Noiserv acabou de lançar “Ao vivo na Cassete”, uma edição limitada que reúne 13 canções gravadas nas 12 primeiras salas da digressão de apresentação de Uma Palavra começada por N , álbum editado em setembro do ano passado.
Conversámos com o músico, compositor e intérprete David Santos sobre este projeto e também sobre o disco, que, dias depois da nossa conversa, foi selecionado, entre os associados AMAEI - Associação de Músicos, Artistas e Editoras Independentes, para o Prémio IMPALA – Best European Independent Album of 2020.
Como nos conta, “Ao vivo na Cassete” nasce da vontade de “ter um registo daqueles concertos todos que foram feitos, que foram complicados, por muitas situações, pela tal sorte de ter tantas datas e conseguir, se calhar, ter ali uma nova experiência”. Cada uma das músicas foi gravada num dos 12 concertos de apresentação do álbum. “Começo a falar em Braga e depois continuo numa outra cidade. A pessoa ouvir de uma ponta a outra e perceber uma unidade entre coisas que aconteceram em dias diferentes também era um desafio engraçado que queria experimentar”, explica o artista. De Braga à Marinha Grande – no Lado A – e de Ponte de Lima a Vila Real – no Lado B –, ouvimos, nesta edição limitada, temas gravados também em Fafe, Castelo Branco, Piodão, Torres Novas, Ílhavo, Póvoa de Varzim, Porto e Lisboa.
Quando, na reta final de 2019, o músico anunciou que ia lançar um novo trabalho no ano seguinte, longe estava de imaginar a pandemia que iria trocar os planos a muitos artistas. Mas não foi o seu caso. Alguma sorte com as datas fez com que as primeiras apresentações do disco estivessem agendadas para um período de maior desconfinamento, em que foi possível concretizá-los. Algures em janeiro de 2020, quando Noiserv marcou os concertos de Lisboa e Porto, apenas a quinta-feira estava disponível na cidade Invicta. “Lembro-me de pensar — «que chatice não poder ser uma sexta e um sábado. Se calhar, à quinta as pessoas não podem vir tanto». Depois, de repente, se tivesse sido no sábado, esse concerto teria de ter sido mudado, porque estávamos já na altura das restrições de fim de semana”, relata, dizendo também sentir-se grato, por, perante a possibilidade de as pessoas não quererem ir aos espetáculos por receio da pandemia, tal não ter acontecido. “Cada disco é sempre uma luta, ou seja, é sempre um conjunto muito grande de indecisões e de não saber se as pessoas vão gostar, se não vão gostar, se vai correr bem, se não vai correr bem. Mas, neste caso, parece que houve assim uma energia até maior por parte das pessoas a dizerem que fez sentido fazer nesta altura, que, independentemente de tudo, quiseram estar presentes, quando o disco passou na cidade onde estavam.”
Se o álbum tivesse saído e não tivesse podido apresentá-lo ao vivo, diz, ficaria algo “sempre em aberto” e incompleto. “Acho que o disco só se torna mais verdadeiro quando o podes tocar, quando as pessoas querem assistir ao disco ao vivo, quando depois eventualmente podem, ou não, comprá-lo”, afirma o artista.
"Ao vivo na Cassete" foi lançado no passado dia 14 de janeiro
“Ao vivo em Cassete” pretende agora recriar, quase em pleno, a experiência que se vive nos concertos desta digressão. A cassete é apresentada num formato que recria o cubo tridimensional que o músico lisboeta ocupa nos espetáculos. “Sendo as músicas ao vivo, parecia que havia uma experiência um bocadinho mais verdadeira naquele registo ao vivo, porque a cassete estava dentro do cubo onde também toquei as músicas.”
O cubo surgiu, pela primeira vez, no programa “Eléctrico” da RTP, ainda como um cubo de luz estática. Depois, acabou por se tornar um “objeto de luz que consegue mudar e consegue quase que «vibrar» com a música que está a acontecer.”
O álbum Uma Palavra em Forma de N, esclarece Noiserv, “vive muito de uma ideia – não só a capa, mas também algumas das músicas – das várias perspetivas com que podemos ver as várias coisas que temos à nossa volta”. A ideia do cubo remete para essa noção de perspetiva. “Estando tu a olhar para a mesma coisa, dependendo da face por onde olhas, parece que vês uma realidade diferente”, refere. “Isso juntamente com o facto de os meus instrumentos todos juntos serem um género de uma ilha, mas que se reduz, na verdade, àqueles dois metros por dois”. O cubo tornou-se assim, continua, uma espécie “bloco grande com a minha realidade ali dentro, que depois se deslocava de sala em sala.
Já a escolha pela cassete aconteceu, desde logo, por David Santos “ser uma pessoa de 82”, com uma infância e adolescência muito relacionada com esse formato. Quando estava a idealizar o projeto, uma pen pareceu-lhe algo demasiado frio e um CD não lhe parecia encaixar bem na ideia que já tinha de fazer o cubo. “De repente, pareceu-me que a cassete seria o objeto até mais bonito para o poder fazer, com essas nuances todas de ser um objeto bonito e de conseguir fazer uma conjugação entre, não só a cassete, mas o suporte físico onde depois a cassete iria estar inserida”.
Regressando ao álbum, este é um trabalho sobre perspetivas – “diferentes perspetivas que a pessoa possa ter do mundo que o rodeia, o que estamos cá a fazer, o que é que não estamos” –, mas também receios. “Acho que os meus discos falam sempre muito do que a minha cabeça está a passar na altura em que estou a fazer as músicas”, menciona o compositor. Sendo um quarto disco, Noiserv temia não conseguir fazer nada que surpreendesse a si próprio e que agradasse ao público. “Não que o objetivo seja fazer sempre diferente, mas que, de repente, «olha lançou mais um disco e é igual aos outros todos», ou, pior que isso, «já não me diz nada»”. Em Uma Palavra em Forma de N, o músico desafiou-se a compor inteiramente em português. “Não que o disco anterior, o de piano, não tivesse umas músicas em português. Mas um disco inteiramente em português, com 10 músicas, com 10 letras, tinha, se calhar, receio de que as pessoas pudessem, de alguma forma, não gostar tanto como gostavam das músicas em inglês.”
Apesar de o novo confinamento ter impedido a programação de mais espetáculos, a apresentação do disco é algo que David Santos considera ainda longe de terminado. “Já foi feita, se calhar, uma primeira parte e agora fica tudo mais ou menos em stand by, à espera que seja possível fazer de novo”. Para além dos espetáculos internacionais já ponderados, o artista defende que, em Portugal, “um lançamento de um disco não se pode restringir às cidades maiores.” Para Noiserv, é bom ir a todos os sítios, porque há pessoas que gostam da música em todo o lado. “Uma verdadeira digressão de apresentação só termina quando se chega, pelo menos, a todos os sítios onde já se esteve uma vez e, como isso ainda não aconteceu, isto agora acho que fica um bocadinho parado à espera que seja possível retomar.”