao mesmo tempo ínfima, da obra de Tânia Carvalho. O Gerador procurou-a para entender que lugar ocupam no seu trabalho, mas a conversa estendeu-se, inevitavelmente, para a sua visão da arte — e da vida.
Gerador (G.) - Já expuseste “Toledo” em 2014 e, segundo vi, foi a tua primeira exposição individual. O que é que significa este regresso seis anos depois? O corpo de trabalho é o mesmo ou sofreu alterações?
Tânia Carvalho (T.C.) - Em 2014, expus em Guimarães e, entretanto, já o fiz mais vezes, em Marselha, em 2016, depois no BoCA, e agora vai estar em Coimbra. Os desenhos para mim são quase sempre os mesmos, mas eu vou mudando; vou fazendo alguns novos, e outros que não vendem ou vão ficando aqui, por vezes não exponho mas acabam por voltar. Na verdade, os desenhos, na sua totalidade, nunca são exatamente os mesmos, mas são muito parecidos. Faço quase sempre a mesma coisa, porque é uma espécie de exercício a que me proponho: ponho o papel à frente e vou desenhando aqueles bonecos.
G. - Mas parece um desenho quase instintivo, que te sai naturalmente — talvez como te acontece na dança. Li algures que os desenhos eram uma extensão do teu trabalho coreográfico e, de facto, o corpo é uma figura central em ambos. Usas os limites do papel e do desenho para transgredir os limites do palco e dos corpos humanos?
T.C. - É um bocado isso; é como se fossem figuras que conseguem fazer cenas que nós não conseguimos. Não é planeado, mas quando vejo isso, reparo que normalmente os desenho em equilíbrio ou em posições que não conseguimos fazer. Os desenhos também têm que ver com o lado de fisicalidade, o que o corpo consegue fazer ou não, e como se relacionam uns corpos com os outros. Há uns que são bonecos desprovidos de objetos, há outros que têm objetos associados, mas os que são só corpos é como se fosse uma grande coreografia ou apenas pessoas a compor um desenho em conjunto.
G. - Tu estudaste artes plásticas antes de seguires a tua carreira coreográfica, não foi?
T.C. - Fiz o primeiro ano nas Caldas [da Rainha] porque estava indecisa, e não sabia se ia escolher artes plásticas ou dança. Fui para artes plásticas, mas depois mudei.
G. - Tens primeiro uma relação com a bidimensionalidade ou com a tridimensionalidade?
T.C. - Eu comecei as aulas de dança aos cinco anos, foi bastante cedo, mas desenhar deve ter sido antes. Se bem que é muito paralelo… não consigo perceber o que é que vem primeiro na minha vida. Tanto é que eu para fazer coreografias, muitas vezes, também faço desenhos; e quando estou a fazer desenhos, imagino coreografias. Não há uma ordem, acho.
G. - E porquê Toledo?
T.C. - Em Viana do Castelo nós dizemos “toledo” para nos referirmos a uma tolice, e é isso que sinto quando vejo aqueles desenhos. Quando faço coreografias também há aquelas partes que são mais “tolas” e os bailarinos já conhecem bem, então eles próprios dizem “ah, vamos ensaiar aquela parte do toledo”. E eu relacionei muito essas partes das coreografias com estes desenhos — sobretudo os que estão a fazer imensas coisas no papel.
G. - No texto que o John Romão escreveu para a tua exposição na BoCA, de que nos falavas acima, diz que “há referências ao barroco e ao grotesco” nestes desenhos. E, na verdade, essas referências vão atravessando a tua obra como um todo, não apenas no desenho. Interessa-te levar para o palco ou para o papel o que por definição é reprimido?
T.C. - [risos] Eu devo levar, provavelmente, por instinto, mas não é algo que pense à priori. Deixo-me levar pelas coisas que vão surgindo, e provavelmente há muitas coisas que estão reprimidas e que saem… eu vejo isso mais nos desenhos do que nas coreografias, porque como são bonecos conseguem fazer mais o que a imaginação pede do que um corpo. Um corpo tem muitos limites, que o boneco, desenhado, não tem, o que talvez me permita mostrar essas zonas mais proibidas, mais reprimidas. Não propositadamente, mas sem querer, acho que saem.
G. - E esses limites do corpo acabam por ser os limites do que a mente permite (?)
T.C. - Sim, claro! Há coisas que os bonecos fazem que eu nunca iria fazer [risos]. São coisas mais terroríficas e que moram no nosso subconsciente, mas que ao mesmo tempo temos de aceitar que elas estão lá.
G. - Da última vez que conversámos, estavas com “Onironauta”. Agora vi que, entre outras coisas, tens estado num projeto de curadoria de workshops com o grupo Dançando com a Diferença, com quem tens uma relação há algum tempo. Pensar os limites do corpo também passa por pensar os limites da dança e quem cabe dentro daquilo que é o conceito de bailarino ou intérprete?
T.C. - Esse conceito de bailarino ou intérprete, e mesmo de outras profissões, é muito questionável. Por exemplo, eu canto e não digo que sou cantora, eu toco piano e não digo que sou pianista, também não digo que sou artista plástica e faço desenhos. Mas também digo que sou coreógrafa, porque tenho de dizer alguma coisa. Quando me perguntam “o que és?”, eu tenho de dizer que sou coreógrafa. Quando, na verdade, eu não acho que seja isso, eu faço isso — não é a mesma coisa. Por isso, eu acho que ninguém é bailarino. As pessoas fazem dança e são bailarinas naquele momento, mas fazem muitas outras coisas. Nós somos muito mais do que aquilo que fazemos. Um bailarino é um bailarino a partir do momento em que está a fazer isso no palco ou como experiência profissional, e os limites desse bailarino existem dentro dos limites da própria ideia da peça. Há peças que precisam de bailarinos com determinadas características, e há outras que até precisam de bailarinos que nunca fizeram dança na vida. E, para mim, eles são bailarinos naquele momento. Eu própria digo que já não sou bailarina, mas vou dançar num espetáculo meu em Coimbra. A dança dá para ser feita de tantas formas…
G. - Mas achas que esse querer afirmar não tem que ver com uma falta de seriedade com que se olha para a dança enquanto profissão?
T.C. - Eu acho que as pessoas devem dizer o que sentem, mas vejo isto como algo que fazemos, não como o que somos. E cada pessoa, por mais que tenha um limite, tem uma característica que é só dela.
G. - E as coisas que fazes no teu trabalho marcado pela multidisciplinariedade, consegues vê-las como um rasto umas das outras?
T.C. - Estão ligadas porque saem daqui, ou passam por aqui. Nas diferentes áreas, a forma é a mesma. Acabam por estar sempre misturadas inevitavelmente; mesmo no vídeo, existe movimento, luz, som. Isto é complexo de perceber… [risos]
G. - Há pouco dizias que vais voltar a dançar, num espetáculo em Coimbra. Com a pandemia sentiste uma vontade de te recolher e desenhar?
T.C. - Fiz alguns desenhos, mas o que mais me surgiu na altura do isolamento obrigatório, foi a música. Foi o que senti mais falta de fazer, porque é a área que mais mexe comigo. Principalmente cantar. Parece que quando canto, sai algo mesmo cá de dentro. Até fico um bocado exausta depois de cantar, porque é algo que vem de dentro.
G. - Cantar também é testar os limites do corpo? Ou a voz é algo superior ao corpo?
T.C. - A voz consegue trazer coisas que estão para lá do corpo, que o transcendem. O movimento também mas, no meu caso, consigo ir a sítios mais internos, ou mais profundos, nem consigo bem explicar… parece que vou a sítios que com outros meios não vou, e nem sei que sítios são esses. Mas ultrapassa o nível do corpo, disso tenho (quase) a certeza.
G. - Talvez sítios que não tenham de ser necessariamente de auto-conhecimento.
T.C. - É uma coisa que não está aqui, mas passa por aqui. Não faz parte do meu corpo.
G. - Expor os teus desenhos também é dares algo que não é só teu — ou que deixa de ser apenas teu?
T.C. - Muitas coisas também já eram dos outros. Nós estamos ligados e há coisas que não vêm só de mim. Por isso é que, às vezes, vemos algumas coisas e nos identificamos, porque somos apenas meios para pôr cá fora coisas que são nossas, mas também dos outros. Então, os meus desenhos são postos cá fora por mim, mas não são meus.
Podes saber mais sobre “Toledo”, aqui.